Breves considerações sobre a litigiosidade trabalhista no Brasil

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No último dia 29 de abril, por iniciativa do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi realizada, na sede do CNJ, uma reunião com o propósito de debater a litigiosidade trabalhista, que contou com a presença de representantes da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, de sindicatos patronais e de empregados, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), professores universitários, múltiplas autoridades e estudiosos do tema.

Em atendimento a pedido formulado pelo próprio ministro, os autores[1] prepararam este estudo, que foi por ele apresentado na reunião e, posteriormente, também referenciado em discurso proferido por Sua Excelência na solenidade de abertura do 21º Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, da Anamatra, em 1º de maio de 2024.

A despeito de os subscritores serem todos discentes ou egressos do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da UERJ, este breve artigo reflete apenas dados, pesquisas, proposições e contribuições advindas de cada um deles, cada qual com perspectivas diversas e inclusive bastante distintas, sem que o seu conteúdo reflita posição oficial da UERJ ou de qualquer outra instituição. Ressalta-se, ainda, que as informações aqui expressas foram inseridas unicamente na tentativa de contribuir para a abertura de um debate plural, dialético, transparente e democrático sobre um tema tão relevante, diretamente relacionado à tutela de direitos sociais, preservação da dignidade humana e o atingimento dos objetivos fundamentais insculpidos na Constituição da República.

O mercado de trabalho brasileiro e suas peculiaridades

A fim de se compreender a litigiosidade trabalhista no Brasil, o primeiro passo lógico – e mais importante – é o de buscar conhecer a realidade do mercado de trabalho no país. Uma de suas características mais marcantes é a alta rotatividade nos postos de trabalho, diretamente relacionada à baixa produtividade esperada de um indivíduo/trabalhador. Além do insatisfatório nível (e qualidade) de educação formal, contribui para a baixa produtividade da mão de obra a falta de investimentos em treinamentos por parte das próprias empresas tomadoras do trabalho – decorrente, em muitos casos, da própria rotatividade exacerbada nos postos de emprego, formando um verdadeiro círculo vicioso. Soma-se a isso um sistema de proteção social no desemprego[2] com pouco foco – e com pouca alocação de recursos – em políticas ativas, voltadas para o preparo e a recolocação do indivíduo no mercado de trabalho.

Outra característica marcante do mercado de trabalho brasileiro é a informalidade, um traço comum entre os demais países da região da América Latina e do Caribe.[3] No terceiro trimestre de 2023, no Brasil,[4] havia 51,499 milhões de empregados do setor privado, sendo 37,973 milhões com carteira assinada e 13,527 sem carteira assinada (na informalidade). No serviço doméstico, a situação mostra-se ainda mais dramática, com um contingente de 4,614 milhões de trabalhadores na informalidade (sem carteira de trabalho assinada) e 1,422 milhões devidamente registrados no mesmo período.[5]

Reflexo da informalidade são os menores rendimentos destes trabalhadores quando comparados àqueles que estão no setor formal. Dados da PNAD Contínua (IBGE) relativos ao terceiro trimestre de 2023 apontam um rendimento médio mensal de R$ 2.841,00 entre os trabalhadores do setor privado com carteira assinada contra R$ 2.095,00 daqueles que não tiveram os contratos formalizados. A situação, mais uma vez, é dramática para o setor doméstico, cujos informais apontaram um rendimento médio mensal de R$ 992,00, valor inferior a um salário mínimo.

Alguns outros fatores são relevantes para se compreender o mercado de trabalho brasileiro, particularmente mudanças mais recentes nas formas de organização da produção e do trabalho, além do incremento do trabalho por conta própria, com consequente desagregação da classe trabalhadora, o que é visível nos dados que revelam queda constante nos níveis de sindicalização desde 2013, atingindo 9,2% das pessoas ocupadas em 2022.[6]

Importante peculiaridade – certamente com reflexo na litigiosidade trabalhista – é o perfil do empregador brasileiro. As micro e pequenas empresas constituem 99% dos 6,4 milhões de estabelecimentos no Brasil e são responsáveis por 52% dos empregos com carteira assinada no setor privado. No entanto, tais empresas constituem, após os Microempreendedores Individuais (MEI), o segmento empresarial com maior taxa de insucesso – 21,6% fecham as portas após cinco anos de atividade.[7] Ainda, a maior taxa de encerramento de atividades empresariais é encontrada no setor do comércio (30,2%), aquele que mais emprega no país.

Em que pese tamanha participação no mercado de trabalho, não há praticamente qualquer tipo de proteção ou tratamento diferenciado da legislação trabalhista com relação aos micro e pequenos empregadores.

O perfil do empregador brasileiro (bastante pulverizado) também se reflete nos dados sobre a litigiosidade trabalhista. Enquanto os 20 maiores demandados em ações trabalhistas respondem por 7,51% dos novos casos ajuizados no primeiro grau da Justiça do Trabalho nos últimos 12 meses, na Justiça Estadual eles foram réus em 13,72% das novas ações (também no 1º grau).[8]

Este pequeno resumo está longe de poder representar a complexidade e a totalidade de informações necessárias para que se permita uma visão acurada das características e do modo de funcionamento do mercado de trabalho brasileiro. Contudo, traz elementos que já podem sinalizar alguns pontos que permitam compreender a litigiosidade trabalhista no Brasil.

A alta rotatividade no mercado de trabalho, por exemplo, pode ser aferida a partir de dados do CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados),[9] que reúne informações sobre admissões e dispensas. Em comparação com dados do CNJ[10] sobre o número de demandas trabalhistas, observam-se, e.g., 21.774.214 extinções contratuais no ano de 2023, ao passo que houve o ajuizamento de 1.832.443 ações trabalhistas em no mesmo período (8,41% do total dos rompimentos contratuais), não se mostrando verdadeira, portanto, a máxima de que “todo trabalhador dispensado busca socorro na Justiça do Trabalho”.

O incremento de novas formas de trabalho e a correta classificação destas relações – um problema que atinge o mundo todo –, embora não represente percentual expressivo do volume de demandas trabalhistas[11], também deve ser considerado. Segundo a OIT,[12] na maioria dos sistemas legais vige um sistema binário (emprego X trabalho autônomo), em que apenas o emprego subordinado é objeto de regulamentação protetiva. Isso faz com que a correta classificação das relações como de emprego seja uma questão central para que se forneça proteção aos trabalhadores. A OIT, inclusive, editou a Recomendação nº 198/2006, enumerando uma série de princípios para auxiliar os países na elaboração de políticas que abordem a classificação incorreta de emprego.

No Brasil, além do Judiciário Trabalhista, destacam-se as atuações do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na classificação das relações de emprego a partir de suas atividades fiscalizatórias. Não se pode deixar de considerar, contudo, que a Justiça do Trabalho é o foro em que se discutem eventuais controvérsias sobre o tema. Assim, o impacto das novas tecnologias nas relações de trabalho provoca, necessariamente, novos litígios, tanto no Brasil, como no resto do mundo, haja vista o caminho de incertezas que todos os atores dessas recentes modalidades de trabalho vêm trilhando. Estudo realizado no já distante ano de 2017 indica que umas das plataformas digitais mais operantes no planeta, já àquela época enfrentava litígios judiciais em 25 países, sendo um terço das ações voltadas a discutir direitos trabalhistas dos motoristas de aplicativo.[13]

Outro ponto de destaque diz respeito à competência administrativa do MTE para reconhecer a existência de relação de emprego, o que enseja reflexo no ajuizamento de um sem número de ações. Apesar da reiterada jurisprudência do TST[14] no sentido de que os Auditores Fiscais do Trabalho têm competência para reconhecer a existência de vínculo de emprego quando verificam o preenchimento dos requisitos legais,[15] o STJ[16] foi pelo caminho contrário. O STF ainda não pacificou o tema,[17] e as demandas que têm esse objeto central seguem se avolumando.

Vê-se, assim, que há uma miríade de fatores que influenciam a litigiosidade trabalhista no Brasil, sendo alguns deles comuns a outras nações.

Uma breve análise econômica da Justiça do Trabalho[18]

Considerando uma economia altamente globalizada e competitiva, é comum escutarmos de empresários, economistas e, até mesmo juristas, que a Justiça do Trabalho é responsável pelas crises econômicas, desemprego, atraso e baixa competitividade das empresas nacionais.

A nosso ver, essas afirmações podem, de alguma forma, se sustentar sob alguma perspectiva. Afinal, como argumenta Armando Castelar Pinheiro,[19] “um sistema que funciona bem deve ostentar quatro propriedades: baixo custo e decisões justas, rápidas e previsíveis, em termos de conteúdo e prazo”.

Embora extremamente mais célere que os demais ramos do Judiciário brasileiro, quando analisados os primeiro e segundo graus de jurisdição, a morosidade é perceptível no âmbito do TST. Dados do CNJ (Portal Estatísticas do Poder Judiciário) dos últimos doze meses apontam que, na Justiça do Trabalho, o tempo médio entre o início da ação judicial e o primeiro julgamento, no primeiro grau de jurisdição, foi de 541 dias, contra 781 na Justiça Estadual e 988 da Justiça Federal. Já no segundo grau, o tempo médio para o primeiro julgamento na Justiça do Trabalho é de 158 dias, pouco abaixo da Justiça Estadual (196 dias) e bem abaixo da Justiça Federal (481 dias). Já no TST, o tempo para o julgamento foi, nos últimos 12 meses, de 384 dias, muito acima, por exemplo, do STJ (141 dias).

Por outro lado, fato é que a Justiça do Trabalho mostra ter (1) o melhor percentual de conciliação dentre todos os ramos do Judiciário – 29,20% em 2023, contra 12,67% na Justiça Estadual e 2,42% na Justiça federal[20]; (2) a maior eficiência em sede de execução – ou seja, é a Justiça que mais arrecada e que, portanto, efetivamente apresenta o melhor retorno aos seus jurisdicionados; (3) o menor percentual de todas as ações curso no Judiciário nacional, correspondendo a cerca de 6,58% do total de ações em tramitação ao final do ano de 2023 (de um total de 82.433.539 processos em tramitação no Judiciário nacional, 5.424.290 estavam na Justiça do Trabalho); e (4) quanto aos casos novos distribuídos no Judiciário em 2023, 10,1% foram dirigidos à Justiça do Trabalho, o que a coloca em 3º lugar no ranking, atrás da Justiça Federal (14,1%) e da Justiça Estadual (72,9%).

Longe de se procurar justificar este número (que ainda é visivelmente alto), o que se pretende é chamar atenção para o fato de que a litigiosidade é uma mazela da cultura brasileira – e que a Justiça do Trabalho não é seu maior protagonista.

O questionamento, portanto, que se faz é se as premissas por trás das conclusões reproduzidas no primeiro parágrafo desta seção são, efetivamente, acuradas.

Será a Justiça do Trabalho responsável por gerar desempregos ou será uma economia frágil, instável, enfraquecida quem leva à alta rotatividade, à informalidade e/ou à impossibilidade de os empregadores cumprirem integralmente com a legislação trabalhista?

Em quase metade dos Tribunais Regionais do Trabalho, o assunto mais recorrente nas Varas do Trabalho é o pagamento de verbas rescisórias. No maior Tribunal trabalhista do Brasil (TRT São Paulo), o assunto mais recorrente é a indenização de 40% sobre os depósitos do FGTS em razão da dispensa imotivada. Em geral, segundo dados do TST, os assuntos mais recorrentes nas Varas do Trabalho são: indenização de 40% sobre os depósitos do FGTS, horas extras, verbas rescisórias, multa do §8º do art. 477 da CLT (devida quando o empregador não paga as verbas rescisórias dentro do prazo legal) e adicional de insalubridade.[21] Vê-se, assim, que as matérias mais debatidas decorrem do descumprimento de obrigações basilares.

A análise desse cenário indica a importância de se repensar o tratamento dado pela legislação trabalhista às micro e pequenas empresas.

A busca pelo aumento da formalização no mercado de trabalho é um objetivo do legislador, constando também das diretrizes de organismos internacionais, dentre os quais a OIT. Este ponto é sensível, principalmente diante de evidências da relação entre o aumento do número de vínculos trabalhistas (formalidade) e a queda dos acionamentos da Justiça do Trabalho.

De acordo com estudo de 2017 apresentado por Alessandro da Silva,[22] é possível correlacionar a redução do número de ações trabalhistas com o aumento do número de vínculos de emprego. Quanto maior a informalidade, maior a tendência de acionamento do judiciário trabalhista:

Ano
Número de ações
Número de vínculos
Taxa de acionamento 1

2002
1.614.255
34.074.864
4,73%

2003
1.706.778
34.839.220
4,89%

2004
1.607.163
37.281.447
4,31%

2005
1.748.966
39.966.708
4,37%

2006
1.779.307
42.505.996
4,18%

2007
1.838.847
46.065.567
3,99%

2008
1.918.049
50.690.227
3,78%

2009
2.121.806
51.834.048
4,09%

2010
2.009.004
57.159.222
3,51%

2011
2.135.216
61.181.011
3,48%

2012
2.264.540
63.396.151
3,57%

2013
2.371.210
65.126.321
3,64%

2014
2.365.547
65.842.460
3,59%

2015
2.659.007
61.986.653
4,28%

Fonte: Silva, 2017.

Na mesma pesquisa, o autor concluiu que a taxa de acionamento da Justiça do Trabalho é sensivelmente maior de acordo com o aumento da taxa de desemprego. Assim, a motivação dos trabalhadores ao ingressarem com ações judiciais está diretamente ligada à sua condição social: trabalhadores desprovidos de meios de produção, que buscam estratégias de sobrevivência em períodos de desemprego, nos quais não conseguem vender seu único bem, a própria força de trabalho, tendem a acionar o Poder Judiciário.

A litigiosidade trabalhista diminuiu expressivamente após a vigência da Lei nº 13647/2017 (Reforma Trabalhista)

Outro aspecto relevante é o de que movimentos legislativos anteriores (especialmente a Reforma Trabalhista) cuidaram de reduzir de forma contundente a litigiosidade trabalhista.

Conforme Relatório da Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do TST, houve uma queda de 34% no número de novas ações, quando comparado o ano de 2018 com o de 2017 (1.748.074 contra 2.756.156)[23]/[24].

O número de novas ações manteve-se estável em 2019 (1.819.491)[25] e sofreu nova redução em 2020 (1.473.056)[26]. Em 2021, foram 1.551.073 novos casos, em 2022, 1.648.535, e, em 2023, 1.855.611.[27] Portanto, observa-se um aumento na litigiosidade a partir de 2021, embora sem que se alcançasse o patamar anterior à Reforma.

Por outro lado, não houve um fenômeno similar nos demais ramos do Judiciário.

O direito do trabalho no Brasil não é “super rígido” em comparação com os EUA ou demais países da Europa e América Latina

No último dia 23/4/2024, o jornalista Carlos Juliano Barros[28] publicou entrevista realizada com o professor da Universidade de Cambridge, Simon Deakin, que coordenou amplo estudo realizado pela OIT (que será publicado em breve) sobre a evolução da legislação trabalhista em 117 países, nos últimos 50 anos. De acordo com o jornalista, a base de dados cobre 95% do PIB mundial.

De forma bastante resumida, o estudo concluiu o seguinte:

As leis trabalhistas ao redor do mundo têm se fortalecido desde a década de 1970, apesar de algumas oscilações – especialmente nos países da América do Sul, durante governos militares: “Mas não foi uma desregulamentação tipicamente neoliberal. Foram os militares reprimindo o direito de greve, esse tipo de coisa. E não foi uma mudança permanente. Quando a democracia voltou à América do Sul, as pontuações subiram novamente.”
O Brasil tem uma legislação trabalhista menos rígida que a de nações europeias e em linha com as sul-americanas;
Os EUA são menos protetivos em matéria trabalhista do que a média, porém, há leis especialmente mais fortes do que em qualquer outro país, como a lei contra discriminação – e essas informações não são absorvidas por esse índice apresentado nesse estudo.
Os EUA estão na parte mais baixa do índice, mas há uma razão para isso: o salário-mínimo nesse país é relativamente alto para os padrões internacionais e o impacto do salário-mínimo também não é codificado pelo índice. Mas, como o salário-mínimo é alto, há bastante estabilidade no emprego, mesmo que a lei não exija isso.
Não é possível afirmar que os direitos trabalhistas aumentem os custos trabalhistas e, consequentemente, prejudiquem a criação de empregos na medida em que um emprego estável gera produtividade e obriga as empresas a recrutarem com mais cuidado e oferecerem treinamentos para retenção de trabalhadores, gerando incentivos para ambos os lados.
Quanto mais rigorosa é a lei, mais protegidos os trabalhadores ficam e mais dispostos a compartilhar conhecimento com a empresa, o que impacta na inovação: “O número de startups no setor de alta tecnologia aumentou. O número de pessoas empregadas nessas empresas aumentou, e o número de patentes aumentou. Este não é um caso trivial — é o caso do Vale do Silício, presumivelmente.”

Litigiosidade trabalhista brasileira litigiosidade trabalhista estadunidense

Considerando essa latente comparação entre a litigiosidade trabalhista brasileira e a estadunidense, o então aluno do mestrado da UERJ e juiz do trabalho, João Renda Leal Fernandes (um dos subscritores do presente artigo), aprofundou seus estudos e – após três semestres na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard – publicou uma densa pesquisa, que se transformou no livro “O mito EUA – Um país sem direitos trabalhistas?”, já em sua 3ª edição.[29]

Também de forma bastante breve, João Renda conclui que, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde o Direito do Trabalho é basicamente uniforme em todas as unidades federativas, com a quase totalidade da litigância trabalhista concentrada no sistema oficial da Justiça do Trabalho, integrante do Poder Judiciário da União, uma realidade que facilita o armazenamento de dados via PJe e sua consolidação no Justiça em Números do CNJ, nos EUA, o sistema jurídico trabalhista – neste incluídos os principais canais para a resolução de conflitos advindos das relações laborais – é totalmente descentralizado e pulverizado. Como assevera o juiz federal americano Peter J. Messitte, “o sistema jurídico trabalhista nos Estados Unidos não é unificado: ao contrário, diverso e fragmentado.”[30]

Por isso, torna-se praticamente impossível saber o tamanho da litigiosidade trabalhista nos EUA, já que há inúmeras formas (públicas e privadas) de resolução de disputas trabalhistas naquele país:

sistemas internos de resolução de disputas (grievance proce­dures) comumente previstos em regulamentos de empresa ou em acordos coletivos celebrados nos ambientes de trabalho sindicalizados;
arbitragem prevista em acordos coletivos (grievance arbitration);
arbitragem prevista em acordos individuais (employment arbitration);
mediação;
diferentes sistemas de Justiça administrativa (nas esferas federal e estadual) espalhados por todo o país, com a existência de múltiplos órgãos e agências com poderes tipicamente perse­cutórios e jurisdicionais; e
ações judiciais (individuais ou coletivas) na Justiça Federal ou nas Justiças estaduais.

Na tabela a seguir, João Renda listou didaticamente as principais diferenças relativas à litigância trabalhista nos dois países, com menção a aspectos históricos que justificam alguns dos principais pontos de contraste:

Brasil
EUA

Civil law
Common law ou misto

(precedentes como principal fonte de Direito)

No passado, Estado unitário

e centralizador de poder

Federação por desagregação

(ou com movimento centrífugo de formação)

No passado, 13 ex-colônias britânicas

declaradas independentes

Federação por agregação

(ou com movimento centrípeto de formação)

União detém competência legislativa exclusiva para a edição de leis sobre direito do trabalho e processo do trabalho (art. 22, I, CRFB)
Competência legislativa residual ampla aos estados, inclusive para editar leis em matéria trabalhista

(Décima Emenda e preemption doctrine)

Direito do Trabalho uniforme em todas as unidades da federação
Direito do Trabalho variável entre os estados

Federalismo por competição

(“Guerra fiscal” trabalhista)

Opção histórica pela existência de um sistema oficial, unificado e especializado na resolução de conflitos trabalhistas
Canais de acesso à justiça múltiplos, descentralizados e pulverizados

Vasta utilização de procedimentos extrajudiciais privados (destaque para a arbitragem e para os sistemas de resolução interna de disputas – grievance procedures – comumente previstos em regulamentos de empresa ou cláusulas de acordos coletivos)

Sistemas de Justiças administrativas (federais e estaduais) espalhadas por todo o país, com a existência de múltiplos órgãos e agências com poderes tipicamente persecutórios e decisórios

Judiciário → class actions e ações individuais

Cultura da litigância por meio de ações judiciais propostas individualmente
Cultura de demandas coletivas, tanto na esfera administrativa quanto na judicial (elevados custos para litigar individualmente no Judiciário)

Dados sobre ações judiciais revelam a maior parte da litigância trabalhista no país
Dados sobre ações judiciais (individuais ou coletivas) revelam apenas uma pequena parcela de todo o universo da litigância trabalhista

Facilidade na obtenção de números e estatísticas sobre a litigância trabalhista
Grande dificuldade na obtenção de números e estatísticas sobre a litigância trabalhista

Alta litigiosidade trabalhista em ambos os países

Em resumo, não nos parece acurado afirmar que a litigiosidade trabalhista no Brasil é superior à dos EUA, na medida em que não há dados empíricos a corroborar tais assertivas.

Nos EUA, há agências e órgãos administrativos (nas esferas estaduais e federal) que funcionam como um grau de jurisdição oficial – ou até mesmo obrigatório, em alguns casos – para resolução de conflitos em matérias que envolvem, por exemplo, organização coletiva, sindicalização, greves e práticas antissindicais (National Labor Relations Board), discriminação no emprego e assédio no ambiente de trabalho (Equal Employment Opportunity Commission e dezenas de agências estaduais congêneres), acidentes de trabalho e doenças ocupacionais (múltiplas Workers’ Compensation Boards espelhadas pelos estados), fraudes à relação de emprego, salário-mínimo, horas extras e questões relativas ao trabalho de crianças e adolescentes (Wage and Hour Division e órgãos estaduais correlatos).

Além disso, mais de 95% da litigância judicial estadunidense está concentrada no Judiciário dos estados, e não na Justiça Federal, sendo que a classificação dos temas objeto de litigância – sensivelmente distinta da utilizada na praxe brasileira – dificulta sobremaneira a consolidação de dados referentes a uma litigiosidade que, no Brasil, tem a sua resolução concentrada no canal unificado da Justiça do Trabalho, ramo especializado do Poder Judiciário da União.

Outro aspecto digno de nota é o fato de que, no Brasil, predomina a cultura de ajuizamento individual de ações trabalhistas, enquanto nos EUA são largamente utilizados procedimentos coletivos, não apenas na esfera judicial (class actions), mas também em canais administrativos oficiais, o que acaba por dificultar qualquer análise comparativa baseada em números absolutos de reclamações administrativas ou ações ajuizadas.

Uma análise comparativa minimamente séria quanto à litigância trabalhista nos dois países não poderia, portanto, desconsiderar todos esses dados.

O necessário debate sobre formas alternativas de solução de conflitos trabalhistas

Uma das tentativas mais relevantes de se instituir um método de solução de conflitos trabalhistas extrajudicial e alternativo ao Poder Judiciário foi a instituição das Comissões de Conciliação Prévia (CCP) em 2000, por meio da Lei n. 9.958. A previsão, contudo, de que seria obrigatória a passagem pela CCP antes do ajuizamento de uma demanda judicial foi declarada inconstitucional pelo STF (ADI 2139).

Entendemos haver espaço para novas iniciativas de valorização dos Sindicatos, obviamente que não esbarrem no direito fundamental de acesso à justiça, por se tratar de um foro coletivo em que as partes, ao menos em tese, têm igualdade de armas nas negociações.

Mais recentemente, com a Reforma Trabalhista de 2017 (Lei n. 13.467), incluiu na CLT o art. 507-A, prevendo a possibilidade de cláusula compromissória de arbitragem nos contratos individuais de trabalhadores cuja remuneração seja superior a duas vezes o teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), portanto, o que hoje equivale a R$ 15.572,04.

O TST, contudo, continua apli­cando, integralmente, o Precedente de Uniformização de Jurisprudência de 2015 dessa Corte, o qual declarou a arbitragem incompa­tível com os dissídios de natureza individual. Não consideram, assim, a existência de novo permissivo legal autorizando sua prática. O STF ainda não se manifestou sobre o tema.

A aluna Julia de Castro Tavares Braga (ora subscritora do presente artigo) realizou detalhada análise das recentes decisões proferidas pelo TST sobre arbitragem trabalhista para dissídios individuais, que será, inclusive, publicada em breve pela editora Quartier Latin.

Embora apenas ínfima parte dos trabalhadores brasileiros se enquadre nesta condição – quase 70% dos trabalhadores brasileiros recebem até dois salários mínimos –, não se pode desprezar esta forma de solução de conflitos, em especial diante das recentes orientações do STF quanto a empregados hipersuficiente ou mesmo quanto à eficácia liberatória geral do Plano de Incentivo à Dispensa Voluntária (Tema 152 da Tabela de Repercussão Geral do STF).

Contudo, essa problemática não é restrita à Justiça do Trabalho, havendo uma cultura nacional propensa à litigiosidade, cuja mudança passa, necessariamente, por uma análise da própria formação dos profissionais do Direito.

As faculdades de direito estão preparadas para lecionar teoria dos jogos, análise econômica do direito, negociação e demais métodos autocompositivos?

Analisando-se o currículo de graduação de quatro das mais renomadas faculdades públicas de direito do País, observa-se que, em todas, as disciplinas relacionadas aos métodos extrajudiciais de solução de disputas são eletivas/optativas.

Na grade de disciplinas eletivas da Faculdade de Direito da USP identifica-se a matéria “Sistemas Alternativos de Solução dos Conflitos Trabalhistas I – Aspectos Teóricos e Conceitos Fundamentais”. Já na grade de disciplinas eletivas da UFPE, tem-se a matéria “prática de solução de conflitos I – negociação departamento da teoria geral do direito e direito privado”. Na grade curricular de eletivas da UFRJ, consta como disciplina eletiva “negociação, mediação e arbitragem”. O mesmo se dá em relação à UERJ.

Mesmo diante das críticas à morosidade do Judiciário, a prática demandista no Brasil é a regra. O brasileiro prefere resolver seus conflitos através do processo judicial, pois entende ser este o único meio pelo qual garantirá seus direitos e alcançará soluções justas.

Uma nova perspectiva para as demandas frívolas, predatórias e temerárias

Será que dificultar o acesso ao Judiciário trabalhista é a solução? Ou o melhor caminho é pesquisar, apresentar, fomentar e validar novas formas de soluções de conflitos?

Parece-nos que, ao invés de criar mecanismos que coíbam o ajuizamento das chamadas “aventuras judiciais” – colocando em xeque a gratuidade de justiça e, ato contínuo, o acesso à justiça –, seria de maior proveito disciplinar e regulamentar mecanismos que, de fato, penalizem as partes e, principalmente, os advogados, responsáveis pelo ajuizamento de demandas frívolas, predatórias e lides temerárias.

Da mesma forma, a OAB deveria trabalhar para valorizar o advogado probo e ético. Trabalhar para que não apenas o legislativo aprove medidas de punição financeira e reputacional para advogados com esse perfil, como ela própria deve aprimorar seus mecanismos punitivos.

Proposições para o debate (de autoria de Julia de Castro Tavares Braga)

Fomento à negociação extrajudicial.
Manifestação do STF sobre a constitucionalidade da arbitragem e mediação trabalhista para dissídios individuais envolvendo empregados hipersuficientes.
Regulamentação da mediação privada para litígios individuais.
Melhorar o sistema de jurisdição voluntária da Justiça do Trabalho (homologação de acordo extrajudicial disciplinado nos arts. 855-B a 855-E da CLT), com fixação objetiva dos limites de atuação do Juiz do Trabalho e necessidade de adequada fundamentação das decisões denegatórias de homologação.
Aprimorar o instituto da Reclamação pré processual (RPP) – estabelecida pela Resolução do CSJT n. 377, de 22/03/2024 – que continua mantendo a Justiça do Trabalho como protagonista nas conciliações e mediações, no lugar de prestigiar o papel das próprias partes e de seus advogados. Destacamos que a referida Resolução não exige que as partes sejam assistidas por advogados e – pior –, na ausência deles, faz com que o próprio juiz assuma a defesa dos interesses do trabalhador.
Fomentar a fiscalização do trabalho pelo Ministério do Trabalho para que atue de forma preventiva e orientadora, o que, possivelmente, reduziria a litigiosidade trabalhista. É importante uma reformulação no modelo de fiscalização e de autuações.
Fomentar a uniformização da Jurisprudência Trabalhista. Destaca-se, aqui, a tentativa contraditória do legislador em limitar a capacidade dos Tribunais do Trabalho em uniformizar sua jurisprudência por meio de súmulas, o que, contudo, foi rechaçado pelo STF na ADI 6188.
Fomentar a participação de Sindicatos na promoção de arbitragens coletivas (ou individuais em nome dos seus representados).
Fomentar a aplicação de sanções pecuniárias e de outras ordens quando do ajuizamento de demandas frívolas, repetitivas, predatórias e temerárias.

[1] Este breve estudo contou com diferentes contribuições, advindas dos subscritores Fernanda Cabral de Almeida, João Renda Leal Fernandes, Julia de Castro Tavares Braga e Ricardo José Leite de Sousa, qualificados ao final.

[2] IBRAHIM, Fábio Zambitte; ALMEIDA, Fernanda Cabral de. Proteção social no desemprego: unidade, harmonia e ordenação como condições indispensáveis à (re)construção de um sistema. Revista Direito Das Relações Sociais E Trabalhistas, v. 8, n. 1, 2022, p. 123–141.

[3] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Panorama Laboral 2023: América Latina y el Caribe. Link de acesso.

[4] IBGE. PNAD Contínua. Divulgação: Janeiro de 2024. Trimestre móvel: out-nov-dez/2023.

[5] Há, ainda, um aspecto de gênero e racial, pois a maior parte dos trabalhadores domésticos é constituída por mulheres negras.

[6] IBGE. PNAD Contínua. Características adicionais do mercado de trabalho 2022.

[7] Segundo dados disponibilizados pelo SEBRAE, “os MEIs têm a maior taxa de mortalidade entre os Pequenos Negócios, 29% fecham após 5 anos de atividade. Já as MEs têm taxa de mortalidade intermediária entre os Pequenos Negócios, 21,6% fecham após 5 anos de atividade. As EPPs têm a menor taxa de mortalidade entre os Pequenos Negócios, 17% fecham após 5 anos de atividade”. (SEBRAE. A taxa de sobrevivência das empresas no Brasil. Publicado em 27 jan. 2023).

[8] CJN. Base Nacional de Dados do Poder Judiciário: Grandes litigantes.

[9] Ministério do Trabalho e Emprego. Novo CAGED.

[10] CNJ. Painel de Estatísticas do Poder Judiciário.

[11] TST. Relatório Geral da Justiça do Trabalho 2022. Brasília, DF: 2023.

[12] OIT. Non-standard employment around the world: Understanding challenges, shaping prospects. Genebra: ILO, 2016, p. 23.

[13] RADU, Roxana; PSAILA, Stephanie B. “Uberisation” demystified: examining legal and regulatory responses worldwide.

[14] AgR-E-ED-RR-246-75.2013.5.10.0021.

[15] A Justiça Trabalho tem feito a distinção em casos complexos, ou seja, “não evidenciada de forma clara e insofismável a transgressão ao art. 41 da CLT” (Ag-ED-RR-2634-36.2011.5.02.0055).

[16] REsp 838683/PR.

[17] A Corte deixou de conhecer da ADPF 647, em que se buscava a apreciação da constitucionalidade decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e das Delegacias da Receita Federal (DRFs) que mantêm a competência dos auditores fiscais da Receita Federal para reconhecer vínculo empregatício de trabalhadores autônomos ou pessoas jurídicas sem a manifestação prévia da Justiça do Trabalho

[18] Sobre o tema, destaca-se dissertação de mestrado recém defendida por Felipe Bernardes Rodrigues na FDUSP, sob a orientação de Guilherme Guimarães Feliciano, intitulada “O acesso à justiça do trabalho à luz da análise econômica do direito: uma visão crítica” (2023).

[19] PINHEIRO, Armando Castelar. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto? In: TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito e Economia. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 25.

[20] Os dados foram colhidos do painel “Estatísticas do Poder Judiciário”, no CNJ, e se referem ao primeiro grau de jurisdição.

[21] TST. Relatório Geral da Justiça do Trabalho 2022. Brasília, DF: 2023.

[22] SILVA, Alessandro da. A Reforma Trabalhista e o mito da litigiosidade. In: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SOUTO SEVERO, Valdete. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, p. 47-58, 2017.

[23] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do TST. Movimentação Processual nas Varas do Trabalho 2017. Brasilia: TST, 2017.

[24] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do TST. Movimentação Processual nas Varas do Trabalho 2018. Brasilia: TST, 2018

[25] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do TST. Movimentação Processual nas Varas do Trabalho 2019. Brasilia: TST, 2019

[26] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do TST. Movimentação Processual nas Varas do Trabalho 2020. Brasilia: TST, 2020

[27] Estes últimos dados (a partir de 2021) foram inseridos no paper após a sua entrega ao Exmo. Ministro Barroso, a seu pedido.

[28] BARROS, Carlos Juliano. “Brasil não é super rígido na lei trabalhista”, diz professor de Cambridge. UOL Economia, 23 abr. 2024.

[29] FERNANDES, João Renda Leal. O “mito EUA”: um país sem direitos trabalhistas?, 3. ed. São Paulo: Juspodivm, 2024.

[30] MESSITTE, Peter J. A experiência estadunidense na resolução dos conflitos trabalhistas. LTr: Revista Legislação do Trabalho. São Paulo, v. 66, n. 4, abr. 2002, p. 406.

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