No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

pensamento do dia

Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Autor:
Maria Clara Rodrigues Arantes¹

RESUMO
Este artigo aborda a necessidade de reconhecer e positivar novos direitos humanos fundamentais para a proteção da mente humana, os intitulados neurodireitos, frente ao avanço das neurotecnologias. A análise explora as finalidades e os riscos das emergentes tecnologias que interagem com o sistema nervoso central, define os direitos neurais essenciais para a proteção da integridade mental, à luz da dignidade da pessoa humana, e apresenta as pertinentes intervenções jurídicas no âmbito internacional e no Brasil. Para tanto, realizou-se uma pesquisa de natureza exploratória e utilizou-se um método de abordagem qualitativo, fundamentado na revisão bibliográfica. Por fim, conclui-se que os neurodireitos consistem numa adequação lógica dos direitos humanos fundamentais à sociedade pós-moderna, marcada pela evolução tecnocientífica, e, por isso, devem ser assegurados universalmente e positivados em cada Estado Democrático de Direito, interligados por um sistema global de proteção aos direitos neurais.

Palavras-chave: Neurotecnologias. Mente Humana. Neurodireitos. Novos Direitos Humanos. Regulamentação.

ABSTRACT
This article addresses the need to recognize and positivity new fundamental human rights for the protection of the human mind, namely neurorights, in the face of advancements in neurotechnologies. The analysis explores the purposes and risks of emerging technologies that interact with the central nervous system, defines the essential neural rights for the protection of mental integrity, in light of human dignity, and presents the relevant legal interventions internationally and in Brazil. To this end, exploratory research was conducted using a qualitative approach, based on a literature review. Finally, it is concluded that neurorights are a logical adaptation of fundamental human rights to the post-modern society, marked by techno-scientific evolution, and therefore should be universally guaranteed and enshrined in every Democratic State of Law, interconnected by a global system of protection for neural rights.

Keywords: Neurotechnologies. Human Mind. Neurorights. New Human Rights. Regulation.

___________________
1. Bacharel em Direito pela Faculdade Católica de Anápolis (2024). Pós-graduanda em “Sistema de Justiça Criminal” pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás.

Sumário: Introdução. 1. Neurotecnologias e os avanços sobre a mente humana. 2. Neurodireitos: os novos direitos humanos para a proteção da mente. 2.1 Direito à privacidade mental. 2.2 Direito à identidade pessoal ou à continuidade psicológica. 2.3 Direito à liberdade de pensamento ou cognitiva. 2.4 Direito ao acesso justo ao aprimoramento mental. 2.5 Direito à proteção contra preconceitos algorítmicos. 2.6 Direito à integridade mental. 3. Um caminho para a regulamentação dos neurodireitos. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A mente humana, concebida como a esfera mais íntima do ser humano e o cerne da sua individualidade, está se tornando cada vez mais acessível ao mundo exterior em razão dos avanços das neurotecnologias, capazes de interagir com o Sistema Nervoso Central.

Embora o propósito principal dessas emergentes tecnologias seja beneficiar os indivíduos e contribuir para a evolução da humanidade, o seu uso inadequado pode levar à violação da integridade mental das pessoas e alterar, inclusive, a própria noção do que significa ser humano.

Diante disso, é necessário definir os limites da atuação das neurotecnologias, à luz da dignidade da pessoa humana, através do reconhecimento e regulamentação de novos direitos humanos fundamentais voltados à proteção da mente, os recém conceituados neurodireitos ou direitos neurais.

Portanto, objetivou-se por meio do presente artigo: a) descrever as inovadoras neurotecnologias que interferem direta e indiretamente na atividade do sistema nervoso da pessoa física, bem como as suas funções e consequências; b) identificar e conceituar os principais direitos voltados à proteção da integridade mental frente à evolução tecnocientífica e dos direitos humanos, ou seja, os neurodireitos e seus objetos de tutela; c) apresentar as possíveis, e já existentes, propostas jurídicas e intervenções legais para a normatização dos direitos neurais no âmbito internacional e no Brasil.

Para alcançar os objetivos propostos, foi utilizado um método de abordagem qualitativo, fundamentado na revisão bibliográfica. Na pesquisa, de natureza exploratória, o levantamento bibliográfico foi realizado através de livros, artigos, legislações, doutrinas, jurisprudências, notícias e documentários relacionados ao tema central.

NEUROTECNOLOGIAS E OS AVANÇOS SOBRE A MENTE HUMANA

Ao longo da história, a compreensão da mente humana tem sido um desafio persistente. A despeito dos avanços tecnocientíficos, um conceito preciso e definitivo sobre esse fenômeno complexo ainda é elusivo. A neurociência, no entanto, apresenta algumas premissas para um melhor entendimento das faculdades mentais.

Segundo António Rosa Damásio (2011), a mente é o resultado da interação multifacetada entre o corpo e o mundo. As emoções são reações a determinados estímulos e os sentimentos as experiências mentais das emoções corporais. Para o neurologista, o corpo cria mapas neurais que são a base para a construção da mente e da consciência.

Não destoante do pensamento supra, a neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel (2015) apresenta a mente como uma rede complexa de conexões neuronais responsável pelas capacidades cognitivas humanas. Isso inclui a parte física (neurônios) e psíquica (conjunto de sensações), pertencentes ao corpo humano.

Para além, observa-se que todos os estados mentais ou cognitivos (memórias, percepções, imaginação, emoções, decisões, ações etc.) emanam da atuação dos circuitos neurais do Sistema Nervoso Central (GOERING et al., 2021). Este, no que lhe concerne, é composto pela medula espinal e pelo encéfalo, que engloba o cérebro, o cerebelo e o tronco encefálico (BEAR, 2017).

À vista disso, a integridade mental ou psíquica pode ser entendida como o “domínio do indivíduo sobre seus estados mentais e seus dados cerebrais, de modo que, sem seu consentimento, ninguém pode ler, compartilhar ou alterar tais estados e dados para condicionar o indivíduo de qualquer forma” (LAVAZZA, 2018, p. 04, tradução nossa).

Por muito tempo, a mente humana foi concebida como o núcleo mais íntimo da identidade individual, uma fortaleza exteriormente inacessível. A possibilidade de acessar ou alterar os processos mentais internos era inconcebível (Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, 2024). No entanto, a evolução tecnológica está impulsionando avanços sem precedentes e, atualmente, existem mecanismos capazes de registrar, interpretar ou alterar a atividade do Sistema Nervoso Central dos seres humanos, as chamadas neurotecnologias.

De acordo com a Fundação Neurorights (2024, tradução nossa), a neurotecnologia pode ser definida como “qualquer tecnologia que registre ou altere a atividade do sistema nervoso, incluindo o cérebro, a medula espinhal e os nervos periféricos”. Contudo, resta compreender e estabelecer quais limites poderão ser alcançados, a fim de promover segurança e proteção ao indivíduo.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em consonância, assevera que a neurotecnologia engloba os “dispositivos e procedimentos usados para acessar, monitorar, investigar, avaliar, manipular e/ou emular a estrutura e função dos sistemas neurais de pessoas físicas” (OCDE, 2022, p. 6, tradução nossa).

Nas palavras do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (2024, p. 3, tradução nossa):

“As neurotecnologias têm um caráter único e são socialmente disruptivas porque em geral: a) permitem a exposição de processos cognitivos; b) permitem a alteração direta dos processos mentais e pensamentos de uma pessoa; c) contornam o controle ou a percepção consciente do indivíduo; d) permitem o acesso externo não consensual a pensamentos, emoções e estados mentais; e) são alimentadas por “neurodados”, necessários ao seu próprio funcionamento, calibração e otimização; e f) coletam, analisam e processam grandes conjuntos de dados pessoais altamente sensíveis.”

A atividade cerebral pode ser registrada e estimulada por diversos métodos. As técnicas não invasivas atuam externamente, como as que operam através do crânio, enquanto as invasivas exigem a implantação de dispositivos no tecido cerebral por meio de cirurgia (Iberdrola, 2024).

Entre as técnicas mais proeminentes para registrá-la, encontra-se o eletroencefalograma (EEG), a ressonância magnética funcional (IRMf), a espectroscopia funcional em infravermelho próximo (fNIRS) e a implantação de microagulhas. Em relação aos recursos utilizados para estimular o cérebro, cita-se a estimulação elétrica transcraniana (tES), a estimulação magnética transcraniana (TMS), o ultrassom focalizado (FUS) e a estimulação cerebral profunda (DBS) (Iberdrola, 2024).

quadro

As aplicações mais controversas e promissoras da Neurotecnologia, contudo, são as interfaces cérebro-computador (BCIs), consistentes em dispositivos que conectam o cérebro de uma pessoa a outros aparelhos fora do corpo humano, como a um smartphone ou computador, permitindo uma comunicação bidirecional entre o referido órgão e o mundo externo, exportando dados cerebrais ou alterando a atividade cerebral (Genser; Herrmann; Yuste, 2021).

Interfaces cérebro-computador (BCIs) e estimuladores cerebrais profundos (DBS) são tecnologias que interagem com o cérebro humano através de eletrodos, os quais podem ser implantados no seu interior, na sua superfície ou posicionados externamente ao crânio, permitindo a modulação do processamento cerebral (GOERING et al., 2021).

A iniciativa pioneira BRAIN (Brain Research Through Advancing Innovative Neurotechnologies) nos Estados Unidos (EUA), impulsionada pelo presidente Barack Obama, em 2013, financiou pesquisas públicas para o desenvolvimento de neurotecnologia e inteligência artificial. Concomitantemente, órgãos governamentais passaram a liderar uma revolução neurotecnológica, também, em outros países, como China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Canadá (Yuste, Genser e Herrmann, 2021).

O desenvolvimento neurotecnológico no setor privado está em constante evolução. Empresas como Neuralink, Kernel, Facebook e Microsoft, entre outras, estão realizando grandes investimentos nesta área, inclusive, já ultrapassaram os públicos (GOERING et al., 2021). “De fato, nos últimos 20 anos, mais de 19 bilhões de dólares foram investidos globalmente em mais de 200 projetos de neurotecnologia” (Yuste, Genser e Herrmann, 2021, p. 157, tradução nossa).

A título de exemplo, a empresa Neuralink, fundada por Elon Musk, tem como missão “criar uma interface cerebral generalizada para restaurar a autonomia daqueles com necessidades médicas não atendidas hoje e desbloquear o potencial humano amanhã” (Neuralink, 2024, tradução nossa).

Através do estudo PRIME, a startup de Musk está desenvolvendo uma interface de alto desempenho para pessoas com tetraplegia. A primeira implantação humana desta BCI foi realizada em janeiro de 2024, sendo possível nesta oportunidade detectar os sinais neurais do participante logo após a cirurgia de implantação. Desde então, o paciente tem usado o sistema para várias aplicações, como jogos online (Neuralink, 2024).

Essencialmente, essas inovações visam beneficiar as pessoas e contribuir com a evolução da sociedade, pessoas afetadas por doenças mentais e neurológicas (lesões cerebrais, paralisias, epilepsia, esquizofrenia etc.) podem ter suas enfermidades amenizadas e até cessadas. Conforme a OCDE (2022), as neurotecnologias podem agir significativamente em diversas áreas, promovendo a saúde, o bem-estar e o crescimento econômico.

Embora a Neurotecnologia ofereça avanços significativos, seu uso inadequado ou abusivo pode desencadear efeitos colaterais irreversíveis, pois atinge diretamente a psique humana, a esfera mais íntima e complexa do indivíduo.

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (2024) reafirma a responsabilidade dos Estados de garantir o acesso à melhor saúde e à ciência, mas alerta que o avanço tecnológico não pode violar a dignidade humana e deve ser direcionado ao bem comum e à preservação dos direitos humanos universais.

De acordo com a Fundação Neurorights (2024), em breve será possível decodificar os processos mentais e aprimorar a capacidade cognitiva das pessoas, o que pode impactar na própria definição de pessoa e alterar fundamentalmente a sociedade.

Por outro lado, essas tecnologias podem também exacerbar as desigualdades sociais e oferecer aos detentores de poderes novas formas de explorar e manipular a população. Além disso, detêm o potencial de modificar radicalmente aspectos humanos fundamentais, como a privacidade mental, a autonomia individual e a concepção do indivíduo como uma entidade indissociável de seu corpo (YUSTE et al., 2017).

Desta forma, para garantir que as novas tecnologias efetivamente beneficiem a sociedade, é fundamental que seu desenvolvimento, gestão, uso e governança sejam guiados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. As neurotecnologias devem ser analisadas sob a perspectiva dos direitos humanos, já que são uma nova vertente de incidência e de aplicação destes (PIOVESAN, 2024).

Ante a vulnerabilidade da mente humana, observa-se a necessidade de limitar a atuação e utilização das neurotecnologias à luz da dignidade humana, a fim de impedir qualquer violação à integridade psíquica dos indivíduos, evitando a sua manipulação ou modificação arbitrária. Para uma abordagem dos desafios éticos, sociais e legais relativos às neurotecnologias, os governantes, inovadores, empreendedores, cientistas e juristas precisam estar em consonância e traçar objetivos conjuntos.

No âmbito jurídico, enfoque desta produção, faz-se imprescindível o reconhecimento universal de novos direitos humanos atrelados à proteção da mente, os recém conceituados neurodireitos ou direitos neurais, assim como a sua regulamentação em cada Estado de Direito (The Neurorights Foundation, 2024).

NEURODIREITOS: OS NOVOS DIREITOS HUMANOS PARA A PROTEÇÃO DA MENTE

Os direitos humanos são aqueles indispensáveis para uma vida digna, fundamentada na liberdade e na igualdade. Não há que falar em um rol imutável de direitos humanos essenciais. As necessidades humanas são dinâmicas e a construção jurídica destes direitos é um processo contínuo e histórico, moldado pelas demandas sociais de cada época (RAMOS, 2024).

De fato, nesta sociedade pós-moderna, as novas e emergentes tecnologias impactam significativamente em um mundo globalizado, possibilitando o desenvolvimento social, cultural e econômico. Do mesmo modo, essa interconexão aumentada potencializa os desafios e problemas para os Estados e seus indivíduos (PIOVESAN, 2024).

Deste modo, as emergentes tecnologias têm um impacto multidimensional nos direitos humanos, podendo ser, simultaneamente, fonte de novos direitos essenciais e mecanismos de exclusão, violação e ameaças inéditas à humanidade (ibid.).

Sob tal perspectiva, frente à iminente ameaça das neurotecnologias, surge uma nova estrutura de direitos humanos chamada “Neurorights”, na Universidade Columbia, em 2017. O termo foi cunhado por líderes acadêmicos, dentre os quais se destaca o neurocientista Rafael Yuste, fundador da Fundação Neurorights cujo objetivo principal é “proteger os direitos humanos de todas as pessoas contra o potencial uso indevido ou abusivo da neurotecnologia” (The Neurorights Foundation, 2024, tradução nossa).

Os intitulados Neurodireitos, segundo IENCA (2021, p. 1, tradução nossa), são os “princípios éticos, legais, sociais ou naturais de liberdade ou direito relacionados ao domínio cerebral e mental de uma pessoa; isto é, as regras normativas fundamentais para a proteção e preservação do cérebro e da mente humana”.

E não devem ser confundidos com a expressão “neurodireito ou neurolaw”, usada em 1990 para caracterizar a relação entre os neuropsicólogos e advogados no sistema de justiça criminal, e, posteriormente, abarcar as conexões entre a neurociência e o direito (ibid.).

Devido à historicidade dos direitos humanos, em outros termos, a sua consolidação gradual ao longo da história, infere-se que os neurodireitos são uma ampliação lógica dos direitos humanos essenciais na era digital, na qual suscitam-se dilemas éticos e morais que necessitam de um arcabouço legal específico (GARCEZ, 2023).

Deste modo, para enfrentar os novos desafios criados pelas neurotecnologias, faz-se indispensável o surgimento de novos direitos humanos ou, ao menos, a evolução e reconceituação de direitos essenciais já consolidados.

A visão da Fundação Neurorights (2024, tradução nossa) é inequívoca: a era atual exige uma nova e específica estrutura de proteção, os “Neurorights”. O seu propósito é “incorporar cinco neurodireitos que foram identificados como essenciais na legislação internacional de direitos humanos, nas estruturas legais e regulatórias nacionais e nas diretrizes éticas”.

IENCA (2021), por sua vez, considera conveniente, inicialmente, tratar os neurodireitos como interpretações evolutivas dos direitos existentes e, concomitantemente, realizar testes justificativos para avaliar se eles realmente constituem novos direitos humanos.

Citando ALSTON (1984) e (NICKEL et al., 2013), IENCA (2021, p. 9, tradução nossa) propõe as seguintes listas de critérios para caracterizar um novo direito humano, o qual deve:

“[…] (i) refletir um valor social fundamentalmente importante; (ii) ser consistente, mas não meramente repetitivo, com o corpo existente de direito internacional dos direitos humanos; (iii) ser capaz de alcançar um grau muito alto de consenso internacional e (iv) ser suficientemente preciso para dar origem a direitos e obrigações identificáveis (Alston, 1984). Da mesma forma, Nickel exigiu que um direito humano proposto não apenas (i) lidasse com algum bem muito importante, mas também (ii) respondesse a uma ameaça comum e séria a esse bem, (iii) impusesse encargos aos destinatários que fossem justificáveis e não maiores do que o necessário, e (iv) fosse viável na maioria dos países do mundo.”

Diante desse cenário, Andorno e Ienca (2017) identificaram quatro novos direitos humanos para a proteção da mente humana frente ao avanço neurotecnológico: 1) direito à liberdade cognitiva; 2) direito à privacidade mental; 3) direito à integridade mental; 4) direito à continuidade psicológica.

Simultaneamente, a Fundação Neurorights (2024) elencou cinco neurodireitos específicos para o mesmo fim: 1) direito à privacidade mental; 2) direito à identidade pessoal; 3) direito ao livre arbítrio; 4) direito ao acesso justo ao aprimoramento mental; 5) direito à proteção contra preconceitos algorítmicos.

Ante o exposto, observa-se que, apesar de algumas divergências conceituais, os pesquisadores deste ramo buscam a tutela jurídica universal para os mesmos bens. Assim, ao tentar definir cada neurodireito em específico, há de se considerar algumas áreas de intersecção e disjunção entre as propostas de estruturas jurídicas já concebidas.

Direito à privacidade mental

É essencial que os dados neurais obtidos através da medição da atividade neural sejam tratados como informações confidenciais, de caráter privado e sigiloso. O indivíduo deve ter o controle sobre seus neurodados e, caso sejam armazenados, pode, a qualquer momento, exigir a sua exclusão. A comercialização, transferência e utilização de dados neurais devem ser submetidas a regulamentações específicas e rigorosas, visando garantir a proteção da privacidade mental individual (The Neurorights Foundation, 2024).

Os dados neurais podem ser definidos como aqueles “relativos ao funcionamento ou estrutura do cérebro humano de um indivíduo identificado, que inclua informações exclusivas sobre sua fisiologia, saúde ou estados mentais” (OCDE, 2022, p. 6, tradução nossa).

Tais dados somente devem ser coletados e utilizados quando estritamente necessários e para finalidades específicas e legítimas. Por se tratar de informações extremante sensíveis, exige-se proteção especial, uma vez que seu tratamento indevido pode causar danos irreparáveis à dignidade e à integridade pessoal (Comissão Jurídica Interamericana, 2021).

Andorno e Ienca (2017, p. 13, tradução nossa), no mesmo sentido, propuseram o reconhecimento deste direito que “visa proteger as pessoas contra o acesso ilegítimo às suas informações cerebrais e evitar o vazamento indiscriminado de dados cerebrais em toda a infosfera”. Segundo os autores, a sua consolidação faz-se imprescindível diante da particularidade dos dados cerebrais, porque as informações a serem protegidas confundem-se com o próprio processamento neural do indivíduo e permitem, ainda, o rastreamento de sua identidade.

Direito à identidade pessoal ou à continuidade psicológica

Limites devem ser impostos para o desenvolvimento e uso da tecnologia, a fim de preservar a integridade da identidade pessoal humana. A neurotecnologia, ao conectar diretamente o cérebro às redes digitais, pode distorcer a percepção da realidade e criar um risco de confusão entre a consciência individual e a inteligência artificial, entre o que é interno e externo (The Neurorights Foundation, 2024).

GOERING et al. (2021) definem a identidade pessoal como o conceito de “eu” para cada agente em particular. Por isso, embora a identidade seja dinâmica, e influenciada por diversos fatores, é normal e desejável ter características estáveis.

Para Andorno e Ienca (2017, p. 21, tradução nossa), o direito à continuidade psicológica propõe-se a:

“[…] preservar a identidade pessoal e a coerência do comportamento do indivíduo contra modificações não consentidas por terceiros. Ele protege a continuidade dos pensamentos, preferências e escolhas habituais de uma pessoa, protegendo o funcionamento neural subjacente.”

A princípio, as neurotecnologias que visam auxiliar na restauração de uma pessoa a um estado anterior à determinada enfermidade, como o uso de Estimulação Cerebral Profunda para tremores ou rigidez de Parkinson, parecem buscar a preservação da identidade original do paciente (GOERING et al., 2021).

Entretanto, as neurotecnologias, principalmente as invasivas, podem deturpar o senso de identidade dos seus usuários. “Características às vezes atribuídas à personalidade – impulsividade, conscienciosidade, neuroticismo, abertura ou agradabilidade – podem ser alteradas por meio de intervenções neurais” (GOERING et al., 2021, p. 5, tradução nossa).

Logo, a falta de regulamentação específica para tais tecnologias expõe os seres humanos à possibilidade de manipulação de suas emoções, sentimentos e decisões por parte de empresas e governos que as controlam, conforme declara a Comissão Jurídica Interamericana (2021).

Direito à liberdade de pensamento ou cognitiva

O direito à liberdade de pensamento e livre arbítrio, ou à agência, propagado pela Fundação Neurorights (2024), refere-se a própria autodeterminação mental e configura-se como o controle total dos indivíduos sobre seus próprios pensamentos, decisões e ações, sem interferências externas de neurotecnologias.

A Comissão Jurídica Interamericana (2021, p. 2) entende a autonomia individual como a “capacidade de desenvolver a própria personalidade e aspirações, determinar sua própria identidade, o controle das funções corporais e das decisões e o estabelecimento das relações interpessoais.”

Ao tratar do assunto, por outro lado, Andorno e Ienca (2017) formularam o direito à liberdade cognitiva, consistente na capacidade humana de controlar os próprios processos mentais e recusar usos coercitivos da neurotecnologia. Os referidos autores afirmam, com base em Berlin (1959), que a liberdade cognitiva envolve os seguintes pré-requisitos de liberdades negativas e positivas:

“[…] a liberdade negativa de fazer escolhas sobre o próprio domínio cognitivo na ausência de obstáculos, barreiras ou proibições governamentais ou não governamentais; a liberdade negativa de exercer o próprio direito à integridade mental na ausência de constrangimentos ou violações por parte de corporações, agentes criminosos ou do governo; e, finalmente, a liberdade positiva de ter a possibilidade de agir de forma a assumir o controle da própria vida mental.” (ANDORNO & IENCA, 2017, p. 11, tradução nossa)

Há consenso sobre as premissas da liberdade cognitiva, mas discordâncias quanto ao seu alcance. Diante disso, IENCA (2021) defende que, do ponto de vista conceitual, é mais conveniente adotar a liberdade de pensamento para tratar da autodeterminação mental, visto que já é consagrada juridicamente e engloba tanto o campo da cognição quanto o da ação.

Direito ao acesso justo ao aprimoramento mental

As intervenções neurotecnológicas de aprimoramento são aquelas que potencializam as capacidades cognitivas e físicas do ser humano além do que é necessário para manter ou restaurar a saúde, diferentemente daquelas relacionadas a tratamentos médicos (GOERING et al., 2021). O direito ao acesso justo ao aprimoramento mental refere-se à “capacidade de garantir que os benefícios das melhorias na capacidade sensorial e mental por meio da neurotecnologia sejam distribuídos de forma justa à população” (Genser, Herrmann e Yuste, 2021, p. 160-161, tradução nossa).

O uso das neurotecnologias para tratar e curar doenças é promissor e legítimo, porém torna-se “problemático determinar o que é doença em alguns casos, o que é melhoria de defeitos ou deficiências, e o que é potencialização ou aumento cognitivo, e isso pode gerar lacunas legais e regulatórias” (Comissão Jurídica Interamericana, 2021, p. 2).

Tais mecanismos são capazes de “melhorar o humor, fornecer acesso ao reconhecimento facial ou à lembrança de nomes, ou permitir que uma pessoa exerça força sobre-humana por meio de um braço robótico controlado pelo pensamento”, entre outros (GOERING et al., 2021, p. 12, tradução nossa).

As desigualdades socioeconômicas criam barreiras para o acesso igualitário aos benefícios do progresso científico e suas aplicações fundamentais, inclusive às neurotecnologias e suas interconexões com a inteligência artificial. Logo, se não forem desenvolvidas e aplicadas de forma equitativa, ampliarão as disparidades já existentes (Comissão Jurídica Interamericana, 2021).

A fim de evitar desigualdades, é imprescindível estabelecer diretrizes internacionais e nacionais para regulamentar o uso destas novas tecnologias de aprimoramento e tratamento, oportunizando o acesso justo e equitativo a toda população (The Neurorights Foundation, 2024).

Direito à proteção contra preconceitos algorítmicos

A prevenção do preconceito deve ser a regra para quaisquer algoritmos em neurotecnologias. Assim, diversos grupos com diferentes perspectivas devem participar ativamente do desenvolvimento destes processos desde o início, garantindo uma maior diversidade e equidade (The Neurorights Foundation, 2024).

O preconceito pode ocorrer quando “decisões científicas ou tecnológicas são baseadas em dados, metodologias, valores ou conceitos limitados” (GOERING et al., 2021, p. 9, tradução nossa). Neste cenário, perspectivas alternativas, principalmente de grupos minoritários e vulneráveis, podem ser oprimidas.

Tais vieses podem aparecer através das metas de pesquisa, geralmente moldadas pelo ambiente de trabalho e seus financiadores, normas culturais e conflitos de interesse, bem como na seleção de participantes ou dados, já que é difícil coletar amostras satisfatoriamente diversificadas e inclusivas, e na interpretação dos resultados. Manifestam-se tanto de forma consciente quanto inconsciente (ibid.).

Poderá haver, também, uma pressão social para aderir ao padrão social comercializado pelas tecnologias de aprimoramento, assim, pessoas com determinados diagnósticos médicos se sentirão compelidas a alterar condições que não veem como prejudiciais (ibid.).

Em breve, a demanda por dispositivos que aumentem a resistência física e as capacidades cognitivas levantarão questões como o acesso equitativo a essas tecnologias e o risco de novas formas de discriminação, bem como a possibilidade de uma competição armamentista entre os Estados (YUSTE et al., 2017).

Direito à integridade mental

Prevista na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), por exemplo, a integridade mental ou psíquica, nestes regulamentos, relaciona-se ao direito à saúde e tratamentos humanitários. Todavia, a neurotecnologia suscita a necessidade de uma ampliação conceitual para abranger, também, a proteção da mente e da atividade cerebral contra qualquer tipo de interferência não autorizada ou que possa causar danos.

Sob o ângulo de Andorno e Ienca (2017, p. 18, tradução nossa), a integridade mental deve constituir uma espécie dentro dos neurodireitos, dado isso:

“Esse direito reconceituado deve fornecer uma proteção normativa específica contra possíveis intervenções habilitadas pela neurotecnologia envolvendo a alteração não autorizada da computação neural de uma pessoa e potencialmente resultando em danos diretos à vítima. Para que uma ação X se qualifique como uma ameaça à integridade mental, ela deve: (i) envolver o acesso direto e a manipulação da sinalização neural (ii) ser não autorizada – ou seja, deve ocorrer na ausência do consentimento informado do gerador do sinal, (iii) resultar em danos físicos e/ou psicológicos.”

A integridade mental é um conceito multifacetado, explorado por diversas áreas do conhecimento. Neste artigo, para fins acadêmicos, a expressão “integridade mental” será usada para indicar a proteção integral à atividade mental humana e sua base biológica frente às neurotecnologias, ou seja, resguardar todos os neurodireitos é o caminho para a proteção jurídica à integridade mental.

UM CAMINHO PARA A REGULAMENTAÇÃO DOS NEURODIREITOS

Há uma divergência doutrinária acerca da identificação e validação dos direitos essenciais. A corrente majoritária, por sua vez, entende que a terminologia “direitos humanos” define aqueles consagrados nos tratados e convenções internacionais, enquanto “direitos fundamentais” delimitaria os reconhecidos e positivados na Constituição de cada país (RAMOS, 2024).

Não obstante, em decorrência da crescente aproximação entre o Direito Internacional e o Direito Nacional, criou-se uma nova terminologia: “direitos humanos fundamentais”. No Brasil, essa proximidade é consagrada pela adoção do rito especial de aprovação congressual dos tratados de direitos humanos, que será equivalente à norma constitucional se aprovado nos termos do art. 5º, § 3º, da CF/88, e pelo reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (ibid.).

Do mesmo modo, para o reconhecimento e positivação dos neurodireitos de forma efetiva, os organismos internacionais e os Estados nacionais precisam caminhar juntos, com diretrizes e objetivos em comum.

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (2024) expressou a necessidade de elaborar um documento internacional para compilar normas e princípios importantes sobre o assunto em análise, a fim de fornecer orientações às políticas nacionais e impulsionar, em todo o mundo, abordagens alinhadas e concretas.

Até o momento, todas as publicações internacionais a respeito do tema foram de caráter não regulatório, existem apenas recomendações e declarações, não unificadas, com orientações gerais e princípios norteadores. Entre as principais, destacam-se: Recomendação Sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia da OCDE; Declarações da Comissão Jurídica Interamericana da OEA; Declaração de León sobre a Neurotecnologia Europeia do Conselho da União Europeia; Resolução A/HRC/51/L3 sobre Neurotecnologia e Direitos Humanos do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Todavia, faz-se imprescindível a elaboração de um documento regulatório que reflita o consenso internacional sobre à ameaça das neurotecnologias à dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, já lecionavam Genser, Herrmann e Yuste (2021, p. 163, tradução nossa) ao proporem as seguintes medidas:

“Primeiro, a Assembleia Geral da ONU, o Conselho de Direitos Humanos da ONU e outros órgãos relevantes deveriam criar um novo tratado ou propor um protocolo de adições aos tratados existentes para incorporar os neurodireitos. Essa medida garantirá a existência de órgãos específicos de tratados capazes de definir melhor os neurodireitos sob a lei internacional. Em segundo lugar, o Conselho de Direitos Humanos da ONU e seus procedimentos especiais devem incentivar os órgãos de tratados existentes, como o Comitê das Nações Unidas contra a Tortura e o Comitê de Direitos Humanos, a adotar Comentários gerais sobre os neurodireitos. Esses Comentários Gerais podem interpretar disposições dos tratados existentes como aplicáveis à neurotecnologia, ou podem interpretar o escopo dos neurodireitos individuais.”

Para além, os Estados-Membros devem desenvolver um arcabouço normativo específico para as neurotecnologias, capaz de responder às peculiaridades e aos impactos, tanto atuais quanto potenciais, dessas tecnologias sobre os direitos humanos fundamentais. É crucial que cada país faça adaptações na legislação nacional (constitucional, civil, penal, trabalhista etc.) para lidar com os novos desafios, desenvolva mecanismos institucionais de prevenção de violações e abusos, e reforce os poderes das instituições nacionais de direitos humanos para este fim (Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, 2024).

O sistema global de proteção dos direitos humanos com relação às novas tecnologias articula-se com os sistemas regionais e com as ordens nacionais. Desta forma, cria-se uma rede de tutela que promove um diálogo constante entre esses níveis, redefinindo os limites da soberania estatal e expandindo o alcance da jurisdição nacional, à luz da dignidade humana (PIOVESAN, 2024).

Nesse cenário, exalta-se o pioneirismo da América Latina na busca pelo reconhecimento dos neurodireitos, conforme o quadro demonstrativo abaixo.

Quadro 2 – Principais conquistas jurídicas relacionadas aos neurodireitos nos Estados

Quadro 2 – Principais conquistas jurídicas relacionadas aos neurodireitos nos Estados 

ESTADOS AVANÇOS

CHILE

25 de outubro de 2021: O presidente do Chile assinou uma emenda constitucional que garante os neurodireitos, protegendo a atividade cerebral e os dados relacionados. A aprovação do projeto de lei sobre neurodireitos pelo Senado ocorreu de forma simultânea.

9 de agosto de 2023: Em uma decisão histórica, a Suprema Corte do Chile reafirmou os neurodireitos ao determinar que a empresa de neurotecnologia Emotiv excluísse todos os dados cerebrais coletados do ex-senador Guido Girardi.

BRASIL

16 de outubro de 2023: O senador brasileiro Randolfe Rodrigues anunciou um projeto de lei para modificar o artigo 5º da Constituição do Brasil, visando proteger a atividade cerebral e os dados neurais. 

20 de dezembro de 2023: O estado brasileiro do Rio Grande do Sul tratou dos neurodireitos em sua constituição estadual ao proteger a integridade mental do ser humano.

MÉXICO

16 de outubro de 2023: O Parlamento mexicano anunciou iniciativas para modificar o Artigo 4 da Constituição, com o objetivo de proteger os dados neurais.

30 de outubro de 2023: A Carta Mexicana de Direitos Digitais passou a incluir oficialmente os neurodireitos.

ESPANHA

Julho de 2021: O governo espanhol aprovou a Carta de Direitos Digitais.

24 de fevereiro de 2023: Rafael Yuste participou da inauguração da Declaração de Valência sobre Neurodireitos.

11 de janeiro de 2024: O Gabinete Consultivo Científico do Parlamento Espanhol (“Oficina C”) divulgou um relatório sobre neurotecnologia e neurodireitos.

FRANÇA 17 de novembro de 2022: O Ministério do Ensino Superior e Pesquisa da França publicou a Carta para o Desenvolvimento Responsável de Neurotecnologias, para o desenvolvimento ético e responsável das neurotecnologias.

ESTADOS UNIDOS – COLORADO

17 de abril de 2024: O governador Jared Polis sancionou o HB 24-1058, a primeira legislação de neurodireitos do mundo, que entrou em vigor em 7 de agosto de 2024 no Colorado.

ESTADOS UNIDOS – CALIFÓRNIA

15 de fevereiro de 2024: O Projeto de Lei do Senado 1223, que altera a Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia (CCPA), é apresentado pelo Senador Becker.

2 de julho de 2024: SB 1223 é aprovado por unanimidade (10-0) pelo Comitê de Privacidade e Proteção ao Consumidor e encaminhado ao Comitê de Dotações.

Fonte: The Neurorights Foundation, 2024.

Atenta ao iminente risco das neurotecnologias, a Organização dos Estados Americanos aprovou, em março de 2023, a Declaração de Princípios Interamericanos sobre Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos, reconhecendo dez princípios norteadores.

Quadro 3 – Princípios da Organização dos Estados Americanos sobre Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos

Princípio 1 Preservação da identidade, autonomia e privacidade da atividade neural
Princípio 2 Proteção dos direitos humanos no desenvolvimento das neurotecnologias
Princípio 3 Compreensão dos dados neurais como dados pessoais confidenciais
Princípio 4 Consentimento expresso e informado no tratamento de dados neurais
Princípio 5 Igualdade, não discriminação e acesso equitativo às neurotecnologias
Princípio 6 Aplicação terapêutica exclusiva no que diz respeito ao aumento das capacidades cognitivas
Princípio 7 Proteção à integridade neurocognitiva
Princípio 8 Governança transparente das neurotecnologias
Princípio 9 Supervisão e controle das neurotecnologias
Princípio 10 Acesso à proteção eficaz e a recursos associados ao desenvolvimento e uso de neurotecnologias

Fonte: Comitê Jurídico Interamericano, 2023. 

À vista disso, em que pese a ausência de um tratado internacional ou uma declaração universal sobre a matéria, os Estados Americanos já possuem um norte para a criação e aplicação das regulações nacionais. PIOVESAN (2024) recorda que a jurisprudência internacional aponta três obrigações clássicas dos Estados no campo dos direitos humanos: a obrigação de respeitar direitos, protegê-los e implementá-los. Analogamente, aos países não cabe apenas obrigações negativas nessa matéria, mas, também, obrigações positivas para a promoção de um efetivo sistema de proteção de direitos garantidor da dignidade humana.

No Brasil, a Proposta de Emenda à Constituição n.º 29 de 2023, em tramitação, propõe à alteração da Constituição Federal para “incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica” (Senado Federal, 2023, p. 1). Observa-se que o senador Randolfe Rodrigues, autor da referida PEC, inspirou-se no parlamento chileno, que incluiu os neurodireitos na Constituição do país em 2021, sendo o primeiro marco normativo do mundo sobre a matéria.

O legislador brasileiro ressalta a importância de o país reafirmar seu protagonismo na defesa dos direitos humanos e internalizar no seu ordenamento jurídico a tutela constitucional aos neurodireitos, através da expansão da “compreensão jus-normativa da dignidade da pessoa humana diante do progresso da neurotecnologia e do uso dos algoritmos de inteligência artificial” (Senado Federal, 2023, p. 5).

Além disso, tramita na Câmara dos Deputados pátria o Projeto de Lei n.º 522 de 2022, de autoria do deputado Carlos Henrique Gaguim, cujo objetivo é modificar a Lei n.º 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) para conceituar dado neural e regulamentar a sua proteção, além de acrescentar os conceitos de “interface cérebro-computador” e “neurotecnologia” à legislação brasileira (Câmara dos Deputados, 2022).

Ao justificar o PL supracitado, Carlos Gaguim assevera a necessidade de uma proteção singular aos dados neurais, superior à atualmente destinada aos dados sensíveis, pois aqueles tornaram-se a última fronteira da privacidade humana. O tratamento de dados neurais representa uma ameaça à privacidade individual e podem subverter a forma como nos relacionamos com o mundo externo (ibid.).

Ademais, registra-se outro avanço dos neurodireitos no Brasil, mas ao nível regional. Trata-se da Emenda Constitucional n.º 85 de 2023, que alterou o parágrafo único do artigo 235 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, tratando dos neurodireitos. De acordo com a sua nova redação:

“A política e a pesquisa científica e tecnológica basear-se-ão no respeito à vida, à saúde, à dignidade humana, à integridade mental do ser humano e aos valores culturais do povo, na proteção, controle e recuperação do meio ambiente, e no aproveitamento dos recursos naturais.” (Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 2023).

Em face do exposto, é nítida a postura do Estado brasileiro na vanguarda pelo reconhecimento e regulamentação dos neurodireitos frente aos novos desafios impostos pelo avanço tecnocientífico, mesmo em fase inicial. Evidencia-se, ainda, o dever da Corte Constitucional brasileira de fomentar um debate técnico em prol dos direitos fundamentais aqui expostos.

Por fim, observa-se que, essencialmente e primordialmente, a regulamentação dos direitos neurais no Brasil é uma questão constitucional, pois são fundamentais à proteção da integridade mental e, consequentemente, à preservação da dignidade da pessoa humana. Posteriormente, esta positivação constitucional deverá reverberar nos outros ramos do direito, isto é, nas demais legislações nacionais.

CONCLUSÃO

Restou demonstrado que as neurotecnologias traçam uma linha tênue entre a evolução humana e a interferência mental arbitrária, por isso, os neurodireitos consistem numa adequação lógica dos direitos humanos fundamentais à sociedade vigente.

As neurotecnologias podem agir significativamente em diversas áreas, promovendo a saúde, o bem-estar e o crescimento econômico. Entretanto, o seu uso arbitrário ou irregular pode acarretar manipulações e modificações mentais inconcessas, violações à privacidade mental, discriminação algorítmica e seletividade no acesso ao melhoramento das capacidades cognitivas e físicas.

Portanto, para a proteção e preservação da mente humana e sua base biológica, faz-se imprescindível o reconhecimento e regulamentação dos neurodireitos em tradados internacionais e declarações universais e, consequentemente, a sua positivação perante cada Estado nacional. Apontou-se, ainda, a necessidade de trazer à constituição brasileira um marco regulatório sobre a matéria.

Em face do exposto, observa-se a relevância de conhecer e discutir os novos direitos humanos na pós-modernidade, e os principais caminhos para a sua normatização, para que o ser humano tenha o domínio sobre seus estados mentais e dados neurais, sendo um fim em si mesmo na era digital.

Por fim, ressalta-se que a positivação dos neurodireitos, embora seja um passo expressivo e essencial, é apenas o ponto de partida para a sua efetivação, carecendo de medidas assecuratórias concretas advindas dos governos, que devem estar em constante diálogo através de uma rede global de proteção aos direitos neurais.

 

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 522 de 2022. Modifica a Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), a fim de conceituar dado neural e regulamentar a sua proteção. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2146384&filename=PL%20522/2022. Acesso em: 29 out. 2024.

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By victor

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