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No final do ano passado, a Corte Especial do STJ iniciou o julgamento de recursos repetitivos para definir se, na apreciação do pedido de gratuidade da justiça pelo Juiz, “é legítima a adoção de critérios objetivos na avaliação de hipossuficiência” (tema 1178RR). O Relator, Min. Og Fernandes, entendeu que a resposta deve ser negativa. De acordo com notícia divulgada pelo STJ, o Relator, à luz do que dispõem os arts. 98 e 99 do CPC, considerou que “cumpre ao magistrado analisar as condições econômicas e financeiras da parte postulante da justiça gratuita com fundamento nas peculiaridades do caso concreto. Não há amparo legal, portanto, para sujeitar-se o deferimento do benefício à observância de determinados requisitos objetivos preestabelecidos judicialmente“[1].
O Relator propôs, então, as seguintes teses para o julgamento: “a) é vedado o uso de critérios objetivos para o indeferimento imediato da gratuidade judiciária requerida por pessoa natural; b) verificada a existência nos autos de elementos aptos a afastar a presunção de hipossuficiência econômica da pessoa natural, o juízo deverá determinar ao requerente a comprovação de sua condição, indicando de modo preciso as razões que justificam tal afastamento, nos termos do artigo 99, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil (CPC); c) cumprida a diligência, a adoção de parâmetros objetivos pelo magistrado pode ser realizada em caráter meramente suplementar e desde que não sirva como fundamento exclusivo para o indeferimento do pedido de gratuidade”.
O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista formulado pelo Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.
Esse tema pode e merece ser examinado em diferentes perspectivas, mas um dos pontos que claramente emerge do julgamento é refletir, no plano mais geral da teoria do direito, sobre a oposição entre “critérios objetivos” e “critérios subjetivos” na aplicação do direito pelo juiz.
Antes de avançar no exame do tema, faço dois esclarecimentos prévios para o leitor: i) não tive acesso ao inteiro teor do voto do Relator, que se deve presumir ser, pelo que foi divulgado e pelo histórico de suas decisões, minucioso e rico na sua fundamentação; ii) subscrevi nos autos, como advogado, manifestação que, diferentemente da conclusão apresentada no voto do Relator, opina no sentido de ser legítima e jurídica a adoção de critérios objetivos, para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural.
Volta-se ao problema: o que é legítimo na aferição da “insuficiência de recursos”, a adoção de critérios objetivos ou de critérios subjetivos?
A Constituição, no art. 5º, inciso LXXIV, assegura que a assistência judiciária gratuita aos que comprovarem a hipossuficiência de recursos. Nas exatas palavras do texto constitucional, “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”[2].
O Código de Processo Civil, de seu turno, dispõe que “a pessoa natural ou jurídica […] com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios, tem direito à gratuidade da justiça”, [art. 98], cabendo à parte interessada formular o pedido, na forma do caput do art. 99. Ainda de acordo com o art. 99, “[o] juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade” (art. 99, §2º), mas se presume “verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural” (§ 3º do art. 99).
As normas exigem, para a concessão do benefício, a “insuficiência de recursos”. Muitos verão nessa expressão a manifestação do fenômeno “conceito jurídico indeterminado”, que é aquele que traz em si uma zona de incerteza, quanto ao seu significado, conteúdo e extensão.
Será que a formulação de critérios objetivos no processo de interpretação e aplicação do direito realizado pelo Judiciário esvazia conceitos jurídicos indeterminados? E a utilização de critérios subjetivos, garante ela a estrutura das normas que os adotam?
Parece próprio assumir que conceitos jurídicos indeterminados não conferem propriamente um espaço de liberdade para o intérprete em geral, ou ao juiz, em específico. Na verdade, cabe ao aplicador do Direito preencher os conceitos dessa natureza com sentidos que reafirmem e reforcem o propósito da norma. A interpretação sempre vem, portanto, para controlar o sentido, não para permitir a arbitrariedade.
É natural, ainda, que o Judiciário, no exercício de seu mister de resolver conflitos a partir do Direito, densifique as normas, preencha espaços de incerteza, permitindo que o Direito cumpra uma de suas finalidades, que é a de ordenar, oferecendo uma orientação de conduta. Vou além, espera-se que o produto da atuação do Judiciário reforce a coerência e a integridade (o art. 927 do CPC traz esse alerta). O Judiciário não pode se conduzir de forma aleatória na aplicação do direito.
Um juiz que tenha utilizado o critério da renda familiar e negado o benefício da justiça gratuita para quem recebe R$ 5.000,00, deve estar atento ao critério que criou para a solução do caso concreto e respeitá-lo em decisões futuras, vinculando-se a ele em casos iguais, estabelecendo distinções para não o aplicar em casos diferentes, ou indicando razões para superar o critério que criou. É dizer, na aplicação do direito, no julgamento de cada “caso concreto”, o juiz deve decidir o caso a partir de um juízo que seja universalizável para todos aqueles que estiverem na mesma condição.
O mesmo procedimento se espera dos Tribunais e dos Tribunais Superiores. E, vendo o Judiciário como uma unidade, espera-se que cada magistrado esteja atento não só ao que já decidiu, e aos critérios que adotou, mas também ao entendimento que se firmou em instâncias revisoras com o mesmo propósito, de densificar a norma. É natural e salutar que nesse caminhar surjam critérios que orientem o exame de casos futuros, sem excluir a possibilidade de haver razões e circunstâncias que tragam elementos novos que devem compor o sentido da norma.
A tensão entre critérios objetivos e critérios subjetivos pode ser visto, portanto, sob outro enfoque.
Para Castanheira Neves, deve ser reconhecida que há um “continuum” nas tarefas de interpretar e aplicar o direito, devendo ser superada o esquema discriminatório entre interpretação, aplicação e mesmo integração[3]. Para o jurista português, a interpretação jurídica é um problema normativo: não se trata de compreender o texto normativo, mas de definir o sentido normativamente adequado do preceito, seja em referência ao ordenamento jurídico, seja em referência ao problema jurídico do caso concreto, havendo uma inescapável dialética entre problema e sistema no processo de aplicação da norma. Assim, ainda na linha de Castanheira Neves, observa-se que o desafio da interpretação jurídica é duplo: em primeiro lugar, encontrar no juízo decisório uma solução normativamente adequada ao caso concreto (o centro metodológico de referência, nessa perspectiva, não está na norma, mas no juízo, que convoca as possibilidades normativas do preceito); depois, verificar se a solução se mostra harmônica com o sistema jurídico (sem o que a realização do direito poderia ser reduzida a um casuísmo, com a busca de simples adequação da norma ao problema)[4]. A racionalidade jurídica não pode abrir mão nem do sistema nem do problema.
Não parece próprio, nesse sentir, abrir mão de critérios objetivos – que concretizam isonomia e segurança jurídica na aplicação do direito e unidade no ordenamento jurídico. Não se sugere, todavia, ignorar as singularidades relevantes do caso concreto, sob pena de haver iniquidade e arbítrio. Mostra-se duvidoso criar uma precedência do caso concreto sobre o sistema ou vice-versa. Deve-se abrir espaço para a dialética entre o sistema e o problema (para fazer referência à proposta de realização do direito de Castanheira Neves).
Nesse contexto, talvez a pergunta que está sendo respondida pelo STJ não seja propriamente a definição a respeito da precedência de critérios subjetivos sobre critérios objetivos para aferir o direito ao benefício da justiça gratuita, mas sim quais são os critérios legítimos, e como deve proceder aquele a quem incumbe fixá-los ou sindicar a sua aplicação.
Sobre o último aspecto, deve-se perguntar se, e em que medida, o STJ, à luz das normas postas pelo CPC, deve envolver-se nesse esforço de estabelecer critérios, no cumprimento da sua missão constitucional de garantir a vigência da legislação federal e a uniformidade de sua aplicação (art. 105, inciso III, alíneas “a” e “c”). Penso que o STJ, em vista dessa missão, não pode furtar-se de contribuir para a parametrização dos requisitos que devem ser observados na apreciação do pedido de gratuidade da justiça.
Sobre o primeiro aspecto, o processo de aplicação do direito – em busca de segurança jurídica, isonomia e justiça – não precisa se fechar em um único critério, não havendo impropriedade na adoção de um conjunto critérios, que sejam justificáveis e aferíveis no caso concreto.
A propósito, pode contribuir para a reflexão olhar para as discussões que se travam no Legislativo. O PL 5.900, de 2016, que já foi aprovado pela Câmara dos Deputados (em 10/5/2022) e se encontra em tramitação no Senado Federal (autuado como PL 2.339, de 2.022), propõe alterar o CPC “para estabelecer critérios para a concessão de gratuidade da justiça”, apresentando vários parâmetros que me parecem razoáveis para aferição do direito ao benefício da justiça gratuita, prevendo, ainda, uma cláusula aberta, segundo a qual o benefício poderá ser concedido “desde que comprove a insuficiência de recursos, por meio da apresentação de documentação idônea ou por outro meio de prova admitido, e ao juiz caberá apreciar fundamentadamente o pedido”[5].
No final do dia, deve-se esperar que o Judiciário – atento ao comando constitucional de que o benefício da justiça gratuita será assegurado aos que comprovarem insuficiência de recursos – fale a uma só voz com a sociedade, com justiça e isonomia.
[1] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/26122023-Relator-vota-para-afastar-criterios-objetivos-na-analise-de-justica-gratuita–vista-suspende-julgamento.aspx#:~:text=O%20ministro%20Og%20Fernandes%20comentou,ter%20como%20base%20crit%C3%A9rios%20subjetivos.
[2] Não obstante haja diferenciação entre o instituto da assistência judiciária gratuita e o benefício da justiça gratuita, importa destacar que o STF, em reiteradas oportunidades, situou a sede material do benefício da justiça gratuita também no art. 5º, inciso LXXIV, como se vê dos seguintes acórdãos: ADI 3.658, rel. min. Marco Aurélio, j. 10-10-2019, P, DJE de 24-10-2019; ADI 5.766, red. do ac. min. Alexandre de Moraes, j. 20-10-2021, P, DJE de 03-5-2022). Para ilustrar, confira-se a observação feita pelo Min. Edson Fachin no voto que proferiu na ADI 5766: “, importante afirmar que o benefício da gratuidade da Justiça não constitui isenção absoluta de custas e outras despesas processuais, mas, sim, desobrigação de pagá-las enquanto perdurar o estado de hipossuficiência econômica propulsor do reconhecimento e concessão das prerrogativas inerentes a este direito fundamental (art. 5º, LXXIV, da CRFB)” (p. 80 do acórdão)
[3] CASTANHEIRA NEVES. O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica. Portugal: Coimbra Editora, 2003. P. 125-127.
[4] CASTANHEIRA NEVES. O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica. Portugal: Coimbra Editora, 2003. P. 142-149.
[5] Eis os termos da proposta legislativa ora em tramitação:
“art. 99 […]. § 2º O juiz deferirá o pedido de gratuidade da justiça postulado pela pessoa natural que comprove pelo menos uma das seguintes hipóteses: I – estar dispensada, nos termos da legislação tributária, de apresentar Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda; II – ser beneficiária de programa social do governo federal;
III – auferir renda mensal de até 3 (três) salários mínimos; IV – tratar-se de mulher em situação de violência doméstica e familiar, nos termos do art. 28 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha); V – comprovar ser membro de comunidades indígenas mediante apresentação de declaração expedida por suas entidades representativas ou por órgão indigenista oficial; VI – estar representada em juízo pela Defensoria Pública.
3º O requerente pessoa natural não enquadrado nas hipóteses taxativas do § 2º deste artigo poderá pleitear e obter o benefício de gratuidade da justiça, desde que comprove a insuficiência de recursos, por meio da apresentação de documentação idônea ou por outro meio de prova admitido, e ao juiz caberá apreciar fundamentadamente o pedido.
3º-A Em qualquer hipótese, o juiz poderá indeferir o pedido de gratuidade da justiça, respeitado o contraditório, se houver nos autos elementos que evidenciem a capacidade financeira do requerente para arcar com as custas e as despesas processuais sem prejuízo de seu sustento.”