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Uma das dificuldades de se debater políticas de governança reside na grande polissemia da expressão, que no Brasil e no mundo surge como uma “cura para todos os males”. Outros conceitos já figuraram, ou ainda figuram, nesse locus salvador, como transparência, accountability, integridade, entre tantos outros. Quem nunca ouviu sobre esses termos, quase sempre revestidos por outros vernizes que os legitimam, como o da representatividade, o da participação e o da democracia? A beleza do de jure e do valor normativo, contudo, nem sempre se converte em efetividade.
A subversão de tais conceitos e valores ocorre de diversas formas. Por vezes, na letra miúda que permite exatamente o oposto do que se almeja com a política. Outras vezes, na excessiva ambiguidade com que trata determinados temas, deixando espaços de discricionariedade sem desenhar pesos e contrapesos. E mesmo quando a norma é clara e a ambiguidade contida, a implementação pode esbarrar, entre muitos fatores, na força dos grupos de interesse, nas resistências burocráticas e na desatenção da sociedade civil, reduzindo a possibilidade de a política encontrar seus fins.
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Nos últimos anos, discussões sobre a necessidade de revisão dos marcos conceituais e regulamentares adotados pelo governo brasileiro sobre governança vêm ganhando destaque. Há indícios de que o atual governo esteja estudando uma atualização do Decreto 9.203/2017. Além disso, o PL 9163, também de 2017, construído à imagem e semelhança do decreto, voltou a circular no âmbito da CCJ da Câmara dos Deputados após quase dois anos sem tramitação expressiva.
Mas qual a governança que temos hoje?
A governança que temos é baseada na perspectiva de atores tanto do cenário internacional quanto do nacional. Entre aqueles do cenário internacional, destacam-se as instituições multilaterais doadoras, tais como Banco Mundial e FMI, que a desenvolveram como requisito e condicionante de ajuda para países em desenvolvimento.
É nesse bojo que a governança começou a ser vista como um grande guarda-chuva que abrangeria tantos outros conceitos modernizadores, como a transparência e o controle social. Mas com tanta mistura, o guarda-chuva acaba sendo um belo “balaio de gato”, reunindo, sem escala de importância, categorias e indicadores de distintas dimensões.
Uma das marcas dessa good governance é sua característica panfletária de combate ao “câncer da corrupção”, como enfatizado no famoso discurso de 1996 do ex-presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn. Esse é o tipo de governança que mais se popularizou no Brasil, não só por ser uma política supostamente mais benéfica ao país, mas principalmente por ser uma forma de se buscar a legitimidade perante à OCDE, o “clube dos ricos”, ao qual o Brasil demonstra há anos o interesse de integrar, até agora sem sucesso.
Tal visão também ganhou as mentes e corações dos atores nacionais que tomaram o protagonismo sobre o tema, ligados principalmente ao campo do controle. Estes controladores viram nesse guarda-chuva de conceitos uma forma de ir além das fronteiras da auditoria contábil, permitindo maior espaço para seu escrutínio sobre a gestão, as políticas públicas e a entrega de serviços aos cidadãos.
O reforço do encapsulamento da governança, da forma como explicada acima, decorre não só da sua linguagem pretensamente neutra e “despolitizada”, mas também pela forma como o controle se apropriou desse conceito. Ele se realiza à medida que a legitimidade das instituições de controle conecta-se à percepção de que a sociedade valoriza o combate à corrupção, ou dito de outra forma, valoriza a promoção da integridade.
Essa visão, portanto, turva a importância e a qualificação da discussão sobre os custos associados ao controle, além de abafar o debate sobre a má gestão, que tem o mesmo ou até maior potencial de diminuir a capacidade do Estado em entregar serviços públicos de qualidade.
E qual a governança que deveríamos almejar?
Se já sabemos que precisamos de uma governança para além do controle, qual é a que precisamos? Aquela que nos parece vital para o desenvolvimento do país parte de um ponto chave: a orientação à resolução de problemas públicos.
Dada a complexidade dos problemas sociais e a insuficiência de ações isoladas, o ideal seria pensar não em apenas uma governança, estanque e baseada em receituários, mas em modelos de meta-governança, em que as variedades de governança pudessem ser aplicadas de maneira complementar e coordenada, envolvendo múltiplas organizações públicas e privadas.
Afinal, sobre uma mesma política pública pode-se pensar soluções por meio de diversas governanças distintas. Pelo prisma da colaboração, teríamos a nosso dispor o arcabouço da governança colaborativa; quando necessária a regulação do setor produtivo privado, caberia a abordagem de governança corporativa; quando presente uma maior complexidade do problema, estaria disponível o aprendizado acumulado das experiências de governança em rede; e assim por diante.
Essa ideia de que o envolvimento de diversos atores é o caminho para a resolução tanto de problemas complexos como para o cobertor curto de recursos dos Estados já é antiga. Sua vertente intraestatal é conhecida pelo rótulo de whole-of-government. Mas com a crescente relevância do setor privado, tanto o produtivo quanto o da sociedade civil organizada, cresce também a necessidade de se considerar abordagens de solução de problemas públicos que levem ativamente em conta esses “novos” atores – o que tem se denominado whole-of-society.
Precisamos que as diversas abordagens de governança sejam adequadamente compreendidas tanto a partir de suas potencialidades, mas sobretudo a partir de suas limitações e fronteiras. Precisamos que as governanças avancem para além de uma caixa de ferramentas e lista de verificação de tipologia única, mercantilizada e pouco contributiva. Consequentemente, precisamos de uma governança adequadamente normatizada. E para tanto, precisamos de um efetivo diálogo colaborativo entre gestores, legisladores, acadêmicos e representantes da sociedade.