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À espera da edição da Lei Complementar (LC) sobre o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e dos demais instrumentos normativos que pretendem materializar a competência tributária distribuída pela Emenda Constitucional 132/2023 (reforma tributária), surgem algumas discussões sobre a natureza e abrangência dessa outorga de poderes.
Natural que seja assim, pois o modelo de distribuição de competências tributárias instituído pela EC 132/2023 é inovador, exigindo da doutrina uma releitura do tema na busca de um sistema de categorias com uma classificação mais adequada às novas regras, especialmente aquelas do art. 156-A e 156-B que distribui as competências legislativas e materiais do IBS entre a União, os estados e os municípios.
A mudança, no entanto, exige uma sistematização hermenêutica capaz de integrá-la às demais disposições constitucionais. Nessa atividade interpretativa surgem algumas indagações que antecipam as controvérsias possíveis sobre a competência tributária do IBS, bem como os conflitos potenciais entre os entes federativos. Elencamos algumas.
O que significa dizer que a competência do IBS é compartilhada entre estados e municípios?
Na disposição do caput do art. 156-A, encontramos a competência da União (legislador complementar) para instituição do IBS, ressalvadas as competências estaduais e municipais para instituição de parte da sua alíquota (inciso V). Segundo a classificação doutrinária teríamos uma competência legislativa privativa da União para instituir os enunciados de incidência, fiscalização e arrecadação do IBS, e uma competência legislativa privativa dos estados e municípios para instituírem parte da sua alíquota total.
Sob essa perspectiva legislativa de veiculação de normas primárias, inexiste, portanto, compartilhamento de competências. As competências são privativas, ainda que tenham sido segregadas as matérias que se inserem no poder legislativo de cada ente.
Resta saber então quais funções competem aos estados e municípios realizar de modo compartilhado. Seriam essas funções próprias de uma norma de competência material, isto é, a esses entes subnacionais estariam reservados os poderes para compartilharem a realização de ações de arrecadação, cobrança e fiscalização, incluindo-se aí o poder regulamentar?
E mais, devem essas competências materiais de arrecadação, cobrança e fiscalização serem exercidas de modo compartilhado somente via Comitê Gestor (art. 156-B, caput), ou restariam aos estados e municípios competências materiais privativas quanto ao IBS, como para a realização de ações de cobrança e fiscalização (inciso V do art. 156-B)?
A resposta interfere na adequada interpretação sobre qual a efetiva função do Comitê Gestor de coordenar essas ações. Seria essa uma coordenação em nível normativo regulamentar, ou uma coordenação capaz de lhe subordinar as atividades de fiscalização e cobrança desempenhadas em nível estadual e municipal, como se pretende com o art. 36, I do PLP 108/2024, que atribui ao Comitê Gestor o exercício da atividade de revisão de ofício dos lançamentos do IBS.
Qual o objeto do art. 149-B, direcionar a interpretação da legislação do IBS/CBS ou regular o procedimento de elaboração dessa legislação?
As razões que motivaram a enunciação do art. 149-B da CR, parecem claras: trazer ao IBS e à CBS características de um imposto único sobre consumo, em busca de uma maior uniformidade no trato da incidência desses tributos. A dúvida está no procedimento eleito pelo dispositivo para o alcance desses anseios, pois ao prescrever que em relação às condicionantes de incidência desses tributos, especificados nos incisos I a IV, devem ser “observadas as mesmas regras”, o artigo foi bastante ambíguo sobre qual o destinatário do seu comando.
Seria ele o intérprete, que onde se deparar com uma regra do IBS sobre uma dessas condicionantes de incidência, por exemplo, fato gerador, deve considerá-la também como uma regra da CBS, e vice-versa, ou o destinatário seria o legislador que somente pode disciplinar a incidência desses tributos em conjunto, ou ainda, ambos seriam os destinatários?
No texto do §1º do art. 316 do PLP 68/2024, que exige um ato conjunto para aprovação das disposições comuns do IBS e CBS, se pretende criar uma condição para o exercício eficaz da competência regulamentar do Comitê Gestor (art.156-B, I da CR) e do presidente da República (art. 84, IV, CR).
Isso somente seria constitucional se partirmos do pressuposto de que o art. 149-B teria mitigado o conteúdo dos arts. 84, IV e 156-B, I, para se admitir que, em matéria de IBS e CBS, aquelas autoridades não teriam competência privativa para regulamentar a legislação, mas tão somente competência para integrar um colegiado de deliberação desse regulamento.
Qual o efeito sobre o IBS e a CBS das normas gerais tributárias, editadas com fundamento no art. 146, III da CR?
A eleição da lei complementar como instrumento competente para instituição do IBS e da CBS, instaura uma discussão sobre como devem ser superados eventuais conflitos entre os enunciados dessa lei e os enunciados constantes de outras leis complementares que tenham sido editadas com fundamento no art. 146, III da CR.
O critério a ser utilizado seria aquele destinado a solucionar conflitos entre instrumentos de mesma hierarquia, constante do §1º do art. 2º do Decreto-lei 4.657/1942 – lei posterior prevalece sobre lei anterior naquilo que for incompatível? Ou haveria aqui uma hierarquia material própria das normas gerais, como ocorre entre leis ordinárias no caso de legislação concorrente[1]?
Em outras palavras, precisamos saber se o art. 146, III da CR permite a existência de dois subsistemas infraconstitucionais: um aplicável a todos os tributos e harmonizados pelas normas gerais tributárias (CTN) e outro aplicável ao IBS e uniformizado pela sua norma impositiva (exauriente), submetidos, quando em conflitos, ao critério de solução adotado pelo Decreto-lei 4.657/1942, ou se o art. 146, III exige a existência de um único subsistema infraconstitucional, que solucionaria o conflito das normas gerais tributárias (CTN) com a norma impositiva do IBS, pelo critério da hierarquia material.
O debate se reflete sobre diversos temas que estão regulados tanto no Código Tributário Nacional como no PLP 68. Falemos especificamente da responsabilidade tributária, que, no entendimento firmado pelo STF no RE 562.276, somente pode ser regulada pelo legislador impositivo nos exatos limites das normas gerais do CTN[2].
Precedente esse que põe um alerta sobre o art. 24, V, ‘b’ do PLP, pois o dispositivo pretende criar uma hipótese de responsabilização dos representantes legais da pessoa jurídica (administradores, sócios etc.) diferente daquela estipulada pelo art. 135 do CTN. Iniciativa semelhante àquela do art. 13 da Lei 8.620/93, que foi objeto do sobredito RE e foi reconhecida como inconstitucional.
Eis a importância do debate ora suscitado: a ratio do precedente se aplica aqui, caso se entenda que exista uma espécie de hierarquia material entre as normas gerais tributárias e a norma impositiva do IBS, tornando irrelevante o fato de ambas terem sido veiculadas por lei complementar.
Esses são alguns exemplos do debate que deve se instaurar em torno do tema da natureza e classificação das competências tributárias do IBS atribuídas à União, aos estados e aos municípios.
[1] José Souto Maior Borges. Lei Complementar Tributária, Editora Revista dos Tribunais, p. 97.
[2] RE 562.276.