No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

pensamento do dia

Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

A competência material da Justiça do Trabalho e o STF – parte 3

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Salve, querido leitor!

Seguimos, ainda nesta coluna, com o intrincado tema da suprema redução jurisprudencial dos lindes constitucionais da competência material da Justiça do Trabalho.

Sobre isso, vale desde logo registrar que no último dia 28 de fevereiro deflagrou-se um movimento nacional de defesa das competências da nossa quase centenária JT – o “Ato Nacional em Defesa da Competência da Justiça do Trabalho” –, capitaneado pela Ordem dos Advogados do Brasil (seção São Paulo), pela Central Única dos Trabalhadores, pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho e por diversas outras entidades, corroborando os termos da “Carta em defesa da Competência Constitucional da Justiça do Trabalho” (13/9/2023 – v., e.g.,), a registrar, entre outras coisas, “[…] a necessidade de se assegurar que os processos distribuídos à Justiça do Trabalho tramitem nos trilhos do devido processo legal, sem sobressaltos, nem excepcionalidades que se transformem em insegurança jurídica e tratamentos díspares a circunstâncias semelhantes. Não cabe ao STF, como órgão de cúpula do Poder Judiciário, a revisão de fatos e provas, quando os processos já foram regularmente instruídos e julgados pelos órgãos da justiça especializada, no exercício de suas atribuições constitucionais. […]”

Tudo, portanto, na linha do que temos exposto neste Juízo de Valor desde dezembro de 2023.

A partir disso, prossigamos.

Sabem todos que, apesar da explicitude do texto constitucional a respeito (art. 114, VI) – a ditar, repiso, a competência da Justiça do Trabalho não apenas para os danos derivados de acidentes de trabalho e de doenças ocupacionais, mas para quaisquer danos materiais e morais decorrentes da relação de trabalho (como, e.g., ações indenizatórias por violação do direito à imagem, do direito à honra ou do direito à proteção de dados pessoais na relação de trabalho, ou mesmo as ações por danos existenciais decorrentes de excesso de jornada no trabalho) –, o STF foi reticente nos meses que se seguiram à EC 45/2004.

Suas primeiras decisões, com efeito, foram no sentido de que nada havia de novo sob o sol: tudo como dantes no quartel de Abrantes, i.e., a Justiça do Trabalho não teria competência para essa matéria, a envolver o manejo de preceitos do Código Civil e legislação correlata (e não da legislação trabalhista). Isso apenas mudou – e eis aqui outro legado da intelectualidade de Minas Gerais para o país – porque a Anamatra, com o precioso amparo técnico do desembargador Sebastião Geraldo de Oliveira, realizou um hercúleo trabalho de esclarecimento, por via de memoriais e audiências, de que o paradigma competencial anterior havia sido superado com o advento da EC 45/2004. Com isso, os ministros que então compunham o STF foram sendo paulatinamente convencidos de que realmente a nova letra da Constituição desafiava uma nova interpretação constitucional, fixando a competência da Justiça do Trabalho para todo esse arco temático.

Vale dizer, inclusive, que estamos diante de um dos raros casos em que a jurisprudência do STF quanto à competência da Justiça do Trabalho evoluiu no sentido ampliativo, atendendo à “mens legislatoris” de 2004, que, como demonstrei, fora pelo aumento material das competências dos órgãos judiciais trabalhistas (e não pela sua redução). Nesse encalço, ainda em 2005, ao julgar o CC 7.204 – também de Minas Gerais –, o ministro Ayres Brito assentou o seguinte (vencido o ministro Marco Aurélio Mello, conquanto oriundo das hostes trabalhistas):

“CONSTITUCIONAL – COMPETÊNCIA JUDICANTE EM RAZÃO DA MATÉRIA – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO, PROPOSTA PELO EMPREGADO EM FACE DE SEU (EX-)EMPREGADOR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ART. 114 DA MAGNA CARTA- REDAÇÃO ANTERIOR E POSTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL N° 45/04. EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSOS EM CURSO NA JUSTIÇA COMUM DOS ESTADOS. IMPERATIVO DE POLÍTICA JUDICIÁRIA. Numa primeira interpretação do inciso I do art. 109 da Carta de Outubro, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho, ainda que movidas pelo empregado contra seu (ex-) empregador, eram da competência da Justiça comum dos Estados-Membros. 2- Revisando a matéria, porém, o Plenário concluiu que a Lei Republicana de 1988 conferiu tal competência à Justiça do Trabalho. Seja porque o art. 114, já em sua redação originária, assim deixava transparecer, seja porque aquela primeira interpretação do mencionado inciso I do art. 109 estava, em boa verdade, influenciada pela jurisprudência que se firmou na Corte sob a égide das Constituições anteriores. .3. Nada obstante, como imperativo de política judiciária — haja vista o significativo número de ações que já tramitaram e ainda tramitam nas instâncias ordinárias, bem como o relevante interesse social em causa —, o Plenário decidiu, por maioria, que o marco temporal da competência da Justiça trabalhista é o advento da EC 45/04. Emenda que explicitou a competência da Justiça Laborai na matéria em apreço. 4. A nova orientação alcança os processos em trâmite pela Justiça comum estadual, desde que pendentes de julgamento de mérito. É dizer: as ações que tramitam perante a Justiça comum dos Estados, com sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/04, lá continuam até o trânsito em julgado e correspondente execução. Quanto àquelas cujo mérito ainda não foi apreciado, hão de ser remetidas à Justiça do Trabalho, no estado em que se encontram, com total aproveitamento dos atos praticados até então. A medida se impõe, em razão das características que distinguem a Justiça comum estadual e a Justiça do Trabalho, cujos sistemas recursais, órgãos e instâncias não guardam exata correlação. 5. O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto. 6. Aplicação do precedente consubstanciado no julgamento do Inquérito 687, Sessão Plenária de 25.08.99, ocasião em que foi cancelada a Súmula 394 do STF, por incompatível com a Constituição de 1988, ressalvadas as decisões proferidas na vigência do verbete. 7. Conflito de competência que se resolve, no caso, com o retorno dos autos ao Tribunal Superior do Trabalho”.

E, com isso, criavam-se finalmente as condições jurisprudenciais minimamente necessárias para a formação de unidade de convicção sobre o tema da responsabilidade civil patronal por acidentes de trabalho no âmbito da Justiça do Trabalho.

Outra classe material problemática, para dizer o mínimo, foi a das ações penais para a condenação por crimes e contravenções relacionadas ao trabalho humano; ou, como se popularizou, a questão da “competência penal trabalhista”. Deve-se dizer a respeito, de início, que, em perspectiva eminentemente técnica, a EC 45/2004 trouxe, sim, à Justiça do Trabalho, ao menos uma competência estritamente penal (e aí falo mesmo com professor, de Direito do Trabalho e de Direito Penal, e não como juiz do Trabalho), a saber, a competência para o processo e o julgamento dos “habeas corpus” relacionados a atos envolvendo matéria trabalhista (art. 114, IV). Nada obstante, como juiz, cumpre-me acatar a tese firmada pelo STF – e tecnicamente equivocada, insista-se – de que a Justiça do Trabalho não tem competência penal para qualquer efeito.

O fato, porém, é que toda a doutrina processual penal, de Ada Pellegrini Grinover a Fernando da Costa Tourinho Filho, passando por Júlio Fabbrini Mirabete, reconheciam que o “habeas corpus” seria uma modalidade de ação penal liberatória; e, não por outra razão, a sua regência legal-procedimental deita raízes no Código de Processo Penal (e não no Código de Processo Civil ou em qualquer outra legislação). Daí porque, a partir dessa lógica, seria inevitável afirmar que a Justiça do Trabalho passava a ter, a partir da EC 45/2004, competência material para ao menos uma espécie de ação penal, a saber, essa ação penal de natureza liberatória denominada “habeas corpus”.

A inferência hermenêutica foi, porém, ao tempo da EC 45/2004, bem mais ousada. Certa corrente doutrinária passou a entender – e estávamos pessoalmente com ela – que, a partir da combinação dos incisos I e IV do art. 114 da CRFB, a Justiça do Trabalho passava a ter competência penal residual também para ações penais condenatórias, a saber, aquelas que até então competiam à Justiça estadual comum, em relação aos crimes contra a organização do trabalho que não estivessem cometidos à Justiça Federal (CRFB, art. 109, VI, 1ª parte, na intelecção da Súmula 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos, depois incorporada pelo Superior Tribunal de Justiça: v., e.g., CC 108.867/SP, Terceira Seção, Rel. Ministro Jorge Mussi, DJe 19/4/2010; CC 123.714-MS, Rel. Des. conv. Marilza Maynard, j. 24/10/2012), além de outros crimes cujos tipos penais contivessem como elementar o trabalho humano e que igualmente não estivessem afetos aos tribunais e juízos federais. Entendeu-se, em suma, que toda essa competência penal residual, que não é expressa na Constituição Federal e estava originalmente cometida às justiças estaduais, havia se transferido para a Justiça do Trabalho.

Tal ideia frutificou melhor em circunscrições nas quais o órgão do Ministério Público do Trabalho e o juiz do Trabalho oficiante compartilhavam do mesmo entendimento pró-competência. Assim se deu, e.g., em Santa Catarina, na Vara do Trabalho de Indaial, então sob a titularidade do nosso querido colega Reinaldo Branco; instituiu-se, à época, até mesmo um “pautão criminal” naquela unidade. Isso foi possível porque ali oficiava como procurador do trabalho o hoje desembargador Marcelo D’Ambroso (TRT4), entendendo, assim como o juiz Reinaldo Branco de Moraes, que a Justiça do Trabalho passara a exercer, em finais de 2004, aquela referida competência residual penal.

Era praxe que, após a propositura da competente ação penal pelo procurador do trabalho, as questões se resolvessem em audiência, mediante composição civil (Lei 9.099/1995, art. 72) ou transação penal (Lei 9.099/1995, art. 76), porque geralmente eram infrações de menor potencial ofensivo. Deve-se ler, a esse respeito, o artigo “Resultados práticos da competência penal trabalhista” (Revista LTr, v. 71, n. 2, fev. 2007), do próprio Reinaldo Branco, revelando em números como o exercício dessa competência auxiliou na afirmação local dos direitos sociais e inclusive na redução dos índices de demanda por típicos direitos trabalhistas, porque o sentido de cumprimento da norma legal robusteceu-se com aquelas práticas, ao mesmo tempo em que retrocediam as expectativas de impunidade.

Também esse entendimento, porém, restou fulminado pelo Supremo Tribunal Federal. A questão chegou ao STF por razões eminentemente corporativas, na medida em que os procuradores da República passaram a se incomodar com o fato de procuradores do trabalho estarem a ajuizar ações penais (o que ocorreu, p. ex., em Santa Catarina e em São Paulo). Assim, por sua entidade de classe (ANPR), representaram ao então Procurador-Geral da República – sempre egresso da carreira do Ministério Público Federal – para que tomasse providências, o que redundou no ajuizamento da ADI 3.684/DF, em cujo bojo restou afastada, no ano de 2006, em medida liminar, toda e qualquer competência penal no âmbito da Justiça do Trabalho.

A decisão, a rigor, engendrava certa perplexidade teórica em relação ao “habeas corpus”, pelas razões já expostas (o “habeas corpus” é, a rigor, uma espécie de ação penal textualmente cometida à Justiça do Trabalho); mas essa questão perderia toda a sua relevância prática nos anos seguintes, porque a única hipótese clara de manejo possível do “habeas corpus” nos lindes da Justiça do Trabalho – a saber, a de prisão do depositário judicial infiel no âmbito do processo do trabalho –, terminou sendo vedada a partir da Súmula Vinculante 25 (e dos julgados que a basearam, como, p. ex., o RE 466.343, rel. Min. Cezar Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, j. 3/12/2008, e o HC 95.967,  rel. Min. Ellen Gracie, 2ª T, j. 11/11/2008), pela qual “[é] ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”. Vale recordar, como fazia o ministro Claudio Brandão há pouco, que o STF conferiu à Convenção Interamericana de Direitos Humanos, promulgada no Brasil pelo Decreto 678/1992, um efeito paralisante com relação às possibilidades legais de prisão de depositários infiéis, judiciais e extrajudiciais, mercê do seu art. 7º, 7, e da dita supralegalidade dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos (se não aprovados com o quórum do art. 5º, §3º, da CRFB).

A consequência disso tudo – negativa de competência penal condenatória, impossibilidade de prisão de depositário infiel, descabimento de prisão de alimentante inadimplente na Justiça do Trabalho – é que, atualmente, o “habeas corpus” na Justiça do Trabalho, embora tenha previsão até nos regimentos internos dos tribunais, não tem mais praticamente nenhuma função processual a cumprir, senão para sanar verdadeiras teratologias.

Ademais, para não dizer que não falei de flores, interessa registrar que, após a decisão nos autos da ADI 3.684, apresentou-se ao Parlamento a Proposta de Emenda Constitucional 327/2009, apresentada pelo então Deputado Federal Valtenir Pereira (hoje no Poder Executivo Federal), alterando os artigos 109 e 114 da Constituição e atribuindo expressamente competência penal à Justiça do Trabalho, inclusive para ações penais condenatórias – até mesmo para o crime do art. 149 do CP (redução à condição análoga a de escravo) –, como também para ações de improbidade. Mas essa PEC não caminhou como pretendido.

Ousaria dizer que, neste momento, não há nada mais distante de nossos horizontes institucionais próximos do que a atribuição de competência criminal para a Justiça do Trabalho, seja pela via legislativa – sempre a mais adequada –, seja pela via hermenêutico-pretoriana; e, nesse último caso, por razões mais do que óbvias: neste instante, a competência material da Justiça do Trabalho segue a ser redesenhada para basicamente abarcar apenas a condenação de empregadores a pagar verbas trabalhistas básicas (salários, rescisórias, indenizações trabalhistas típicas etc.), porque até mesmo a possibilidade de se reconhecer o vínculo empregatício em meio a fraudes, na linha do que dispõe textualmente o art. 9º da CLT (e do que os juízes trabalhistas vinham fazendo há mais de oitenta anos), está por um fio hermenêutico. Leia-se, a propósito, a impressionante ementa de recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, da lavra da ministra Nancy Andrighi, em sede de conflito negativo de competência:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA COMUM ESTADUAL E JUSTIÇA TRABALHISTA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. AÇÃO QUE DEPENDE DA ANÁLISE DA CAUSA DE PEDIR CONSISTENTE NA ALEGAÇÃO DE FRAUDE NA CONTRATAÇÃO AUTÔNOMA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. 1. Compete à Justiça comum estadual processar e julgar ação indenizatória objetivando o reconhecimento de relação de trabalho, na hipótese em que existe prévio contrato de prestação de serviços firmado entre as partes e em relação ao qual se alega fraude na contratação. 2. Conflito conhecido para declarar competente o JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA CÍVEL DE ITAPECERICA DA SERRA – SP.” (STJ, CC n. 0026816-25.2024.3.00.0000, 2ª Seção, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, Suscitante Juízo de Direito da 2ª Vara Cível de Itapecerica da Serra v. Suscitado Juízo da 2ª Vara do Trabalho de Itapecerica da Serra, j. 15 fev. 2024 – g.n.)

E la nave va.

Por ocasião da coluna de abril, trataremos de abordar outros exemplos de restrições hermenêuticas da competência histórica da Justiça do Trabalho pelas penas dos tribunais superiores competentes para a uniformização da jurisprudência infraconstitucional (no caso, TST e STJ). Aguardem… sabedores, sempre, de que são réus dos seus juízos.

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E então, apreciado leitor? Está gostando da coluna? Há muita opinião e pouca descrição? Ou talvez muita descrição e pouca opinião? Você diz, a gente ajusta. Em assuntos tão candentes, é impossível ser “neutro”… Até porque neutralidade, em temas e tempos de estrépito, é sempre a eleição de um lado. A boa técnica, ademais, não repulsa a elegante indignação, não é mesmo?

Dê-nos a sua abalizada opinião: dunkel2015@gmail.com. Até o próximo mês!

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