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Foi notícia recente, em 20 de junho deste ano, que a Argentina enviou ao Brasil uma lista com mais de 60 nomes de foragidos condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. O governo do país vizinho informou que cumprirá decisões da Justiça brasileira.
Um eventual próximo passo deve ser o encaminhamento de pedidos de extradição para a Argentina, onde alguns bolsonaristas condenados pelos atos do 8 de janeiro solicitam refúgio. E agora surgirá a pergunta: os crimes contra o estado democrático de direito, previstos no título XII do Código Penal, e pelo qual os foragidos foram condenados pelo STF, serão considerados “crimes políticos” para fins de extradição?
Caso sim, tanto há vedação constitucional expressa no ordenamento jurídico de Argentina[1] e Brasil[2], quanto há negativa expressa no recente tratado firmado entre os dois países[3]. Além disso, trata-se de uma praxe diplomática e costume internacional desde o século 19[4]. Todavia, cabem algumas ponderações para compreender o efetivo alcance desta imunidade de jurisdição.
Tradicionalmente, o STF reconhecia como crimes políticos aqueles descritos na Lei de Segurança Nacional[5]. O título XII do CP a sucedeu e repete com algumas variações os crimes daquela lei. No caso do 8 de janeiro, os artigos 359-L e 359-M do CP[6], aplicados nas condenações, correspondem mais ou menos aos artigos 17 e 18 da LSN[7].
As doutrinas de direito penal, que reproduziam este argumento quando estudavam a LSN em comentários a leis extravagantes[8], nas novas edições dos manuais de Direito Penal têm rejeitado o caráter político dos crimes do título XII do CP[9]. Os argumentos mobilizados podem ser resumidos à ideia de que na democracia não há que se fazer distinção entre crimes comuns e políticos, como acontecia na ditadura[10]. Usam o fato de tais delitos terem sido inseridos no Código Penal como reforço argumentativo.
Ocorre que a vedação de extradição a crimes políticos visa justamente ressaltar as diferenças entre esses tipos de crimes e o caráter local e contingencial dos crimes políticos: tais crimes não necessariamente têm correspondência no direito comparado; e democracias e autocracias geralmente dão tratamento diferentes a eles, ainda que em geral ambas defendam o seu tipo de Estado – democrático ou autocrático.
Porém, para fins de extradição quem define o caráter ou não sobre se o crime é comum ou político não é o país requerente (no caso, o Brasil), mas o país requerido (a Argentina), com base em seu direito interno e os tratados por ele firmados (p.ex., há consenso internacional de que terrorismo não é crime político).
O Brasil parece ter o direito-dever de requerer a extradição como meio de afirmação de sua soberania e respeito ao cumprimento de decisões de seus tribunais. A Argentina fará o juízo se que aquelas condutas cometidas pelos foragidos brasileiros em seu país são “crimes políticos”, ou seja, se afetam ou não o a ordem constitucional.
O interessante é que se o país requerido entende que a conduta do estrangeiro que se evadiu do seu estado de origem afetou a ordem política do país requerente, e ambos reconhecem essa modalidade de vedação de extradição, não poderá entregar o estrangeiro (violaria sua constituição, leis, tratados assinados e costume/reciprocidade).
Reconhecer tal limitação significa uma interpretação “liberal” – ou garantista – do direito. Trata-se de uma garantia ao réu/condenado e, portanto, deve ser interpretada em favor, neste caso, dos evadidos. Não se deixa de fazer um juízo de reprovação à conduta, mas funciona como um impeditivo de aplicação da lei penal, tal qual a prescrição, por exemplo.
Nesse sentido, nada impede que o Brasil requeira e a Argentina entregue os foragidos, e ainda assim se apliquem as benesses do reconhecimento do caráter político do crime, como a faculdade de trabalhar (art. 200, LEP)[11]. A prisão não teria o objetivo de modificar as convicções políticas do sujeito, mas apenas impedir que ele volte a atentar contra o seu país. Por isso que no caso de evasão ele deixaria de ser uma ameaça.
Essa tese, consolidada no direito internacional desde o século 19, tem seus limites. Não é o caso do 8 de janeiro, mas veja-se o contexto de crimes pela internet. Casos como o de Allan dos Santos, blogueiro investigado pelos inquéritos do STF que em razão disso mudou-se para os EUA, sugerem que há a necessidade de se pensar em instrumentos de flexibilização, porque a conduta realizada no estrangeiro pode ter consequências no Brasil.
Já existem outras limitações à vedação de extradição de crimes políticos (vejam-se as causas de abertura dos regicídios; da preponderância de crime comum sobre político em caso de concurso; do risco de violação de direitos humanos – todas previstas no tratado entre Brasil e Argentina, por exemplo): então, nada impediria a criação de uma nova modalidade, a ser reconhecida em tratados ou pelo costume de reciprocidade.
Em resumo:
os crimes do título XII do CP sucedem a LSN e devem ser lidos como políticos à luz da constituição;
ainda assim, o Brasil pode pedir a extradição dos condenados que fugiram para a Argentina como meio de afirmação de sua soberania;
quem decide se deve extraditar com base no reconhecimento de crime comum, ou não, ao reconhecer o caráter político de tais delitos à luz de seu ordenamento, é a Argentina;
caso a Argentina não entregue os foragidos, o “exílio” serve como “pena”, mas o reingresso dentro do prazo prescricional no Brasil enseja a aplicação da lei penal;
caso a Argentina entregue os brasileiros foragidos, nada impede que o Brasil reconheça o caráter político dos crimes e aplique as benesses legais como a faculdade de trabalho carcerário.
[1] Prevista apenas em lei: PARTE II – EXTRADICION. TITULO I – Extradición passiva. CAPITULO I – Condiciones generales. ARTICULO 8°-La extradición no procederá cuando: a) El delito que la motiva fuese un delito político; […]” (LEY DE COOPERACION INTERNACIONAL EN MATERIA PENAL. Ley 24.767. Promulgada de Hecho: Enero 13 de 1997).
[2] Prevista como garantia constitucional: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LI – nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei; LII – não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”.
[3] “Artigo 3 – Recusa da extradição. A extradição não será concedida: […] i) se o delito pelo qual se solicita a extradição é considerado pela Parte requerida como um delito político ou conexo a tal delito. Não são considerados delitos políticos ou conexos: i) os atentados contra a vida e integridade física de um chefe de Estado ou de Governo, ou de um dos membros de sua família; ii) os atos de terrorismo; iii) os crimes de guerra, os delitos contra a humanidade e outros delitos contra o Direito Internacional; e iv) os delitos em relação aos quais as Partes têm a obrigação de extraditar ou exercer jurisdição, decorrente de um acordo internacional multilateral que vincule a ambas”.
[4] NUNES, Diego. Extradição, crimes políticos e a “luta international contra o crime entre os séculos XIX e XX. In: Constituição e direito internacional: formas de diálogo entre os séculos XIX e XX. Itajaí: Univali, 2015 (https://www.academia.edu/43265377/Extradição_crimes_políticos_e_a_luta_international_contra_o_crime_entre_os_séculos_XIX_e_XX).
[5] KIRSZTAJN. Laura Mastroianni. A Lei De Segurança Nacional no STF: como uma lei da ditadura vive na democracia? Monografia (Especialização) – Sociedade Brasileira de Direito Público. São Paulo: SBDP, 2018, in http://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2019/03/LauraMonografia.pdf.
[6] “TÍTULO XII – DOS CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. CAPÍTULO II – DOS CRIMES CONTRA AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS. Abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência. Golpe de Estado. Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência”.
[7] “Art. 17 – Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro. Art. 18 – Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos”.
[8] Por todos, Nucci: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas: vol. 1. 10 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
[9] Por todos, Bitencourt: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. V. 5. 18 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024.
[10] Por todos, Sanches: SANCHES CUNHA, Rogério; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/21). Salvador: JusPodium, 2021.
[11] “Art. 200. O condenado por crime político não está obrigado ao trabalho”.