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Diz-se na mitologia grega que, no centro de um labirinto na Ilha de Creta, encontrava-se o minotauro: um ser meio homem meio touro para o qual era necessário oferecer em sacrifício 14 jovens de Atenas a cada nove anos. Não é dessa história que vem o famoso “decifra-me ou te devoro”, mas bem poderia ter sido, já que Teseu, segundo uma das versões da história, só não foi devorado porque superou o labirinto e tomou o bicho pelo chifre.[1]
Com algo de labiríntico, o Marco Legal de Games (Lei 14.852/2024) também guarda, no meio de suas intrincadas linhas, um minotauro: a própria definição de jogos eletrônicos, constante do art. 5º, cuja entrada no ordenamento oferece um enigma para o direito autoral.
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É certo que jogos eletrônicos há muito se notabilizam pela sua complexidade, ao juntar diversos elementos protegidos por direitos autorais, como códigos-fonte, narrativas, personagens, trilhas sonoras e ilustrações, mas o novo texto legal só fez complicar ainda mais o cenário, muito embora a Ancine, para citar apenas um exemplo, já tivesse anteriormente defendido que uma inovação legislativa poderia trazer alguma luz sobre o regime aplicável aos jogos eletrônicos para fins de direito autoral.[2]
Segundo o referido artigo 5º do Marco Legal de Games, consideram-se jogos eletrônicos (i) a obra audiovisual interativa desenvolvida como programa de computador conforme definido na Lei 9.609/1998 (a Lei do Software, ou LS), (ii) o dispositivo central e acessórios especialmente dedicados a executar jogos eletrônicos e (iii) o software consumido por download ou por streaming.
Com relação ao inciso II, fica claro que os consoles podem ser considerados jogos eletrônicos para os fins da lei, mas isso não interessa ao direito autoral, embora possa levantar suas próprias questões com relação ao fomento e ao registro da propriedade industrial. O enigma ao direito autoral vem, na verdade, da tensão entre os incisos I e III – afinal, os jogos eletrônicos, esses estranhos seres complexos, são obra audiovisual ou software/programa de computador? A resposta a este enigma tem pelo menos seis implicações de grande importância:
Primeiro, os autores de uma obra audiovisual são necessariamente o diretor e o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical (art. 16 da Lei 9.610/1998, a Lei de Direitos Autorais), ao passo que a autoria de programas de computador não é definida especificamente pela legislação, podendo ficar exclusivamente com programadores ou até mesmo com pessoas jurídicas, em caso de obras coletivas.
Segundo, os direitos patrimoniais de uma obra audiovisual sempre pertencem, na ausência de convenção em contrário, a seus autores (art. 28 da LDA), ao passo que um programa de computador pertence por padrão ao empregador ou contratante de serviço (art. 4º, § 2º da LS), possibilitando um regime de obra por encomenda quando em combinação com o dito no parágrafo acima.
Terceiro, os direitos morais relativos a uma obra audiovisual são reconhecidos e podem ser exercidos pelo diretor (art. 25 da LDA), ao passo que um programa de computador não dispõe de direitos morais para além de faculdades de paternidade e integridade, passíveis de exercício por seu autor ou autores (art. 2º, § 1º da LS).
Quarto, o prazo de proteção aos direitos patrimoniais da obra audiovisual é de setenta anos (art. 44 da LDA), ao passo que a proteção a programas de computador se limita a cinquenta (art. 2º, § 2º DA LS).
Quinto, a utilização de obra audiovisual em local de frequência coletiva constitui ato de execução pública (art. 68, § 2º da LDA), com possibilidade de remuneração de titulares, ao passo que não há previsão correspondente para programa de computador.
Sexto, apontando ao futuro, o atual texto substitutivo do PL 2370/2019,[3] sobre remuneração de comunicação ao público, até o momento define que farão jus a pagamento pelo uso proporcional de suas obras apenas os titulares de obras audiovisuais, não cabendo tal remuneração a titulares de programas de computador.
Estabelecida a relevância do enigma, tornemos a ele: o que então nos diz a tensão entre os incisos I e III do Marco Legal dos Games? À primeira vista, é possível entender que a lei dá espaço para que a definição de jogos eletrônicos alcance tanto obras audiovisuais quanto software, o que apontaria para uma solução baseada no caso a caso.
No entanto, é preciso notar que mesmo a obra audiovisual do inciso I é “desenvolvida como programa de computador, conforme definido na Lei 9.609/1998”. Em outras palavras, ambos os incisos tratam de software/programa de computador, com a diferença de que o inciso I parece seguir a definição da Lei do Software, enquanto o inciso III se restringe àqueles “consumidos por download ou por streaming”.
Ora, a definição de programa de computador do art. 1º da Lei do Software é ampla o suficiente para abarcar tambem os jogos disponibilizados por download ou por streaming – afinal, admite que o programa esteja “em suporte físico de qualquer natureza”, não se limitando ao chamado “software de prateleira” e assim também incluindo programas que tenham sido descarregados de um servidor a um cliente através da internet.
Além disso, como já se depreende da expressão videogame, a grande maioria dos jogos eletrônicos dispõe de elementos audiovisuais (notadamente, imagem em movimento, com ou sem acompanhamento de som), ainda que mínimos. Logo, o sentido primordial dos incisos I e III do art. 2º do Marco Legal dos Games não está em estabelecer uma separação entre jogos eletrônicos em suporte físico e aqueles adquiridos por via virtual nem entre jogos audiovisuais e jogos sem interface audiovisual.
Na verdade, o sentido da ampla definição do art. 2º está em abarcar a cadeia produtiva dos jogos eletrônicos de maneira abrangente – desde o código-fonte até o console, passando pelo conjunto de elementos protegidos que compõem uma obra audiovisual –, o que é particularmente coerente com um dos grandes objetivos da lei, a viabilização de um sistema de fomento a toda a atividade.
Isso, contudo, ainda não resolve o enigma do direito autoral. Por mais que se compreenda que a imensa maioria dos jogos eletrônicos contém elementos audiovisuais e estaria abarcada no inciso I, a redação deste permanece dúbia: “obra audiovisual interativa desenvolvida como programa de computador.” Mais uma vez, estamos falando de uma obra audiovisual ou de um programa de computador? Não são poucas as soluções que podem ser aventadas. Vamos às principais:
Em primeiro lugar, é possível entender que o jogo eletrônico, ao juntar todos os elementos criativos típicos do audiovisual, é tão somente uma obra audiovisual expressa em suporte diferente do cinematográfico ou videofonográfico, de modo que se aplicaria exclusivamente o regime da obra audiovisual.
Não há dúvidas de que esse entendimento favoreceria os artistas que contribuem para um jogo eletrônico, mas ignoraria a disciplina do programa de computador, especificamente mencionada na norma, o que teria consequências negativas para os modelos de negócios dos jogos eletrônicos, mais próximos do mundo do software do que do filme.
Em alternativa, caberia também o entendimento de que o jogo eletrônico é um programa de computador com uma interface interativa que se utiliza, de forma acessória, da imagem em movimento típica da obra audiovisual sem que se aplique o regime específico desta, mas exclusivamente o regime do software.
Esta interpretação favoreceria as práticas consolidadas da indústria de jogos eletrônicos, porém ignoraria não só a menção expressa do legislador à “obra audiovisual”, mas também o fato de que hoje os jogos eletrônicos se tornaram uma arte, na qual o trabalho de diretores de cena, roteiristas, atores e outros artistas é tão ou mais importante do que a contribuição de programadores.
Ainda alternativamente, um intérprete ponderado poderia optar por aplicar regimes diferentes para elementos diferentes do jogo eletrônico: para a interface, ou o chamado look and feel, as regras de obra audiovisual, ao passo que o regime do programa de computador regeria o código-fonte e a game engine.
Embora possa ser por vezes satisfatória, essa abordagem incidiria na dificuldade de separar em detalhe o que é criação de programa do que é roteiro ou direção, o que não é sempre factível, já que os jogos eletrônicos em geral são feitos para que seus diferentes elementos criativos funcionem em conjunto, não em separado. Além disso, o texto legal não admite diretamente a presença paralela de dois regimes – como se viu, o único conjunto de regras diretamente mencionado é o de programa de computador, na forma de “conforme definido na Lei 9.609/1998”.
Frente às limitações dessas soluções, parece se impor uma solução híbrida: um único regime sui generis que seja meio obra audiovisual meio programa de computador, mas com preponderância do segundo devido à menção expressa de seu conjunto de regras no texto. Este regime híbrido, de aplicação específica, reconheceria que jogos eletrônicos são obras audiovisuais às quais se aplica principalmente o disposto na Lei do Software, invocando apenas subsidiariamente o regime da obra audiovisual, previsto na LDA.
Neste caso, para apresentar alguns traços gerais, os jogos eletrônicos importariam em cessão dos direitos a empregador ou contratante na ausência de avença em contrário e gozariam de proteção por cinquenta anos, mas seus autores seriam os co-autores da obra audiovisual: o diretor e o autor do argumento, que não teriam direitos morais conforme a LDA, mas poderiam exercer os direitos de integridade e paternidade do art. 2º, § 2º da Lei do Software.
Além disso, a disponibilização ou reprodução dos jogos eletrônicos em ambiente de frequência coletiva consistiria em ato de execução pública, nos termos do §2º do art. 68 da LDA. E assim por diante, sem prejuízo da presença de mais perguntas do que respostas, considerando que ainda estamos falando de um enigma.
Em suma, ao examinar o Marco Legal de Games tendo em mente seus efeitos para o direito autoral, contemplamos o minotauro – um ser híbrido que combina elementos contraditórios, desperta terror e interrogação e, cedo ou tarde, vai precisar ser totalmente trazido à luz para não acarretar o sacrifício de cidadãos. A solução, no entanto, dependerá da superação do labirinto. E de pegar o bicho pelo chifre.
[1] KERENYI, K. Die Mythologie der Griechen, v. 2. Stuttgart: Klett-Cotta, 2013, p. 182 ss.
[2]ANCINE. Análise de Impacto Regulatório nº 1/2016. Disponível em: https://antigo.ancine.gov.br/sites/default/files/consultas-publicas/AIR-JogosEletronicos_0.pdf
[3] NASCIMENTO, E. Parecer Preliminar de Plenário, de 12 de agosto de 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2311416&filename=PRLP+2+%3D%3E+PL+2370/2019