Como se tributa a inteligência artificial?

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A inteligência artificial (IA) tem emergido como um dos avanços mais transformadores do século 21. Sua presença no cotidiano tem sido cada vez mais notável, impulsionada pelo crescimento exponencial e pela popularização de tecnologias como o ChatGPT.

A IA é fruto do desenvolvimento de sistemas e máquinas para a realização de tarefas que normalmente requerem inteligência humana. Como detalhado pelo Parlamento Europeu[1], esses sistemas são projetados para simular processos cognitivos humanos, como, aprendizado, raciocínio, percepção, compreensão, tomada de decisões e interação social. Exemplos de aplicações de IA incluem assistentes virtuais, reconhecimento de fala, assistentes virtuais autônomos, diagnósticos médicos, tradução automática, entre muitos outros.

A IA está em constante evolução e seu impacto está se expandindo rapidamente em diversos setores, transformando processos industriais, serviços, saúde, educação e outros aspectos da sociedade moderna. No entanto, junto com seu potencial revolucionário, a IA traz questões emergentes, especialmente no que diz respeito à sua regulação e tributação.

Neste artigo, exploramos duas dessas questões: a tributação das soluções de IA e a eventual tributação dos dados coletados pelas empresas que atuam no setor.

A primeira delas, de tributação das soluções de IA, está relacionada à identificação da espécie da solução oferecida e da natureza jurídica da relação estabelecida entre a empresa que provê a tecnologia de IA e a parte contratante dessa tecnologia.

Para certos consumidores, a IA pode se apresentar na forma de uma atividade de manipulação de dados visando a uma melhoria de desempenho ou à utilidade desses dados, criando-se informações novas.

Contrata-se a solução para nela inserir informações, visando, como resultado, ao recebimento de novas informações preparadas a partir dos dados previamente imputados e dos dados já armazenados pela solução.

Nesses casos, a atividade desempenhada pela IA pode ser equiparada à prestação de serviços, considerando o conceito amplo de serviços que vem sendo adotado pela jurisprudência do STF em casos fiscais. Especificamente, tais serviços poderiam ser equiparáveis a serviços de processamento de dados, ensejando a tributação aplicável a essa atividade.

Há também consumidores que adquirem licenças de soluções de IA, seja para uso interno, seja para comercialização com terceiros. É a situação de uma agência de marketing que contrata um fornecedor de IA para disponibilizar a solução para seus empregados responsáveis pela criação de conteúdo.

Nesse caso, firma-se um contrato de licença de uso e a transação pode ser equiparada, para fins fiscais, a uma licença de uso de software, considerando o conceito de “programa de computador” previsto na legislação. A tributação, consequentemente, deve seguir essa classificação jurídica da transação.

A segunda questão – mais complexa e que deve gerar discussões no futuro – está em se determinar eventual tributação da coleta e comercialização de dados no contexto do funcionamento das soluções de IA.

Atualmente, muitas empresas de IA operam em um modelo em que oferecem serviços gratuitos aos usuários mediante a coleta e o processamento de dados pessoais. Esses dados são, então, utilizados para diversos fins, como, personalização de serviços, desenvolvimento de novos produtos e, até mesmo, comercialização de outras soluções a terceiros.

Considerando que os dados são frequentemente tratados como ativos estratégicos e comercializados como tais, surgem algumas discussões relevantes para fins tributários.

Uma dessas discussões é se o acesso gratuito a soluções de IA mediante o fornecimento de dados poderia ser tributado. Essa é uma questão que pode decorrer principalmente do modelo de negócio adotado pelas empresas que atuam nesse setor.

Nesse sentido, ainda que, em um primeiro momento, o fornecimento gratuito de soluções de IA não deva ensejar efeitos fiscais, a depender da formatação negocial e contratual elegida pela empresa, seria possível encarar o fornecimento de dados pessoais por usuários às empresas de IA como uma permuta, na qual se trocam dados por serviços.

A permuta, sob a legislação cível brasileira, deve ser tratada como compra e venda[2]. Nesse contexto, argumentar-se-ia que nas soluções gratuitas de IA que envolvem a coleta de dados há uma venda de dados e a prestação de serviços simultaneamente – ambas tributáveis.

O tema pode ganhar novos contornos sob a égide da reforma tributária. Pelo projeto de lei complementar que regula o IBS e a CBS, a base de cálculo de operações que não possuem valor indicado ou determinado é considerada o valor de mercado dos respectivos bens ou serviços, entendido como o valor praticado em operações comparáveis entre partes não relacionadas[3].

Outra discussão é se esses dados fornecidos pelos usuários poderiam ser vistos como ativos intangíveis das empresas que fornecem soluções de IA, sob a perspectiva tributária.

É possível, por exemplo, que uma solução de IA seja gratuita para um determinado público, mas, coletando seus dados, seja oferecida em uma versão superior e onerosa a terceiros, na qual serão utilizados os dados coletados gratuitamente. Ou, ainda, pode ser que os dados coletados gratuitamente sejam vendidos para outras empresas, que farão uso deles para outras finalidades (publicitária, por exemplo).

Para contabilidade, um ativo intangível é um recurso controlado pela empresa como resultado de eventos passados, e do qual se espera que resultem benefícios econômicos futuros[4]. Dessa perspectiva, os dados coletados de usuários poderiam ser considerados ativos intangíveis e, assim, quando comercializados (direta ou indiretamente) pelas empresas que os coletaram, estariam sujeitos à tributação.

A temática sobre a tributação dos dados é complexa, inexistindo consenso sobre a melhor forma de se abordar o tema.

No estado de Nova York, nos Estados Unidos, por exemplo, foi apresentado um projeto de tributo sobre a coleta de dados (data mining tax), que consiste em uma espécie de imposto seletivo (excise tax) que incide sobre a coleta de dados de cidadãos residentes no estado[5]. O contribuinte seria o coletor dos dados, não o usuário, e o tributo é devido a um valor fixo mensal por residente que tem seus dados coletados.

O professor Reuven Avi-Yonah, da Universidade de Michigan, por sua vez, junto de outros especialistas no tema, defende que a tributação dos dados seja feita com base no volume de dados coletados, medidos por gigabytes, e não por usuário[6].

Na mesma linha, o professor Omri Marian, da Universidade da Califórnia, sugere tributação similar, indo além para sustentar a possibilidade de tratamento dos dados como uma commodity[7]. Nesse aspecto, as empresas que coletam dados para fins comerciais pagariam uma espécie de royalty ao governo pelo direito de extraí-los dos cidadãos que são residentes no respectivo estado.

Ainda, há quem defenda os chamados “dividendos de dados” (data dividends), como é o caso de Chris Hughes, um dos cofundadores do Facebook, para quem as empresas de tecnologia que coletam dados de usuários para oferecer serviços e soluções deveriam pagar a tais usuários pela coleta desses dados – assim como empresas extrativistas nos Estados Unidos remuneram contas de poupança de residentes em áreas de exploração de recursos naturais[8].

Em suma, essas propostas de se tributar ou exigir royalties sobre o valor dos dados denotam o reconhecimento crescente da importância econômica dos dados e da necessidade de estruturas fiscais justas e eficazes. Essa relevância dos dados, como visto, adquiriu novas proporções com o crescimento exponencial do uso de soluções de IA.

Tais propostas também revelam que as discussões referentes à tributação dos dados concentram-se na tributação das empresas que os coletam e os exploram economicamente (mediante a comercialização direta ou indireta desses bens), e não dos usuários, que os fornecem a tais empresas para utilizar as soluções de IA oferecidas.

No Brasil, o tema ainda é incipiente. Não consta, no PL 2338/2023, que visa a regulamentar a IA no país, qualquer referência à tributação de dados ou remuneração de usuários que aceitem ter seus dados coletados por empresas que vão posteriormente explorá-los economicamente.

De toda forma, o fato é que, com o crescimento da IA, as empresas que se dedicam ao setor devem estar atentas ao assunto e à formatação dos seus modelos de negócio e contratos. Isso, porque, apesar da liberdade contratual existente na legislação brasileira, é relevante identificar, de forma antecipada, possíveis discussões fiscais quanto à característica das soluções e da relação jurídica firmada com o respectivo usuário (por exemplo, se prestação de serviços gratuita, se permuta etc.).

Embora questões tributárias existam, é fundamental a atenção com o tema para que sejam aproveitadas as oportunidades emergentes em uma economia digital redefinida por meio da adoção de um tratamento fiscal adequado para suas atividades de IA.

[1] https://www.europarl.europa.eu/topics/pt/article/20200827STO85804/o-que-e-a-inteligencia-artificial-e-como-funciona#:~:text=A%20intelig%C3%AAncia%20artificial%20(IA)%20%C3%A9,o%20planeamento%20e%20a%20criatividade.

[2] Art. 533 do Código Civil.

[3] Art. 12, § 4°, do PLP 68/2024.

[4] Pronunciamento n° 4 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC).

[5] https://www.nysenate.gov/legislation/bills/2021/S4959

[6] Avi-Yonah, Reuven S. and Kim, Young Ran (Christine) and Sam, Karen, A New Framework for Digital Taxation (March 25, 2022). 63 Harvard International Law Journal 279 (2022), U of Michigan Law & Econ Research Paper No. 22-013, University of Utah College of Law Research Paper No. 491, U of Michigan Public Law Research Paper No. 22-013, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=4068928

[7] Omri Marian, Taxing Data, 47 BYU L. Rev. 511 (2022).

[8] https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/apr/27/chris-hughes-facebook-google-data-tax-regulation

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