A sombra antitruste no ESG

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Governança ambiental, social e corporativa (traduzido literalmente do termo inglês “environmental, social, and corporate governance”, cuja abreviação dá origem a sua alcunha mais famosa: “ESG”) é um dos maiores assuntos do direito corporativo nos últimos anos.

O termo teve origem em 2004, na publicação Who Cares Wins, elaborada em uma parceria entre a Pacto Global[1] e o Banco Mundial, em que o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, provocou 50 CEOs de grandes instituições financeiras sobre como integrar fatores de sustentabilidade e de responsabilidade social e de governança no mercado de capitais.

A partir dessa publicação, por volta do início da década de 2010, refletindo alguns dos anseios sociais contemporâneos, empresas de diversos segmentos de mercado passaram a adotar políticas ESG a fim de transmitir a ideia de que elas também precisavam contribuir para a sociedade com um mundo mais sustentável e inclusivo. Para fins ilustrativos, principalmente para o leitor que ainda não está familiarizado com o tema, um exemplo de políticas ESG são as medidas adotadas pela gigante Microsoft, que em 2020 anunciou que, até 2030 (i) irá negativar a emissão de carbono (além de, até 2050, compensar o carbono emitido por ela desde 1975, ano de sua fundação), (ii) reporá mais água do que aquela que consome a nível global e (iii) negativará a quantidade de resíduos produzidos.[2]

No Brasil, a cultura do ESG ainda é bastante rasa. De acordo com dados do governo federal, em 2020, apenas 1% das empresas do País se beneficiavam da Lei do Bem[3], uma lei federal que regulamenta a concessão de incentivos com base nos gastos de uma empresa com Pesquisa e Desenvolvimento[4]. Contudo, no fim do mês de janeiro deste ano, o governo federal anunciou o programa Nova Indústria Brasil, que consiste em incentivos tributários e fundos especiais para alguns setores da econômica baseado no desenvolvimento de políticas sustentáveis. Nos termos do plano de ação do Nova Indústria Brasil[5], as missões do programa na frente sustentável são:

Expandir a capacidade produtiva da indústria brasileira por meio da produção e da adoção de insumos, inclusive materiais e minerais críticos, tecnologias e processos de baixo carbono, com eficiência energética;
Fortalecer as cadeias produtivas baseadas na economia circular e no uso sustentável e inovador da biodiversidade, desenvolver indústrias da bioeconomia e promover a valorização da floresta em pé e o manejo florestal sustentável;
Adensar cadeias industriais para a transição energética, com vistas à autonomia, à eficiência energética e à diversificação da matriz brasileira;
Desenvolver tecnologias estratégicas para a descarbonização, a transição energética e a bioeconomia, catalisando vantagens intrínsecas do país com vistas ao protagonismo de empresas brasileiras no mercado doméstico e internacional; e
Garantir a segurança energética, estimulando a produção de petróleo e gás de baixo custo e baixa pegada de carbono.

Essa agenda apresentada pelo NIB satisfaz as preocupações ambientais e sociais atuais: políticas de inclusão social e que se opõem aos danos causados ao meio ambiente – muitas vezes associados à cadeia de produção de algumas indústrias – e talvez até mesmo represente o boom inicial para a cultura ESG no Brasil.

Porém, nem tudo são flores, pois apesar dessas políticas serem positivas para o mundo e para a sociedade, elas carregam consigo responsabilidades e deveres que transcendem esses objetivos e cujo descumprimento pode ocasionar em infrações em diversas esferas, inclusive na concorrencial – e é justamente isso que a experiência internacional tem nos mostrado recentemente.

Nos últimos anos, nos Estados Unidos, diversos segmentos da economia têm enfrentado escrutínio por autoridades quando da adoção de medidas ESG. Em setembro de 2019, o Department of Justice (DOJ) iniciou uma investigação contra quatro montadoras de automóveis que haviam celebrado um acordo conjunto com o estado da Califórnia para reduzir a emissão de poluentes para um patamar inferior ao estabelecido pelo governo federal norte-americano.

De acordo com o DOJ, a investigação tinha como objetivo verificar se essas empresas haviam fixado entre si um patamar de emissão de poluentes e que da forma que o acordo foi ajustado, ele poderia limitar a escolha dos consumidores. A investigação foi arquivada cinco meses depois após o DOJ entender que o acordo não violava a legislação concorrencial.

Já em 2022, os procuradores-gerais de 19 estados norte-americanos enviaram uma carta[6] à BlackRock acusando as políticas ESG da empresa, de maneira coordenada com outras instituições financeiras, de resultarem em boicotes de grupo, limitações ao comércio ou recusas em negociar. Esse mesmo padrão de acusação contra políticas ESG aconteceu diversas outras vezes desde então, como na vez em que outros procuradores-gerais iniciaram uma investigação contra seis grandes bancos em razão do envolvimento com o Net Zero Banking Alliance (NZBA), da ONU[7], ou também quando enviaram uma carta para companhias de seguro que aderiram a uma iniciativa semelhante à NZBA, a Net Zero Insurance Alliance (NZIA)[8].

Essa série de iniciativas motivaram Lina Khan, presidente do Federal Trade Commission (FTC), a emitir uma nota no The Wall Street Journal intitulada “ESG won’t stop the FTC”[9], na qual afirma categoricamente que o objetivo do FTC é “prevenir concentrações ilegais, e não tornar o mundo um lugar melhor”. Inclusive, Khan finaliza a nota dizendo que “empresas são livres para buscar políticas que acreditem ser melhores para tornar o mundo um lugar melhor. Apenas não espere que isso evite uma concentração ilegal”.

Essa postura da presidente do FTC é semelhante ao posicionamento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) quanto à interferência de questões de interesse público para a análise de seus casos. No julgamento da aquisição do banco HSBC pelo Bradesco[10], o conselheiro relator João Paulo Resende afirmou que “a preservação de empregos, a meu ver, é um bem social que deve ser perseguido por políticas públicas específicas, e não pela autoridade de defesa da concorrência”.

Mais recentemente, no julgamento da criação de uma joint-venture com o propósito de desenvolver e operar uma plataforma que viabilize a padronização da medição de sustentabilidade na cadeia de suprimentos alimentícios e agrícola[11], o presidente Alexandre Cordeiro indicou que questões de cunho social ou de sustentabilidade não devem ser utilizadas pelo Cade para a análise de um caso sob o risco de “expandir a competência da autoridade de defesa da concorrência para além daquela prevista na legislação e para a qual possui capacidade técnica”.

Essas decisões acenam para um juízo de que não há eficiência sustentável ou de inclusão social que seja argumento cabível para uma análise antitruste. Práticas anticompetitivas travestidas de medidas ESG podem até transformar o mundo em um lugar mais verde, mas não isentarão as partes de culpa diante dos prejuízos causados à concorrência.

Feitas essas considerações, é importante ressaltar que o direito concorrencial jamais será um impedimento a medidas sustentáveis e de inclusão, mas estas devem ser adaptadas de modo a mitigar qualquer risco à concorrência. Tamanha é a preocupação com a adequação desse tipo de política que a Comissão Europeia editou seu Horizontal Block Exemption Regulations and Horizontal Guidelines, em junho de 2023[12], para incluir orientações de boas práticas para acordos entre concorrentes relacionados a iniciativas ESG.

Naturalmente, um acordo (de qualquer tipo) que afete parâmetros comerciais, como preços, quantidade, qualidade ou inovação ou até mesmo facilite a troca de informações comercialmente sensíveis entre rivais será um acordo que chamará a atenção de uma autoridade diante dos possíveis efeitos anticompetitivos por ele produzido. Porém, para além dessas diretrizes concorrenciais tradicionais, o guia atualizado da Comissão Europeia oferece safe harbour para acordos ESG que cumpram com as seguintes condições:

Os processos envolvidos no acordo devem ser transparentes e abertos para todos os concorrentes;
Não deverá ser imposto, direta ou indiretamente, às empresas que não desejam adotar nenhuma obrigação relativa aos padrões de sustentabilidade ali estabelecidos;
Não deverá ser imposto nenhum teto para os padrões de sustentabilidade estabelecidos pelo acordo, mas apenas um piso, estando as partes livres para implementarem metas superiores do que aquelas ali estabelecidas;
As partes não devem compartilhar informações comercialmente sensíveis que não sejam objetivamente necessárias e proporcionais para o desenvolvimento, implementação, adoção ou modificação dos padrões estabelecidos pelo acordo;
Deverá ser garantido acesso efetivo e não-discriminatório aos resultados dos processos de sustentabilidade adotados; e
Os padrões de sustentabilidade adotados devem não incorrer em aumento de preço ou diminuição na qualidade do produto ou serviço relacionado. Além disso, a participação de mercado conjunta das partes não deve exceder 20% em seus mercados relevantes.

O panorama acima nos sugere que a cultura ESG será cada vez mais disseminada no mundo corporativo brasileiro nos próximos anos, principalmente com incentivos dessa natureza por parte governo federal. Políticas sustentáveis, sociais e cooperação entre concorrentes para se ajudarem nesse caminho serão o novo normal quando o assunto for ESG. Contudo, será importante que o aspecto concorrencial dessas políticas seja observado para que não haja o risco de prejuízos à concorrência. E enquanto o Cade não se manifesta sobre o assunto, as orientações sugeridas pela Comissão Europeia são um bom norte para as empresas brasileiras mitigarem os riscos de suas políticas ESG.

 

[1] Pacto Global é uma iniciativa da ONU para promover sustentabilidade corporativa ao redor do mundo e visa transformar as estratégias empresariais em prol de um desenvolvimento sustentável. Mais detalhes disponíveis em: https://www.pactoglobal.org.br/.

[2] Mais informações disponíveis em: https://www.microsoft.com/en-us/corporate-responsibility/sustainability.

[3] Fonte: https://www.gov.br/pt-br/noticias/educacao-e-pesquisa/2020/12/atualizado-o-guia-pratico-da-lei-do-bem.

[4] O objetivo da Lei do Bem é promover na inovação e a agregar de valor social por parte das empresas beneficiadas. Inclusive, dentre os critérios de avaliação da Lei do Bem para o recebimento de seus benefícios, podemos citar a adoção de processos produtivos que gerem menor emissão de carbono, redução do desmatamento e descarte mais sustentável de resíduos.

[5] Fonte: https://www.gov.br/mdic/pt-br/composicao/se/cndi/plano-de-acao/nova-industria-brasil-plano-de-acao.pdf.

[6] Disponível em: https://www.texasattorneygeneral.gov/sites/default/files/images/executive-management/BlackRock%20Letter.pdf.

[7] O Net Zero Banking Alliance é uma iniciativa da ONU que reúne grandes bancos ao redor do mundo empenhados em financiar ações climáticas para fazer a transição da economia real para emissões líquidas zero de gases com efeito de estufa até 2050. Mais informações disponíveis em: https://www.unepfi.org/net-zero-banking/.

[8] O Net Zero Insurance Alliance é uma iniciativa da ONU para a descarbonização de carteiras de subscrição de seguros e resseguros das empresas associadas. Mais informações disponíveis em: https://www.unepfi.org/net-zero-insurance/.

[9] Disponível em: https://www.wsj.com/articles/esg-wont-stop-the-ftc-competition-merger-.

[10] Ato de Concentração nº 08700.010790/2015-41. Julgado em 8 de junho de 2016.

[11] Nos termos do voto do Pres. Alexandre Cordeiro, “embora concorde que as mudanças climáticas, entre outros temas como soberania, direito do consumidor, igualdade de gênero, direitos trabalhistas representam importantes assuntos da nossa sociedade e que determinadas medidas de proteção desses direitos são necessárias, preocupa-me que casos como este possam ser utilizados com o intuito de expandir a competência da autoridade de defesa da concorrência para além daquela prevista na legislação e para a qual possui capacidade técnica. Na minha opinião, não é atribuído ao Cade o direito de trazer institutos alheios ao tradicional objeto do direito concorrencial, fugindo de uma análise ortodoxa, de modo a sopesá-los e valorá-los como aquilo que é nossa missão institucional, que é a defesa da concorrência. Caso façamos isso, abriremos uma caixa de Pandora em que qualquer sorte de assuntos sociais e políticos poderão se tornar objeto de análise antitruste”. Ato de Concentração nº 08700.009905/2022-83. Julgado em 21 de junho de 2023.

[12] Disponível em: https://competition-policy.ec.europa.eu/document/download/fd641c1e-7415-4e60-ac21-7ab3e72045d2_en?filename=2023_revised_horizontal_guidelines_en.pdf.

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