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Em momentos de calamidade pública, como aquela recentemente vivenciada pelo Estado do Rio Grande do Sul, a rápida atuação do Poder Público é necessária para mitigar os efeitos sociais e econômicos causados. Isso vale para as Administrações Tributárias, cujo papel principal, nesses momentos, passa por não onerar ainda mais aqueles que já sofrem em razão do evento adverso, não devendo o tributo ou as obrigações acessórias se transformarem em um fardo ainda maior, muitas vezes impossível de ser assumido naquele momento.
Em seu mérito, são dignas de encômios as medidas adotadas. Ninguém dotado de bom senso poderia esperar outra atitude do Poder Público. Ocorre que a forma como se trouxeram os benefícios causa perplexidade a quem estuda o Direito Tributário. Neste campo, encontramos as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, dentre as quais a moratória. Instituto bastante regrado pelo Código Tributário Nacional, poucas vezes teve relevância prática.
Daí a estranheza de se passar ao largo de sua disciplina legal, no afã de atender a necessidades incontestáveis. Em síntese, causa espécie que, havendo um instituto próprio a tratar da matéria, opte-se por ignorar sua disciplina, adotando-se medidas administrativas contrárias ao texto da lei ordinária e do próprio Código Tributário Nacional. Sustentamos que a moratória, além de instituto previsto no Ordenamento, poderia ser muito eficaz, já que permitiria harmonização federal na disciplina da matéria, incluindo créditos privados.
Inobstante a necessária celeridade, os atos de natureza tributária permanecem se curvando ao princípio da legalidade (art. 150, I, da CF/88), a requerer a sua edição por meio do veículo legislativo adequado. É esse o caso da concessão de moratória, que depende sempre de previsão em lei, ou seja, ato do Poder Legislativo, conforme determina o art. 97, VI, e confirmam os arts. 152 e seguintes do CTN. O mesmo vale para a mera postergação do prazo de vencimento dos tributos: conquanto não seja necessária lei para tanto, é comum que o legislador cuide de fixar aquele prazo; neste caso, a administração tributária não pode, sob pena de atuação ilegal, contrariar o que determinou a lei.
Por ocasião da infeliz tragédia que atingiu o Estado do Rio Grande do Sul, prontamente foram editados diversos atos, todos de natureza infralegal, contendo medidas paliativas de natureza tributária. Pela ordem cronológica, destacam-se as principais: (i) a Portaria RFB 415/2024, prorrogando o prazo de vencimento dos tributos administrados pela RFB e cumprimento de obrigações acessórias, para contribuintes domiciliados nos municípios do Rio Grande do Sul em relação aos quais foi declarado estado de calamidade pública; (ii) a Portaria CGSN 45/2024, prorrogando as datas de vencimento dos tributos apurados no Simples Nacional, devidos pelos sujeitos passivos com matriz nos municípios atingidos no Estado; (iii) como exemplo de norma municipal, o Decreto Municipal 22.567/2024 de Porto Alegre, prorrogando impostos municipais nas hipóteses especificadas; (iv) e, em âmbito estadual, o Decreto Estadual 57.617/2024, prevendo a moratória dos créditos de ICMS em atraso apurados por estabelecimentos de contribuintes localizados nos municípios em estado de calamidade pública ou em emergência – com amparo em autorização do Convênio ICMS 54/2024 do CONFAZ. Além desses, uma série de outros foram editados, como a alteração do prazo para entrega da Guias de Informação e Apuração do ICMS – GIA e da Escrituração Fiscal Digital – EFD-ICMS-IPI, constante da Instrução Normativa RE 034/2024 e do Ajuste SINIEF 11/2024; e a Portaria RFB 421/2024, alterando do prazo de transmissão da Escrituração Contábil Digital – ECD e da Escrituração Contábil Fiscal – ECF para os contribuintes domiciliados nos municípios afetados pelas enchentes.
Do arrolamento dos referidos atos fica claro que todos eles foram emanados pelos Poderes Executivos de cada ente federado, a partir da competência dos respectivos tributos. Constata-se, também, ter sido utilizada a técnica de postergação do vencimento dos tributos, não obstante tenha o legislador complementar tratado do tema no instituto da moratória.
Com efeito, dos atos mencionados, apenas o Decreto Estadual 57.617/2024 conferiu expressamente o tratamento de moratória, dispondo que não serão exigidos os valores de multa e juros relativos ao atraso no pagamento do ICMS, desde que atendido o requisito de pagamento integral do crédito tributário até a data postergada. Na moratória, seus efeitos cessam em caso de inobservância do novo prazo de pagamento estipulado – hipótese em que voltam a ser exigíveis os juros e a multa calculados desde o vencimento original.
O CTN não deixa dúvida quanto ao status legal da moratória em âmbito tributário. Trata-se de espécie de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (art. 151, I, do CTN). Não impede a sua constituição, mas apenas a exigibilidade do cumprimento da obrigação pelo sujeito passivo[1]. É o que se vê do referido ato infralegal estadual, que trata o ICMS como vencido e em atraso, mas concede novo prazo para seu pagamento sem o acréscimo de consectários.
Ocorre que é clara a exigência do CTN pela veiculação da moratória em lei, seja por tratar-se de causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, conforme art. 97, VI, do CTN, seja pela dicção indelével do inciso II e do parágrafo único do art. 152, do caput do art. 153 e do art. 154. Trata-se de exigência direta do princípio da legalidade, na medida que o crédito tributário é indisponível e a atividade de lançamento é obrigatória para a autoridade tributária, não lhe cabendo realizar qualquer juízo quanto à exigência ou não do tributo, por maior que sejam as justificativas, senão com amparo em autorização do Poder Legislativo[2].
Possivelmente, os próprios requisitos mais rigorosos para a concessão da moratória podem indicar a razão pela qual haveria, como dito, uma “preferência” pela postergação pura e simples do vencimento dos tributos. Nesse caso, sequer se cogitaria atraso no pagamento com a concessão de prazo adicional para cumprimento da obrigação, tampouco a suspensão da exigibilidade do crédito tributário nesse interregno, como decorre da moratória. Por outro lado, surgiria interessante questionamento quanto aos créditos constituídos segundo o prazo original de vencimento e depois postergados.
Sabidamente, ao disciplinar o prazo de vencimento dos tributos, o art. 160 do CTN autoriza sua estipulação pela “legislação” tributária, o que, pela própria dicção do art. 96 do CTN, envolve não apenas leis propriamente ditas, mas igualmente atos infralegais. Portanto, em tese, não haveria problema em um ato infralegal dispor sobre a prorrogação do prazo de vencimento dos tributos, mormente em uma situação que a medida é tão necessária quanto urgente. Todavia, ainda que não se exija a estipulação do vencimento da obrigação tributária em lei, é certo que se houve opção por fixar o prazo em lei, não poderá haver modificação por ato administrativo[3].
Daí que caberia verificar, em cada caso, se o prazo do tributo foi fixado em lei ou em ato administrativo, e adequá-lo em conformidade com as exigências daí decorrentes, ou seja, a partir de ato hierarquicamente compatível. Não é demais rememorar que o constituinte concebeu o instrumento da medida provisória, dotado de força de lei, para casos de urgência e relevância. Diferente do que se vê rotineiramente, quando medidas provisórias são adotadas na matéria tributária sem que fique clara a urgência, teríamos talvez o primeiro caso em que haveria consenso quanto ao cumprimento do requisito constitucional.
Exemplificando a partir da Portaria RFB 415/2024, que tratou da prorrogação do vencimento de tributos federais, fica claro que o vencimento do IRPJ ocorre no último dia útil do mês subsequente ao do encerramento do período de apuração, seja para a apuração por estimativas mensais ou trimestral, de acordo com os arts. 5º e 6º da Lei 9.430/1996; a CSL tem vencimento fixado de forma oblíqua pelo art. 57 da Lei 8.981/1995, na medida em que à contribuição se aplicam “as mesmas normas de apuração e de pagamento estabelecidas para o imposto de renda das pessoas jurídicas” – ou seja, até o último dia útil ao do encerramento do período de apuração, que no caso é mensal; e as contribuições PIS e COFINS, ao menos no regime não-cumulativo, devem ser pagas até o vigésimo quinto dia do mês subsequente ao de ocorrência do fato gerador, nos termos do art. 10 da LeI 10.637/2002 e do art. 11 da Lei 10.833/2003.
Por certo, seria possível argumentar que, inobstante a fixação em lei dos respectivos prazos de vencimento, já haveria norma geral no ordenamento conferindo competência à autoridade administrativa para fixar a data de pagamento da obrigação tributária. É o caso do art. 66 da Lei 7.450/1985, dispondo que “Fica atribuída competência ao Ministro da Fazenda para fixar prazos de pagamento de receitas federais compulsórias”. Esse dispositivo, inclusive, ampara a Portaria MF 12/2012, que de forma geral estabelece a prorrogação do vencimento de tributos administrados pela RFB aos sujeitos passivos domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido estado de calamidade pública.
Ocorre que o art. 66 da Lei 7.450/1985 não possui hierarquia legal superior às normas que fixam os prazos de vencimento dos tributos federais, não podendo lhes alterar o conteúdo. Nota-se que não se trata de lei posterior àquelas que fixaram os prazos, nem tampouco estamos diante de lex specialis, já que os diplomas legais acima citados são específicos para cada tributo mencionado. Ao fim e ao cabo, o dispositivo apenas reconhece o que já se depreende do CTN, ou seja, a possibilidade de a autoridade administrativa fixar o prazo de vencimento dos tributos federais, o que pressupõe que tal prazo não esteja estipulado em ato hierarquicamente superior, notadamente em lei.
Há que considerar, ainda, que tanto no caso da moratória quanto em relação à postergação do vencimento dos tributos, não se descura do fato de se estar beneficiando o sujeito passivo em um momento de necessidade. Nesse sentido, sendo a legalidade uma garantia do contribuinte, verdadeira limitação ao poder de tributar, não seria exigível a sua observância para a dispensa ou postergação do pagamento de tributos. Certamente que ninguém haverá de reclamar de qualquer medida benéfica aos contribuintes, não importando a sua origem, desde que presente uma justificativa para tanto. Porém, há de se ter em conta que o mesmo raciocínio, que permite flexibilizar a legalidade em favor do contribuinte, pode vir a justificar futuramente a flexibilização da exigência contra o cidadão, bastando que o Estado apresente uma motivação suficientemente razoável. As várias mitigações perpetradas contra a legalidade configuram aquilo para o que há tempos já se chamou a atenção: a “suave perda da liberdade”, concretizada a cada vez que as exigências da legalidade são colocadas de lado[4].
Por último ponto, vale chamar a atenção para o fato de que o CTN permite que o legislador federal, em caso de moratória, vá além dos tributos federais, estendendo-a a todos os tributos, desde que também a créditos privados. Dada a extensão da emergência surgida na região, uma moratória em caráter geral poderia ser cogitada para evitar um encadeamento de vencimentos não honrados. Nos termos do parágrafo único do art. 152 do CTN, o legislador poderia delimitar as regiões onde essa moratória fosse necessária, não se dando por vencidos, ali, quaisquer títulos, públicos ou privados, como forma de permitir a recuperação dos negócios e da situação financeira das famílias afetadas, sem o risco de terem títulos protestados ou execuções as mais diversas. É bem verdade que surgiriam questões federativas, a nosso ver superáveis quando se tratasse de medida geral[5].
Para encerrar esta reflexão, é importante registrar que não se está aqui criticando as medidas tomadas para aliviar o sofrimento daqueles que foram atingidos pelo desastre climático que assolou o Rio Grande do Sul. Ao contrário, são medidas justas e necessárias para o momento, certamente uma fração do que o Estado necessita para mitigar os danos sofridos. A crítica é direcionada à omissão das autoridades competentes em tomar as medidas cabíveis, de acordo com as exigências postas pela legalidade e pelo CTN, e segundo as respectivas competências constitucionais.
[1] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 13ª. ed. São Paulo: Saraiva. 2024. p. 718.
[2] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 13ª. ed. São Paulo: Saraiva. 2024. p. 720.
[3] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 13ª. ed. São Paulo: Saraiva. 2024. p. 734-735.
[4] SCHOUERI, Luís Eduardo. A Suave Perda da Liberdade. Direito Tributário Atual, v. 18, p. 7-10, 2004.
[5] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 13ª. ed. São Paulo: Saraiva. 2024. p. 720-721.