Uso e consumo: a flor-cadáver tributária brasileira

Spread the love

A relação entre o contribuinte e o fisco, ao longo das últimas décadas, poderia ser contada de diversas formas e a partir de muitas controvérsias. Mas poucas retratariam, de maneira tão clara, a desatenção aos compromissos assumidos com os agentes econômicos quanto a novela envolvendo os créditos de ICMS sobre a aquisição de mercadorias destinadas ao uso e consumo.

A não cumulatividade do ICMS definida pela Lei Complementar 87/1996, assegurava, literal e expressamente, ao sujeito passivo, “o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação” (art. 20).

Conheça o JOTA PRO Tributos, a plataforma de monitoramento para empresas e escritórios, que traz decisões e movimentações do Carf, STJ e STF

Ocorre que essa não cumulatividade negociada, ampla, que conferiria imensa competitividade à indústria nacional ao eliminar resíduos tributários adquiridos ao longo da cadeia econômica, foi postergada. Segundo o art. 33 da LC 87/96, o direito ao crédito relativo às mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento adquirente ficou apenas para janeiro de 1998.

Superada a frustração inicial, todas as expectativas ficaram voltadas para a nova data, ano da virada de chave. E o que aconteceu? Os contribuintes receberam, como presente de Natal (23/12/97), a Lei Complementar 92/1997, adiando o direito ao crédito sobre mercadorias adquiridas para uso e consumo para janeiro de 2000.

A prática caiu no gosto das Fazendas estaduais e o direito ao crédito, regiamente entabulado pelo dispositivo que definiu o alcance da não cumulatividade, foi sendo sucessivamente postergado: para 2003, para 2007, para 2011, para 2020 e agora, pasmem, para 2033. Essa, com certeza, será a última prorrogação. Afinal, o imposto estadual em questão será extinto em 2033.

Ou seja, o ICMS deixará de existir sem que nunca tenha sido autorizado o crédito sobre uso e consumo! A prorrogação sistemática da vigência desse direito fez com que, na prática, ele nunca existisse. Hipocrisia fiscal no melhor estilo, esse fenômeno frustra os tributaristas que aguardavam o florescer dessa flor-cadáver[1] tributária, o qual não acontecerá. Teremos que elaborar o luto de termos esperado 37 anos por uma promessa que nunca floresceu.

Esse é um dos motivos pelos quais fico extremamente preocupado quando analiso a regulamentação da reforma tributária que está em discussão no Senado Federal. Uma reforma da tributação do consumo que prometeu apenas um e acabará entregando dois tributos sobre o valor agregado (IBS e CBS), além de oportunizar um aumento da tributação sobre o patrimônio, através das ampliações horizontais e verticais realizadas no ITCD, no IPVA e no IPTU.

E o uso e consumo?

O art. 30. do PLP 68/2024 expressamente veda a apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição de específicos bens e serviços de uso e consumo pessoal.[2] Uma leitura simples e isolada desse dispositivo tranquilizaria os contribuintes, diante do método denotativo utilizado (lista de itens). Afinal, todos os bens de uso e consumo pessoal darão direito ao crédito de IBS/CBS, com exceção dos expressamente referidos pelo enunciado normativo (numerus clausus).

O problema é que o art. 39 do PLP 68, ao dispor sobre a (inconstitucional[3]) cobrança desses tributos sobre o oferecimento não oneroso de bens de uso e consumo pessoal pelas empresas aos seus empregados, utiliza uma lista meramente exemplificativa.[4]

O critério para incidência, nesse caso, é conotativo: não são considerados bens e serviços de uso e consumo pessoal, sujeitos ao IBS e à CBS, aqueles utilizados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte. Aqui se estabelece um conceito, não uma lista.

Ao se transpor esse conceito para casos práticos, os problemas aparecem. Por exemplo: estaria sujeito aos novos tributos um computador portátil (laptop), cedido gratuitamente a um empregado por uma empresa, no qual, além do trabalho, o empregado prepara aulas em algum curso por si ministrado e se comunica com o filho que mora no exterior?

Para responder a essa pergunta, precisaremos analisar o regulamento do IBS e da CBS elaborado pelo Poder Executivo, pois o § 3º do art. 39 do PLP 68[5] delega a esse diploma infralegal a função de estabelecer critérios para que os bens e serviços sejam considerados como itens utilizados, exclusivamente, na atividade econômica do contribuinte.

Na prática, o crédito apropriado pela empresa na aquisição do computador seria matematicamente anulado pelo oferecimento do mesmo à tributação, caso os critérios criados pelo Fisco no regulamento revelassem que o computador portátil não foi utilizado exclusivamente na atividade econômica da empresa. Como se observa, a não cumulatividade plena dependerá, no final das contas, de um regulamento editado pelo Poder Executivo.

O receio do próprio legislador quanto à discricionariedade que será exercida pela Fazenda na definição dos critérios que demandarão o oferecimento de um bem ou serviço utilizado pelos empregados à tributação do IBS e da CBS restou evidenciada no § 2º do dispositivo em comento[6].

O texto prevê que o fornecimento de uniformes e de equipamentos de proteção individual estendidos pelas empresas aos seus empregados estaria a salvo da incidência do IBS e da CBS. A ressalva expressa do óbvio gera preocupação quanto à discricionariedade na futura definição do razoável pelo regulamento.

O fato é que, nas operações não onerosas, teremos uma incidência determinada pelo regulamento, um crédito que poderá ser por ela anulado e uma guerra judicial que se avizinha.

Se a postergação no tempo esvaziou o crédito de ICMS sobre uso e consumo, a discricionariedade estendida ao Poder Executivo pelo PLP 68 coloca em xeque, novamente, a prometida não cumulatividade plena. Será que, dessa vez, o direito florescerá?


[1] A espécie Amorphophallus titanum, popularmente conhecida como jarro-titã ou “flor-cadáver” (na verdade, uma inflorescência), vive cerca de quarenta anos, porém só floresce duas ou três vezes nesse período. Ela é um dos grandes destaques em diversos Jardins Botânicos quando floresce: sua inflorescência dura apenas 72 horas, podendo atingir três metros de altura. A respeito, vide: https://www.escoladebotanica.com.br/post/flor-cadaver

[2] Art. 30. Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição dos seguintes bens e serviços, que serão considerados de uso e consumo pessoal, exceto quando forem necessários à realização de operações pelo contribuinte:

I – joias, pedras e metais preciosos;

II – obras de arte e antiguidades de valor histórico ou arqueológico;

III – bebidas alcoólicas;

IV – derivados do tabaco;

V – armas e munições; e

VI – bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos.

[…]

[3] Não será detalhada, no presente artigo, a flagrante inconstitucionalidade da tributação, pelo IBS e pela CBS, das operações não onerosas. A respeito dos limites constitucionais à instituição do IBS e da CBS que impedem essa materialidade prevista no PLP nº 68/2024, vide: PANDOLFO, Rafael. A sujeição passiva tributária da CBS (e do IBS) na Constituição Federal. In: CARVALHO, Paulo De Barros (org.). A Reforma do Sistema Tributário Nacional sob a Perspectiva do Constructivismo Lógico-Semântico: O Texto da Emenda Constitucional 132/2023. São Paulo: Noeses, 2024, p. 135-142; e ÁVILA, Humberto Bergmann. Limites Constitucionais à Instituição do IBS e da CBS. Revista Direito Tributário Atual, n. 56, p. 701–730, mai. 2024.

[4] Art. 39. A incidência do IBS e da CBS sobre o fornecimento não oneroso ou a valor inferior ao de mercado de bens e serviços para uso e consumo pessoal de pessoas físicas, de que tratam o inciso I do caput e o inciso II do § 1º do art. 5º desta Lei Complementar, dar-se-á na forma do disposto nesta Seção.

  • 1º Os bens e serviços fornecidos para uso e consumo pessoal de que trata o caput deste artigo abrangem, inclusive:

I – disponibilização de bem imóvel para habitação, bem como despesas relativas à sua manutenção;

II – disponibilização de veículo, bem como despesas relativas à sua manutenção, seguro e abastecimento;

III – a disponibilização de equipamento de comunicação;

IV – serviços de comunicação;

V – serviços de saúde;

VI – educação; e

VII – alimentação e bebidas.

[…]

[5] § 3º O regulamento estabelecerá critérios para que outros bens e serviços fornecidos para uso e consumo pessoal, inclusive os previstos no § 1º deste artigo, sejam considerados como utilizados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte.

[6] § 2º Para fins do disposto no caput deste artigo, não são considerados bens e serviços de uso e consumo pessoal aqueles utilizados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte, inclusive:

I – uniformes e fardamentos;

II – equipamentos de proteção individual;

III – serviços de saúde disponibilizados na própria empresa para seus empregados e administradores durante a jornada de trabalho; e

IV – serviços de planos de assistência à saúde e de fornecimento de vale-refeição e vale-alimentação, quando forem destinados a empregados e decorrerem de convenção coletiva de trabalho, cuja contraprestação será calculada de acordo com os respectivos regimes específicos.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *