Alcance e limite dos crimes de corrupção passiva e ativa

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A condição de funcionário público nos crimes de corrupção é a “porta de entrada” para a tutela penal da Administração Pública, protegendo-a de agressões tanto internas quanto externas[1].

No Direito brasileiro, essas agressões são punidas por meio de diferentes tipos penais: a interna, na forma do art. 317 do CP (corrupção passiva), e a externa, na forma do art. 333 do CP (corrupção ativa), com diferentes redações e pressupostos. Um ponto dessa assimetria compõe o objeto deste texto: a abrangência (temporal e circunstancial) da condição de funcionário público nos crimes de corrupção.

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Tomemos os seguintes casos:

A, aprovado em concurso público e prestes a assumir o cargo, solicita propina a B (particular), comprometendo-se a praticar ato de ofício em seu benefício tão logo empossado;
B promete propina à A antevendo as atribuições funcionais formais[2] que lhe serão conferidas quando da assunção do seu cargo, sendo a promessa aceita por A antes mesmo da nomeação; e, por fim,
“A”, já exonerado do cargo, solicita propina a B como recompensa por ato que, ao tempo do exercício do cargo, praticou em seu benefício, sendo a solicitação atendida por B.

Nessas situações, estariam consumados os crimes de corrupção passiva e ativa (respectivamente, art. 317, caput, e art. 333, caput, ambos do CP)?[3]

A extensão do conceito de funcionário público no crime de corrupção passiva e suas repercussões no crime de corrupção ativa

O conceito de funcionário público está definido no art. 327 do CP: “considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” (art. 327, caput). A este equipara-se aquele que “exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal” (art. 327, §1º, primeira parte) ou que “trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” (art. 327, §1º, parte final).

A leitura do dispositivo indica que a qualidade especial de funcionário público para fins penais exige atualidade ou contemporaneidade no exercício de cargo, emprego ou função ou no trabalho em empresa contratada ou conveniada. O art. 327 do CP não fala, pois, em quem “exercerá” o cargo, mas em quem exerce. Não fala em quem “trabalhará”, mas em quem trabalha.

Porém, essa regra da atualidade ou contemporaneidade prevista no art. 327 do CP parece sofrer relevante modificação por ocasião dos crimes de concussão (art. 316 do CP) e corrupção passiva (art. 317 do CP). Nestes, é apresentada uma aparente “cláusula de extensão” (temporal e circunstancial) da condição de funcionário público com a inclusão da locução “ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela”.

A expressão estenderia a qualidade especial do sujeito ativo do art. 317 do CP para além da regra do art. 327 do CP, responsabilizando aquele que (i) solicita ou recebe vantagem indevida ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, (ii) ou aceita promessa de tal vantagem.

Mas, afinal, qual o sentido e alcance de “fora da função e “antes de assumi-la”?

Para a doutrina, “fora da função” compreenderia condutas praticadas pelo funcionário público enquanto “temporariamente afastado, como, por exemplo, férias, licença etc.”[4], desde que em razão do exercício do cargo[5]. São casos nos quais o agente, embora ostente vínculo ativo com a Administração Pública, pratica a conduta ao tempo em que está momentaneamente fora de suas atividades.

Essa definição atrai ao menos duas interpretações sobre a finalidade da expressão. De um lado, “fora da função” serviria como mero reforço da regra prevista no art. 327 do CP, que em si já pressuporia um vínculo do agente com o cargo ocupado, o qual não seria afetado por situações temporárias de afastamento, suspensão, férias, licença, etc. A expressão seria, portanto, supérflua e redundante, porque referidas situações já estariam abarcadas pelo art. 327 do CP.

De outro lado, se compreendida a regra do art. 327 do CP como algo que exige mais que a mera vinculação formal do funcionário público com a Administração Pública, mas um atual e contemporâneo exercício da função, não abarcando, por exemplo, aqueles que dela estão temporariamente afastados, a expressão “fora da função” indicaria propriamente uma “cláusula de extensão” do conceito de funcionário público para além das balizas do art. 327 do CP. Ela nada teria de supérflua ou redundante.

Evidentemente, adotar uma ou outra interpretação trará consequências práticas relevantes, inclusive porque nenhum outro tipo penal – além da concussão e da corrupção passiva – apresenta tal expressão. Se entendermos que ela traz algo a mais do que o art. 327 do CP, então talvez teríamos de afirmar que os demais tipos penais simplesmente não abarcam, como seus potenciais sujeitos ativos, aqueles funcionários que estão “fora da função” no sentido acima referido.

Do contrário, se entendermos que tais situações já estariam abarcadas pelo art. 327 do CP, então a expressão não traria maiores novidades. Em quaisquer dos casos, o que se pode afirmar com segurança é que o “fora da função” não poderá alcançar aqueles que “estão definitivamente desligados de seus cargos, pois desvestidos de qualquer poder ou ingerência na administração pública”[6].

“[A]ntes de assumi-la”, por sua vez, também não fica livre de controvérsias. Aqui, contudo, parecer haver uma inegável extensão da regra do art. 327 do CP. A dúvida residiria na abrangência dessa extensão. Vejamos o problema, por exemplo, do candidato a cargo político: a locução “antes de assumi-la” contemplaria a situação do candidato em campanha ou apenas daquele já eleito e que ainda não assumiu o cargo?

Ludmila Carvalho Gaspar de Barros Bello, tomando como pressuposto uma proximidade do agente à função que a Administração Pública exerce (“acesso especial ao bem jurídico”[7]), demandando a superação de uma barreira temporal a partir a qual lhe seja possível abusar do poder funcional[8], defende a aplicação da expressão “antes de assumi-la” apenas às “situações em que há uma expectativa concreta de que o agente se torne funcionário público”, com “um grau de certeza na assunção da função”[9].

É o caso de prefeito eleito que, entre o pleito e a posse, solicita vantagem indevida a particular em razão do exercício do cargo que virá a ocupar. Para essa compreensão, “só pode responder pela corrupção passiva quem é funcionário público, ou certamente o será. O tipo penal não se aplica a quem simplesmente deseja ser”[10]. Essa é a interpretação que nos parece mais adequada à expressão “antes de assumi-la” e que aqui adotamos.

Uma vez apontadas as questões internas à locução ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, uma última situação também poderia suscitar alguma controvérsia: qual o alcance dessa expressão frente às condutas do art. 317 do CP – “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”?

A estrutura do tipo, ao separar, de um lado, as condutas de solicitar e receber vantagem indevida, seguidas da locução “ainda que fora da função ou antes de assumi-la”, e, de outro, a conduta de aceitar promessa de tal vantagem, poderia indicar que a “cláusula de extensão” da qualidade especial estaria limitada tão somente às primeiras modalidades típicas (solicitar ou receber), não permitindo aplicá-la à última (aceitar promessa de tal vantagem).

A conduta de aceitar, portanto, remanesceria vinculada à regra da atualidade ou contemporaneidade da condição de funcionário público, nos termos do art. 327 do CP. Para essa interpretação restritiva – que, sabemos, é muito diversa da que comumente se vê[11]–, aquele que aceita promessa de vantagem indevida fora do exercício da função ou antes de assumir a condição de funcionário público simplesmente não cometeria o crime de corrupção passiva.

Apesar de se tratar de uma interpretação bastante heterodoxa do art. 317 do CP, o seu paralelo com a corrupção ativa (art. 333 do CP) poderia indicar certa simetria interpretativa. Isso porque o art. 333 do CP pune a oferta ou a promessa de vantagem indevida dirigida a funcionário público, isto é, àquele que, na forma do art. 327 do CP, atual ou contemporaneamente exerce cargo, emprego ou função pública ou trabalha em empresa contratada ou conveniada, com vínculo ativo (ainda que transitório ou sem remuneração) com a Administração Pública.

Não há, no crime de corrupção ativa, a dita “cláusula de extensão” prevista na modalidade passiva (art. 317 do CP), exigindo-se que a oferta ou promessa seja dirigida a “funcionário público” propriamente dito. Essa constatação reforçaria o argumento de que a modalidade “aceitar promessa”, prevista no art. 317 do CP, não poderia abarcar a expressão “ainda que fora da função ou antes de assumi-la”, justamente para harmonizá-la com a modalidade “prometer” prevista no art. 333 do CP.

Do contrário, admitiríamos como típica para corrupção passiva a conduta daquele que aceitou promessa de vantagem indevida antes de tomar posse no cargo, mas atípica para corrupção ativa a daquele que lhe prometeu a vantagem.

Ocorre que, como toda ação tem uma reação, aqui não seria diferente. Adotar essa interpretação restritiva, embora possa conferir maior simetria entre os tipos penais da corrupção ativa e passiva, traz, ao mesmo tempo, dilemas hermenêuticos internos ao delito do art. 317 do CP.

Se considerada, responderia por corrupção passiva o candidato eleito que, ainda não investido no cargo, recebesse vantagem indevida de particular em razão do seu futuro mandato, mas o mesmo candidato não seria responsabilizado se, horas antes, houvera apenas aceitado a promessa vindo de outro. Um desalinhamento digno de reflexão.

Tamanho labirinto hermenêutico talvez sugira que a expressão “ainda que fora da função ou antes de assumi-la”, embora lá presente há quase um século, siga merecendo cuidadosa análise. Talvez tantas dificuldades apenas reforcem a ideia de que a assimetria na redação típica entre os delitos de corrupção passiva e ativa não permita harmonizá-los.

A forma passiva (art. 317 do CP) segue mais abrangente do que a ativa (art. 333 do CP), inclusive pela referida “cláusula de extensão” do conceito de funcionário público, que, apesar do possível debate, abarcaria, sim, a totalidade das modalidades típicas do art. 317 do CP (solicitar, receber e aceitar).

De todo modo, chama a atenção o fato de que o projeto de novo Código Penal (PLS 236/2012) pretendeu extirpar do crime de corrupção passiva tal “cláusula de extensão”, propondo a seguinte redação: “Art. 276. Exigir, solicitar, receber ou aceitar promessa de receber, para si ou para outrem, vantagem indevida, direta ou indiretamente, valendo-se da condição de servidor público”. Uma mudança que – acertada ou não – traria efeitos sistemáticos relevantes no âmbito dos crimes contra a Administração Pública.

Proposta de resolução dos casos narrados

A partir dos casos propostos e dos conceitos acima explorados, é possível sugestionar-se que:

considerando a solicitação de vantagem indevida por A quando já aprovado em concurso público, com grau de certeza na assunção da função, poderia lhe ser atribuída a condição extensiva de funcionário público (antes de assumir a função), nos termos do art. 317 do CP;
considerando que o crime de corrupção ativa (art. 333 do CP) estaria vinculado à regra da contemporaneidade prevista no art. 327 do CP, B teria prometido vantagem indevida àquele que, ao tempo da conduta, não era funcionário público (nos termos do conceito do art. 327 do CP), ausente a elementar prevista no art. 333 do CP. A, por sua vez, teria aceitado a promessa de vantagem antes de assumir a função, conduta que, a depender da interpretação adotada, poderia ou não se sujeitar à “clausula de extensão” da condição de funcionário público prevista no art. 317, problema hermenêutico acima identificado em suas variadas matizes; e
por fim, a solicitação de A foi realizada quando definitivamente desvinculado da administração pública, situação que não corresponde ao conceito de funcionário público como sujeito ativo do art. 317 do CP; B, por sua vez, teria pago (conduta tampouco prevista no art. 333 do CP) vantagem indevida àquele que não era, ao tempo da ação, funcionário público, considerando a vinculação do art. 333 do CP à contemporaneidade ou atualidade prevista no art. 327 do CP.

[1] SCALCON, Raquel Lima. A condição de funcionário público no direito penal: conceitos, distinções e casos. 1ª. ed. – Florianópolis: Emais, 2021, p. 32.

[2] O crime de corrupção ativa – diferentemente do correlato crime de corrupção passiva – “exige que a vantagem indevida seja oferecida ou prometida para determinar que funcionário público pratique, omita ou retarde ato de ofício, isto é, que está dentro de suas atribuições funcionais formais” (STJ, REsp 1.745.410/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. p/ Acórdão Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 02/10/2018, publicado em 23/10/2018).

[3] A discussão e as inquietudes objeto deste texto tiveram como palco inicial as aulas do Mestrado Profissional em Direito Penal Econômico da FGV Direito SP.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Volume 5, 18. ed., São Paulo: Saraiva Jur, p. 78. Para Juliano Breda, “[a] expressão fora da função, em conexão com o bem jurídico, parece mais coerentemente ligar-se apenas às hipóteses específicas de licença ou afastamentos transitórios” (BREDA, Juliano. Corrupção, lavagem de dinheiro e política. 1. ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2022, p. 60). E, para Guilherme Nucci, seria “fora da função (suspenso ou de licença)” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 1053).

[5] GRECO, Luís; TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Crime e Política: Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 44.

[6] STJ, EDcl no AgRg no RHC n. 123.419/DF, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Rel. p/ Acórdão Min. João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 2/9/2022. No mesmo sentido, em caso no qual a solicitação ocorreu quando já extinto o vínculo com a administração pública, o STJ entendeu inexistir ofensa à “dignidade e o prestígio do poder publico”, de modo que “não ficou configurado o crime de corrupção passiva, uma vez que a conduta atribuída à acusada não foi por ela praticada durante o exercício de função pública” (STJ, REsp 1.716.072/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 15/03/2018, publicado em 30/04/2018).

[7] SCALCON, Raquel. O Conceito Penal de Funcionário Público no Direito Brasileiro e Alemão: Uma proposta de interpretação restritiva do termo Emprego Público e empresas estatais (Art. 327, Caput, CP). In: Revista de Estudos Criminais, vol. XVIII, n. 72, p. 111-145, jan./mar., 2019, p. 119.

[8] GRECO, Luís; TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Crime e Política: Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 29/32.

[9] BELLO, Ludmila Carvalho Gaspar de Barros. A responsabilidade criminal do candidato a cargo eletivo e o crime de corrupção passiva. 2021. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2021. p. 119. No mesmo sentido, Juliano Breda aponta que “deve-se exigir, por força a configuração do tipo como crime especial e da necessidade de colocação em risco do bem jurídico, que o exercício da função não seja um evento incerto e improvável” (BREDA, Juliano. Corrupção, lavagem de dinheiro e política. 1. ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2022, p. 62).

[10] BELLO, Ludmila Carvalho Gaspar de Barros. A responsabilidade criminal do candidato a cargo eletivo e o crime de corrupção passiva. 2021. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2021. p. 137. Essa posição, em certa medida, se assemelha com a definição prevista na Convenção de Mérida (“Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção” – Decreto nº 5.687/2006), ao considerar funcionário público aquele “já designado ou empossado” (art. 2, “a”).

[11] Na jurisprudência: “A configuração desse delito em questão pressupõe a solicitação, recebimento ou aceitação de promessa da vantagem indevida por parte de funcionário público, mesmo que ainda não se encontre investido na função, mas a utilize como o objeto da contraprestação a ser adimplida no negócio espúrio” (STF, AP 1015, voto vencedor do Rel. Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 10/11/2020, publicado em 28/04/2021). Na doutrina clássica: “Não é necessário que o agente se ache no exercício atual da função. Diz a lei: ‘ainda que fora da função ou antes de assumi-la’. O que é indispensável é que a recompensa seja solicitada ou recebida, ou seja aceita a correspondente promessa, ‘em razão da função’ (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. IX – arts. 250 a 361, Revista Forense: Rio de Janeiro, 1958, p. 367/368). No mesmo sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Volume 5, 18. ed., São Paulo: Saraiva Jur, p. 79.

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