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Falta de documentação ou vestimenta adequada, citação por edital e formalismo excessivo da linguagem jurídica são alguns dos elementos que atravessam a interação das pessoas em situação de rua com o Judiciário. O receio e a desconfiança cumulados com as dificuldades práticas enfrentadas por essas pessoas geram distanciamento e dificuldade no acesso à justiça.
Em 2021, o CNJ publicou a resolução 425, que instituiu a Política Nacional de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades, conhecida como PopRuaJud. A política propõe que o atendimento à população em situação de rua deve ser humanizado, prioritário e buscar eliminar exigências que historicamente limitam o acesso à justiça.
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A norma cita a falta de documentos, vestimentas e condições de higiene adequadas como fatores que não podem ser impeditivos para o acesso ao sistema de justiça. Esses desafios devem ser contornados para garantir que a assistência ou orientação jurídica aconteça de forma célere, simplificada e efetiva.
Outra proposta prática importante é a atuação integrada entre os diversos órgãos que compõem o sistema de justiça, como tribunais, defensorias, Ministérios Públicos e o Executivo, sobretudo na relação com comitês interinstitucionais e equipes de diferentes políticas públicas, como assistência social e habitação. Essa articulação foi desenhada como forma de acolher de forma global as demandas das pessoas em situação de rua, que geralmente não se restringem a uma única área ou tema, já que compreendem múltiplas dimensões de vulnerabilidade.
Um dos pontos mais inovadores da resolução 425 é o incentivo ao atendimento itinerante. Baseado em outros modelos de políticas para a população em situação de rua, seu artigo 6º prevê que os tribunais devem estimular a prestação de serviços judiciais nos locais de circulação e permanência dessa população, como praças e serviços de acolhimento. O atendimento itinerante busca inverter a lógica dos mecanismos tradicionais de acesso à justiça, colocando o Judiciário na posição de busca ativa por essas pessoas.
Inspirados nessa proposta, são realizados, desde 2022, mutirões de atendimento à população em situação de rua. Com cinco edições apenas na cidade de São Paulo, os mutirões são realizados em locais estratégicos com presença dessa população e contam com órgãos judiciários federais e estaduais (tribunais, Justiça Eleitoral, defensorias, Ministérios Públicos), além de equipes da saúde e da assistência social dos municípios.
Para cumprir a diretriz de atendimento simplificado e intersetorial, juízes, desembargadores, defensores e promotores se colocam nas praças e ruas das maiores cidades do país para realizar a escuta de pessoas em situação de rua. A partir da escuta, são propostos encaminhamentos como emissão de documentos, acesso a benefícios previdenciários e assistenciais, atualização do CadÚnico, consulta e liberação de FGTS, defesa em processos criminais, assinatura de carteirinha de regime aberto, propositura de processos trabalhistas, regularização de pendências eleitorais e orientações diversas sobre direitos.
A concentração de diversos órgãos e equipes no mesmo espaço permite encaminhamento efetivo das demandas e evita que pessoas em situação de extrema vulnerabilidade precisem procurar diferentes equipamentos públicos esparsos pela cidade. Essa inversão de lógica – não é o cidadão que busca os diferentes serviços, mas os serviços que se disponibilizam para escuta e atendimento conjunto – permite que casos complexos sejam analisados em sua integralidade.
Além da integração das políticas, outro ganho relevante do formato é o contato “no nível da rua”, aqui entendido em formato literal (as trocas acontecem nas calçadas e praças da cidade) e no sentido proposto por Michael Lipsky (Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo no serviço público. ENAP, 2019), de interação direta entre usuários das políticas públicas e profissionais que representam o Estado.
No nível da rua, juízes, defensores, promotores, estagiários e técnicos são convidados a escutar e dialogar diretamente com usuários do sistema de justiça, (re)conhecendo suas vulnerabilidades, sejam eles autores ou réus, requerentes e requeridos.
Nesse momento de escuta, dimensões de formalismo excessivo do acesso ao judiciário podem ser contornadas, e questões extralegais, mas essenciais para a compreensão das diferentes situações, podem ser incorporadas às análises dos casos. A potência dessas interações no âmbito do sistema de justiça se torna ainda mais evidente tendo em vista o cenário tradicionalmente hermético e de baixa representatividade das instituições do Judiciário, marcado pelo distanciamento da realidade das populações vulnerabilizadas.
Após dois anos de mutirões em diferentes capitais do país e com a chegada do encontro nacional para tratar dos caminhos e próximos passos no atendimento de pessoas em situação de rua, a experiência de acesso à justiça “no nível da rua” tem se mostrado muito importante.
Há um ganho indiscutível para a população atendida, que passou a ser escutada e atendida de forma simplificada e integral. Mas há também um ganho relevante para a burocracia judiciária, que é convidada a conhecer os rostos e vozes dos cidadãos com quem interagem e compreender a realidade daqueles que buscam acessar direitos, apesar de todos os desafios impostos.