No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

A anatomia de um desastre climático: um ano da tragédia de São Sebastião

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Em fevereiro de 2023, em meio às celebrações de carnaval, o litoral norte de São Paulo foi acometido por chuvas e ventos extremos que ocasionaram um desastre de proporções históricas, com a morte de 65 pessoas e a necessidade de remoção forçada de milhares de moradores da região.

O fato de o volume de chuva registrado na região – 640 mm em 24 horas – ter sido três vezes maior do que o volume mais alto registrado até então na região[1] insere esse desastre na categoria de desastre climático e exige a leitura de suas causas e consequências dentro do contexto de crise climática vivenciado globalmente, porém cujos contornos se tornam muito mais agudos em territórios demarcados pela desigualdade.

O Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil define um desastre como “resultado de evento adverso decorrente de ação natural ou antrópica sobre cenário vulnerável que cause danos humanos, materiais ou ambientais e prejuízos econômicos e sociais”. Se tomarmos um desastre como o rompimento de uma barragem de rejeitos (como nos casos da Samarco, em Mariana, e da Vale, e em Brumadinho) ou a subsidência do solo em razão de atividades minerárias (como em Maceió, em razão das atividades da Braskem), temos que eventos adversos decorrentes de ações humanas, com frequência ligadas a atividades produtivas industriais, extrativas e/ou agropecuárias.

Em outros casos, os eventos adversos são ligados a causas naturais, tais como enchentes, tempestades, secas, incêndios, etc. Acerca destas causas, é preciso ter cautela: dificilmente poderão ser consideradas como catástrofes imprevisíveis e alheias à vontade humana, na medida em que frequentemente resultam ou ao menos são influenciadas pela crise climática atualmente em curso.

Assim, um evento adverso – seja ele decorrente de ação humana ou natural ou decorrente de múltiplos fatores – irá acarretar um desastre na medida em que o território no qual ocorra não possua as condições prévias necessárias para evitar ou mitigar a ocorrência de impactos sociais, ambientais e/ou econômicos. Em outras palavras, desastres acontecem em territórios e populações vulneráveis, que não contam com estrutura e outras medidas de resiliência necessários para lidar com adversidades.

Tomando por base o município de São Sebastião, em relatório técnico datado de 2019, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) já apontava áreas mapeadas como de risco, com altas possibilidades de inundações e desabamentos, com 2.204 moradias compreendidas em 52 áreas de risco, em um município com menos de cem mil habitantes[2].

Em verdade, as características geológicas e topográficas das áreas de risco de inundação e de deslizamento de terra são historicamente conhecidas pelas autoridades locais. O município está localizado em uma  das regiões com maior precipitação de água no país, devido ao relevo peculiar da Serra do Mar, de escarpas e formações rochosas de quase mil metros, a poucos quilômetros do Oceano Atlântico. Ali, as chuvas, designadas orográficas, por conta das massas de ar úmidas obstruídas pelas montanhas da Serra, são muito intensas, e frequentes. O conhecimento prévio das condições climáticas alarmantes na região, contudo, não estimulou a promoção de medidas preventivas e mitigatórias nas áreas de risco, presentes nas periferias de quase todos os distritos de São Sebastião.

Também são notórias as irregularidades fundiárias e urbanísticas no litoral norte paulista, onde o mercado imobiliário predatório empurra famílias para as áreas mais afastadas da beira-mar, que concentram o comércio, os serviços e os equipamentos públicos, como escolas e hospitais. As áreas mais densamente populadas são, justamente, as áreas urbanas localizadas nas encostas dos morros, caracterizadas por assentamentos precários em situação de irregularidade fundiária. Esses assentamentos abrigam a parcela mais vulnerável da população: conforme dados do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), mais de 30% da população de São Sebastião residia em áreas de alta vulnerabilidade social, com rendimento nominal médio de menos de um salário-mínimo por domicílio[3].

Todos esses elementos caracterizam São Sebastião como um território geograficamente e socialmente vulnerável, o que foi decisivo para que os danos sofridos pela população tomassem proporções inestimáveis. Tomando-se por exemplo a população da Barra do Sahy – uma das regiões mais afetadas – foram ao menos 2.251 pessoas desalojadas e 1.815 desabrigados[4]. Essas pessoas perderam suas moradias, suas atividades produtivas, parte ou a totalidade da sua renda, seus vínculos sociais, seu acesso às escolas e aparelhos públicos, dentre outros danos que ainda precisam ser mais bem diagnosticados para que se possa caminhar para uma reparação efetiva e integral. Houve, como frequentemente há em casos de desastres, uma verdadeira ruptura nos modos de vida da comunidade atingida, que se vê impossibilitada de continuar exercendo suas práticas sociais mais essenciais e estruturantes.

Diante dessa realidade, a população vem se articulando, em conjunto com instituições como a Defensoria Pública e o Ministério Público, para lutar pelo seu direito à moradia digna, indenizações e pela adoção de medidas efetivas para assegurar infraestrutura nas áreas de risco, dentre outras demandas. No âmbito do Judiciário, há uma série de ações judiciais, anteriores e posteriores às enchentes de 2023, e cujos desdobramentos poderão ser decisivos para o sucesso dessa luta.

Três delas assumem atualmente especial relevância: a ação proposta em 2021 pelo Ministério Público para regularização fundiária da Vila Sahy, uma das localidades mais gravemente atingidas (Processo 1000849-08.2021.8.26.0587); a ação do Ministério Público e da Defensoria Pública para indenização individual e coletiva dos danos morais e materiais decorrentes do desastre (Processo 1004876-63.2023.8.26.0587) e, mais recentemente, a Tutela de Urgência Cautelar Antecedente ajuizada pelo Estado de São Paulo requerendo autorização para promover a remoção forçada imóveis e residências que estão em áreas com riscos detectados de novos deslizamentos de terras, também na Vila Sahy (Processo 1004557-95.2023.8.26.0587).

A ação de regularização fundiária é o processo em que são possíveis medidas mais estruturantes e preventivas, de modo a lidar definitivamente com as irregularidades e com a falta de acesso a direitos sociais básicos pela população. O processo já teve uma sentença de procedência e deverá se encaminhar para uma fase processual de cumprimento decisório, em que o Judiciário e Ministério Público poderão exigir do Município a elaboração e implementação de planos, atuando também na fiscalização e no monitoramento das medidas a serem adotadas.

Já a ação de indenização encontra-se em fase bastante inicial, sendo que, a depender de seu desfecho, a população poderá se habilitar neste processo para receber ao menos parte da indenização pelos danos sofridos ou, se preferir, ajuizar ações individuais para demandar a reparação indenizatória. Em razão do estágio ainda muito preliminar deste processo, não é possível prever qual será o seu desfecho, tampouco quanto tempo será necessário para que desdobramentos efetivos ocorram.

Quanto ao pedido de tutela cautelar, foi amplamente noticiado pela mídia a decisão do final do ano passado determinando a demolição de casas e autorizando a remoção forçada de pessoas em imóveis considerados em situação de risco. Também teve grande repercussão o pedido de desistência recentemente apresentado pelo Estado, que alega que irá adotar um projeto de urbanização fora da esfera judicial. Atualmente, os movimentos populares e as instituições de justiça estão discutindo como assegurar a ampla participação popular nesses projetos de construção de novas moradias e demais ações estatais a serem realizadas na localidade.

É possível perceber claramente a importância que a atuação do Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública assume na busca por medidas de prevenção, preparação e mitigação de futuros desastres, bem como na resposta e reparação dos danos já sofridos, em especial diante da insuficiência das medidas adotadas pelo Poder Público. Como tentativa de apoiar essas instituições na sua atuação em casos de desastres, o Grupo de Estudos e Pesquisa “Acesso à Justiça, Desastres e Mudanças Climáticas”, da FGV Direito SP, publicou ano passado o “Protocolo Acesso à Justiça e Desastres: recomendações elaboradas para o sistema de justiça para atuação em casos de desastres”, com 45 recomendações que buscam contribuir com enfrentamento das diversas e complexas demandas que permeiam a gestão de riscos de desastres[5].

Como exemplo, a Recomendação 7 trata da necessidade de se “exigir (e fiscalizar) que o Zoneamento Urbano e as políticas habitacionais (construção de moradias e regularização fundiária) sejam elaborados a partir dos riscos levantados”, o que compreende também o monitoramento da implementação do zoneamento e responsabilização do Poder Público em caso de omissões. Destaca-se, também, a Recomendação 35, sobre o “estabelecimento de mecanismos de incidência e participação das pessoas atingidas nas negociações, acordos, e demais decisões no processo reparatório” e a Recomendação 37, que prescreve a necessidade de se exigir a “elaboração de plano de reparação individual”, de modo que as medidas de reparação individual (inclusive indenizações) sejam construídas com a participação adequada e efetiva das vítimas e com embasamento em diagnósticos e estudos técnicos.

Desastres climáticos, como o de São Sebastião, serão, infelizmente, cada vez mais parte da nossa realidade, cabendo aos Estados, entes públicos e privados, à comunidade internacional e à sociedade como um todo priorizar medidas efetivas para sua prevenção e enfrentamento. O combate à crise climática deve se ocupar das emissões e demais ações causadoras das mudanças climáticas, mas também não pode deixar de lado o enfrentamento das vulnerabilidades prévias, para que as medidas de adaptação, mitigação e de reparação compreendam também a superação dessas desigualdades. As instituições do sistema de justiça hoje assumem um papel de grande relevância nesse enfrentamento, sendo que os desdobramentos do caso de São Sebastião poderão ser decisivos para o estabelecimento de parâmetros de atuação claros em casos futuros.

Autores: Ana Maria Gaino Minussi, Beatriz Borghi Cantelli, Carolina Sanz Prisco, Clara Salgueiro Falcão Bauer, Fabrício Leon Leite, Gabriella Meinberg Valentino, Guilherme Pena Lino, Heitor Gomes, Lorenzo Mercio Xavier Nogueira, Lucas Rocha Bertolo, Luiza Alves Balby Garcia, Maria Cecília de Araujo Asperti, Pablo Piassa Granello e Sandro Roberto da Silveira Junior são integrantes da Clínica de Acesso à Justiça da FGV Direito SP. Coordenada pela Profa. Maria Cecília Asperti, a clínica tem por objetivo catalisar projetos que problematizam a má distribuição do acesso à justiça no Brasil, analisando gargalos processuais e institucionais por meio de observatórios temáticos e interações com atores relevantes. Conta, ainda, com a colaboração das/os pesquisadoras/es Danieli Rocha Chiuzuli, Luísa Martins de Arruda Câmara, Luíza Pavan Ferraro e João Vitor Leite Pessoa

[1] MOTA, Camilla Veras.  “Chuva em São Sebastião foi 3 vezes maior que o temporal de 2014, evento ‘mais extremo’ da história recente na região”. 23 de fevereiro de 2023. BBC News Brasil. Acesso em https://www.bbc.com/portuguese/articles/czrmpxdk443o?xtor=AL-73-%5Bpartner%5D-%5Buol.com.br%5D-%5Blink%5D-%5Bbrazil%5D-%5Bbizdev%5D-%5Bisapi%5D.

[2] IPT. Comunicação Técnica nº 176081. “Mapeamento de áreas de risco de movimentação em Massa no Município de São Sebastião”. 2019. Acesso em https://escriba.ipt.br/pdf/176081.pdf .

[3] MACHADO, Maico Diego, Fragilidade ambiental e dinâmica socioterritorial no município São Sebastião (SP). Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências. Campinas, SP

[4] De acordo com a petição inicial apresentada pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública com pedidos de indenização (Processo nº 1004876-63.2023.8.26.0587).

[5] Disponível em https://repositorio.fgv.br/items/616abe6c-b517-41de-be38-3023be78e7ad.

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