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Advogado é um profissional liberal, graduado em Direito e autorizado pelas instituições competentes de cada país a exercer o jus postulandi, ou seja, a representação dos legítimos interesses das pessoas físicas ou jurídicas em juízo ou fora dele, quer entre si, quer ante o Estado.
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Autora:
Marina Dehon de Lima
Resumo: Por meio dos métodos qualitativo e bibliográfico, o presente artigo aborda a forma como é feito o depoimento especial pelo sistema de videogravação, em cotejo com o direito da criança e do adolescente vítima e testemunhas de violência de terem direito à voz e à imagem preservados, concluindo pela importância de se garantir em maior e melhor medida a autonomia quanto à disposição dos direitos personalidade no processo penal.
Abstract: Using qualitative and bibliographic methods, this article addresses how special testimony is made using the video recording system, in comparison with the right of children and adolescent victims and witnesses of violence to have the right to their voice and image preserved, concluding by the importance of guaranteeing greater and better autonomy regarding the disposition of personality rights in criminal proceedings.
Palavras-chave: Depoimento especial – crianças e adolescentes – direitos da personalidade – autonomia – imagem
Keywords: Special statement – children and adolescents – personality rights – autonomy – image
Sumário
- Introdução
- O depoimento especial – normatização
- A medida protetiva consistente no depoimento sem dano
- Quero falar, mas não quero ser visto
- Conclusão
- Bibliografia
- Introdução
A dignidade é uma metanorma do direito. Conforme a obra do saudoso FARIAS (2015):
Percebe-se que a dignidade é noção da mais alta relevância axiológica, pois jamais o ser humano poderá servir de meio para os outros, sendo um fim em si mesmo. Kant revela que o fundamento da dignidade reside na autonomia da vontade, à medida que esta é uma faculdade de autodeterminação que apenas pode ser exteriorizada em seres racionais como imperativo categórico de ordem moral. O imperativo categórico é ditado pela razão de forma universal: “age de tal forma que a máxima de te agir possa ser elevada a uma lei universal de conduta”. A segunda fórmula do imperativo categórico enuncia: “age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio”.
A garantia dos direitos humanos devem ter por foco o prestígio da dignidade da pessoa humana e para tanto, as ações voltadas a consagrar direitos fundamentais devem ser
constantemente melhoradas, humanizadas e aperfeiçoadas. A concretização dos direitos fundamentais é um processo em constante desenvolvimento ao longo da história.
Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, o que nem sempre foi assim. Isso representa que houve e ainda está havendo um aperfeiçoamento dos sistemas de garantia de direitos para que os direitos fundamentais das pessoas que são menores de dezoito anos sejam conferidos em maior medida possível. O alcance da maior medida da dignidade implica a existência de garantias negativas e positivas por parte do Estado, com a adoção de mecanismos que fomentem os direitos, de modo que a proteção do hoje seja sempre melhor que a proteção do passado, ou seja, sem retrocessos.
Foi pensando nisso que surgiu uma maneira mais humanizada de se ouvir crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência em juízo, ou seja, por meio do depoimento especial, em que uma pessoa técnica, habilitada e capacitada para tanto, colhe relatos de crianças que passaram por situações violentas, em lugar apropriado e acolhedor, utilizando-se de métodos de entrevista cientificamente aprovados em protocolos previamente estabelecidos. Esse tipo de oitiva busca o amparo da criança, o acolhimento de suas emoções, a escuta cuidadosa e respeitosa, enfim, concretiza uma forma mais humanizada de realizar um ato necessário ao processo penal enquanto produtor de prova.
Como em todos os atos existe o envolvimento de outros direitos e como ao longo da história se busca aperfeiçoar ao máximo o sistema de garantias, entende-se que os direitos da personalidade não podem ser subtraídos de crianças e adolescentes participantes de atos processuais, mesmo quando são realizados de maneira protegida e cuidadosa.
Para que se alcance ao máximo o objetivo protetivo em um depoimento especial, deve-se garantir que direitos fundamentais outros sejam protegidos e a cada vez mais conferido maior protagonismo às vítimas, sejam elas crianças ou não. É esse o objetivo do presente artigo, que se propõe a explorar a autonomia da criança ou adolescente e de seus responsáveis para decidir sobre sua imagem a ser exposta em um depoimento especial.
- O depoimento especial – normatização
O depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência tem por objetivo a produção de provas destinadas ao processo penal. Conforme registrado inclusive pela Childhood Brasil, foi por meio do trabalho realizado na 2a. Vara de Infância e Juventude de Porto Alegre (RS), que a prática do depoimento especial surgiu no Brasil, nos idos de 2003.
Por meio da Resolução do CNJ de n. 33/2010, a qual “recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais”, passou-se a normatizar como seria exercido o direito preconizado na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, de toda criança e adolescente serem ouvidos em processos que possam afetar seus interesses (art. 12). Estipulou-se na Resolução que incumbiria a um profissional habilitado a escuta da criança, em ambiente acolhedor e separado da sala de audiências, com a utilização de sistema de videogravação.
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FARIAS, Cristiano Chaves de…[et al.}. Curso de Direito civil: responsabilidade civil, volume 3. São Paulo: Atlas, 2015. pag. 11
CHILDHOOD Brasil. Depoimento Especial: Avanços e conquistas na luta por Justiça e dignidade para crianças e adolescentes que passam por violências. Disponível em <https://www.childhood.org.br/depoimento-especial-avancos-e-conquistas-na-luta-por-justica-e-dignidade-para-criancas-e-adolescentes-que-passam-por-violencias/#:~:text=Foi%20atrav%C3%A9s%20do%20trabalho%20pioneiro,depoimento%20especial%20surgiu%20no%20Brasil.> Acesso em 24/06/2024.
Conselho Nacional de Justiça. Resolução CNJ 33/2010. Recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais. Depoimento Especial. Disponível em <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/878> Acesso em 24/06/2024.
Posteriormente, foi publicada a Lei 13.431/17, conhecida como Lei da Escuta Especializada que passou a prever a forma como se procederia tanto a escuta especializada quanto o depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
A lei da Escuta Especializada – Lei n. 13.431/17 passou a prever no art. 12 que a oitiva da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência se dará por meio do procedimento de escuta especializada (pela rede de proteção) e do depoimento especial (delegado policial e em juízo), o que tem por foco evitar que a criança e o adolescente sejam ouvidos mais de uma vez, evitando-se uma nova vitimização ou vitimização secundária, que significa reviver as mesmas dores ao ter que recontar os fatos violentos vivenciados e presenciados.
SANCHES (2022) traz a diferenciação entre a escuta especializada e o depoimento especial:
Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado ao relato espontâneo e estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade (Lei 13.431/2017, art. 7o.)
Já o depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (Lei 13.431/2017, art. 8o.). Também conhecimento como depoimento com redução de dano, é realizado de forma multidisciplinar (com auxílio especialmente de assistente social ou psicólogo), permitindo um ambiente menos constrangedor e mais propício para a busca da verdade.
No caso de crianças menores que sete anos, ou ainda quando se tratar de crime sexual, haverá a necessidade de que o depoimento seja colhido em sede de produção antecipada de provas e defende-se, nesse contexto, de que seja colhida em juízo mediante o requerimento da medida cautelar pelo Ministério Público que é o detentor da titularidade para a propositura da ação penal cabível, nos termos do art. 129, inciso I, da Constituição Federal, não cabendo ao magistrado tal iniciativa ex officio. SANCHES (2022), sustenta, inclusive, a inconstitucionalidade do art. 156, inciso I, do CPP em se tratando de proceder a tal cautelar ex officio, por existir a necessidade de delimitação dos fatos para o exercício do contraditório e com isso, haveria violação ao sistema acusatório caso o depoimento fosse determinado pelo juízo.
- A medida protetiva consistente no depoimento sem dano
A sistemática do depoimento especial tem substrato na proteção de vítimas crianças e adolescentes, sob a ótica da proteção integral como primado constitucional, o que é reproduzido no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90. Busca-se com o depoimento especial garantir que a criança e o adolescente sejam acolhidos e ouvidos de maneira que não sejam causados novos atos de violência por parte das instituições (art. 4o., inciso IV, da Lei 13.431/17). De acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU de 1989, promulgada no Brasil por meio do Decreto n. 99.710/90, está explícito que os Estados são obrigados a garantir às crianças proteção e cuidado necessários ao seu pleno desenvolvimento, o que engloba, por certo, todos os procedimentos nos quais estão envolvidos (art. 3o., item 2).
Além desse princípio, a aludida Convenção traz em seu bojo que se deve atenção ao superior interesse da criança. De acordo com ANDRADE (2022):
Esta Convenção é apontada como o principal documento internacional de proteção à criança. Conta com 196 Estados e influenciou vários Estados-partes a editar suas leis nacionais baseadas na ratificação, destacando-se os seguintes aspectos:
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3) estabelece o princípio do interesse maior da criança como norteador das ações levadas a efeito por instituições públicas ou privadas, tribunais e autoridades administrativas, bem como o Poder Legislativo (art. 3o.). Além disso, há previsão de aplicação da norma mais conveniente para a garantia dos direitos da criança (art. 41).
Nesse contexto, de acordo com a Resolução CNMP n. 287/24, compete ao Ministério Público zelar para que a escuta especializada, realizada no âmbito da rede local de proteção à criança e ao adolescente, seja efetuada por profissionais qualificados e com formação especializada, observadas as diretrizes legais, sua finalidade protetiva e de participação da criança e adolescente, garantindo-se o encaminhamento da vítima ou testemunha para os programas e serviços necessários para a proteção integral (art. 3o., inciso IV). Além disso, compete ao Ministério Público, nos termos do art. 6o. da aludida Resolução:
Art. 6º O membro do Ministério Público deve cuidar para que a oitiva em juízo da criança e/ou adolescente vítima ou testemunha de violência seja realizada em sala de depoimento especial, por meio de profissional especializado, na forma do art. 11 e art. 12 da Lei nº 13.431/2017, zelando para que o depoimento não ocorra diretamente em sala de audiência pelo formato tradicional.
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- 1º O membro do Ministério Público deve velar para que a oitiva em juízo da criança e/ou adolescente vítima ou testemunha de violência pelo formato tradicional, por força do disposto no art. 12, §1º, da Lei nº 13.431/2017, somente ocorra em situações restritas, a seu pedido, após prestados os esclarecimentos devidos pela equipe técnica do juízo responsável pela realização do depoimento especial
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- 5º Se a recomendação pela não realização do depoimento especial for pautada na recusa, livre e informada, por parte da criança ou adolescente em depor, o membro do Ministério Público deve zelar para que seja respeitado esse direito, nos termos do art. 5º, VI, da Lei nº 13.431/2017 e art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança
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- 7º Deve o membro do Ministério Público, em qualquer hipótese, zelar para que a vítima não tenha contato, ainda que visual, com o autor ou acusado ou com qualquer outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento.
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Notável que a finalidade protetiva deve ser o foco de atuação do Ministério Público o que consagra a mudança paradigmática que se dá no processo penal de modo que, sem se descuidar da responsabilização do agressor, se busque salvaguardar os direitos fundamentais das vítimas de maneira primordial.
A condição de vítima ou testemunha de violência – e, digo, que criança que é testemunha de violência não deixa de ser também uma vítima – é uma condição vulnerabilizante por si só. Se a criança é vulnerável por idade, quando vítima de violência, é hipervulnerável, razão pela qual exige-se que seus direitos sejam salvaguardados com uma dupla primazia por todos os que integram a rede de proteção, dentre os quais se insere o sistema de justiça.
Tendo como foco essa proteção, sabido que crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais e devem ser colocadas a salvo de quaisquer violências, constrangimentos, crueldade e opressão.
O depoimento especial então deve ser feito para proteger seus direitos, em sala apartada, sendo excepcional a sua realização fora desse modelo. A presença de profissional qualificado, especialmente treinado para ouvir a criança e estabelecer com ela um contato que torne possível extrair fatos da memória traumatizada sem torturá-la novamente, é o que se nomina depoimento sem dano (ou ao menos com menos danos), porquanto a maioria dos operadores do direito não detém expertise necessária para levar a efeito esse ato, sem correr o risco de revitimizar com perguntas inadequadas ou induzidoras de respostas.
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CUNHA, Rogério Sanches. ÀVILA, Thiago Pierobom de. Violência Doméstica e Familiar contra crianças e adolescentes. Lei Henry Borel. Comentários à Lei 14.344/22 artigo por artigo. São Paulo: Editora Juspodvm, 2022. pags. 92/93
CUNHA, Rogério Sanches. ÀVILA, Thiago Pierobom de. Violência Doméstica e Familiar contra crianças e adolescentes. Lei Henry Borel. Comentários à Lei 14.344/22 artigo por artigo. São Paulo: Editora Juspodvm, 2022. pag. 104
ANDRADE, Adriano …[et al.] Interesses Difusos e Coletivos. 5. ed. Rio de Janeiro: Método, 2022. pag.187
CNMP. Dispõe sobre a atuação integrada do Ministério Público para a efetiva defesa e proteção das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, conforme Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, e Lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022. Disponível em <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/CALJ/resolucoes/Resoluo-n-287.pdf> Acesso em 25/06/2024
A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 menciona criança como todo ser humano menor de dezoito anos de idade, exceto se alcançada a maioridade conforme lei local (art. 1o.)
Os depoimentos especiais são feitos pelo sistema de videogravação, sendo transmitidas a imagem e a voz do depoente à sala do Juízo, na qual permanecem acusado, advogados, promotor e juiz. A criança responderá as perguntas formuladas em audiência por meio de repasse do técnico habilitado, que formulará o questionamento conforme a idade da criança, conforme critério técnico apto a obter a resposta, cabendo, inclusive, ao próprio técnico a recusa quanto à formulação de perguntas que causem humilhação ou culpabilização relativas aos fatos à própria vítima, perguntas que podem tanger por exemplo a fatos que em nada se relacionam com a questão ou com o fluxo de pensamento que foi estabelecido pela própria criança, mas que possam ser de conteúdo discriminatório e nitidamente tendencioso, como perguntas envolvendo religião, conduta geral, vestimenta, ou seja, questões periféricas que não tangem ao objeto da prova, mas se prestam a convencer do quanto alguém é ou não provido de “respeito”, o que inverte a lógica protetiva.
De acordo com o Manual de Depoimento Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – Sala de Audiências, por exemplo, está descrito que embora os participantes da sala de audiência visualizem a sala de depoimento e a criança ou adolescente, esta não visualizará a sala do juízo onde estarão o juiz, advogados e acusado, sendo que as perguntas serão repassadas pelo técnico. O áudio da sala de audiência do juízo também não é repassado:
(1) Será apresentada a imagem da câmera instalada na sala de Depoimento Especial, imagem esta que está sendo visualizada na sala de audiência solicitante/deprecante da oitiva, confira e ajuste neste momento o posicionamento da câmera;
(2) No símbolo das câmeras, ficarão dispostas as imagens dos participantes da videoconferência, por recomendação, a sala de audiência solicitante/deprecante da oitiva não compartilhará a imagem de sua câmera, assim por padrão não será exibida nenhuma imagem;
(3) Sistema de mensagem (chat) de texto com os participantes da videoconferência. Esta será a forma de comunicação entre o(a) técnico(a) da sala de depoimento especial que conduzirá a oitiva e os participantes da salas de audiências solicitante/deprecante. Por orientações a sala de audiências “não” será possível ouvir e nem visualizar nada da sala de Audiência, é recomendável ao iniciar a videoconferência confirmar através do chat se a sala de audiências está recebendo adequadamente o áudio e vídeo transmitido pela sala de depoimento especial.
(4) Caixa para envio de texto para de mensagens por chat, campo onde o(a) técnico(a) da sala de depoimento especial poderá redigir algo à sala de audiência;
(5) Sair – Opção para sair da videoconferência, caso ocorra saída de forma errônea, basta clicar novamente no link de convite de convite enviado por email.
A criança tem o direito de não ter contato direto com o agressor, conforme consta da Resolução CNMP 287/2024, bem como, tem o direito de se recusar a depor, inclusive. Ora, se a ela são conferidos esses direitos, ela também poderia se recusar a ser filmada? Pode se recusar a depor na forma oral? E se recusar, mas mesmo assim, desejar falar, o seu depoimento ingressa no processo com que status?
E quanto ao franquear esse direito à criança logo no início do seu depoimento? Interessante que em todo depoimento criminal é informado ao réu, em virtude de mandamento constitucional, que pode permanecer em silêncio. Mas e quanto à vítima? Como ela exerce o seu direito à imagem se não souber que tem a faculdade de não ser vista, de não ser ouvida? A vítima poderia escolher falar, ou seja, transmitir o som da sua voz, mas não ser vista por aqueles que estão presentes na sala de audiências?
- Quero falar, mas não quero ser visto
Sabe-se que a imagem é um atributo do direito da personalidade e portanto protegida constitucionalmente. De acordo com Maria Helena Diniz, citada por TARTUCE (2020):
São direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos, próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio, vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária) e sua integridade moral (honra, recato, segredo pessoal, profissional e doméstico, imagem, identidade pessoal, familiar e social).
O referido autor leciona sobre os direitos da personalidade associados à imagem e à intimidade, dentre outros:
Imagem, classificada em imagem-retrato – reprodução corpórea da imagem, representada pela fisionomia de alguém; e imagem-atributo – soma de qualificações de alguém ou repercussão social da imagem.
…
Intimidade, sendo certo que a vida privada da pessoa natural é inviolável, conforme previsão expressa do art. 5o., inciso X, da CF/1988: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Conforme lições do civilista, quando se fala em utilização indevida do direito à imagem, não se perquire sobre prejuízos, bastando a utilização indevida, conforme prevê o Enunciado 587 da VII Jornada de Direito Civil, o qual giza que “o dano à imagem restará configurado quando presente a utilização indevida desse bem jurídico, independentemente da concomitante lesão a outro direito da personalidade, sendo dispensável a prova do prejuízo do lesado ou do lucro do ofensor para a caracterização do referido dano, por se tratar de modalidade de dano in re ipsa.”
Utilização devida é utilização autorizada. Logo, se uma criança ou adolescente não desejarem ser filmadas ou mesmo que sua voz seja transmitida, considerando que podem até mesmo se recusar a depor, seria o caso de se desligar vídeo e áudio e a prova oral seria convertida em prova documental.
De outra banda, reflete-se que o direito à imagem como todo direito da personalidade, tem sua disposição limitada. Direitos da personalidade relacionados a direitos subjetivos patrimoniais gozam de uma proteção relativa, ou seja, existe a possibilidade de disposição, desde que essa disposição não seja permanente, nem geral e esteja condicionada à autorização do titular.
Nesse caso não há ligação do direito de imagem com direito subjetivo patrimonial e se quanto ao menos (direito patrimonial), restringe-se ao mais (não pode haver cessão permanente nem geral), que dirá sobre imagens de crianças violentadas que permanecerão no processo. Então, nem mesmo seria preciso questionar sobre ser ou não permanente ou geral essa cessão. Na realidade, ela teria que ser autorizada, remanescendo apenas a dúvida quanto à autorização ser provocada ou não.
De mais a mais, as imagens de pessoas nesse contexto são dados sensíveis e portanto, protegidos pela LGPD (art. 5o., incisos I, II e X da Lei n. 13.709/2018). De acordo, ainda, com o art. 7o. , incisos, da Lei n. 13.709/2018 o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado em algumas hipóteses, dentre as quais, mediante o fornecimento de consentimento pelo titular.
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TARTUCE, Flávio Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020. pag. 154.
TARTUCE, Flávio Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. – 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020. pag. 155.
STJ. REsp 1.630.851/SP, 3a. Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, por unanimidade, j. 27.04.2017, DJe 22.06.2017.
Não se ignora de modo algum que o depoimento especial está acobertado por sigilo, aliás, todos os processos que envolvem crianças e adolescentes (art. 12, § 6o. da Lei 13.431/17). A violação do sigilo implica em crime do art. 24 da mesma Lei, cuja pena é de reclusão de um a quatro anos e multa. Logo, a prova oral do depoimento especial fica acautelada e o sigilo se estende a todos os que participaram do ato. Todavia, pensa-se que assim como o réu tem direito ao silêncio, não menos constitucional é a proteção da imagem e intimidade das pessoas, nos termos do art. 5o., inciso X, da Constituição Federal de 1988.
Resta uma pontuação sobre o procedimento do Júri. É sabido que o depoimento especial não deve, em regra, ser repetido. Contudo, se houver necessidade que se repita esse ato em plenário, deverá ser por meio do depoimento especial, com transmissão para a sala de audiências, na qual estarão os jurados, partes, advogados, juiz e promotor.
No Manual do CNMP a respeito dos procedimentos de escuta, está assim disposto quanto à escuta nos procedimentos do júri:
Segundo o art. 11 da legislação em comento, o depoimento especial será, sempre que possível, realizado uma só vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.
Essa previsão legal tem especial repercussão nos feitos de competência do Tribunal do Júri, onde geralmente as vítimas (no caso de tentativa) ou testemunhas são ouvidas na fase da pronúncia e posteriormente em plenário. Mesmo em tais casos, deve prevalecer a regra da escuta da criança ou do adolescente uma única vez, sendo que eventual depoimento colhido na fase da pronúncia (que a Lei determina seja gravado em áudio e vídeo) deverá ser reproduzido em plenário, cabendo aos jurados valorar seu conteúdo de acordo com sua livre convicção, no contexto das demais provas produzidas.
Em situações excepcionais, quando se entender imprescindível a coleta (ou repetição) do depoimento de criança/adolescente vítima ou testemunha quando da realização do julgamento perante o Tribunal do Júri propriamente dito, desde que obtido o consentimento expresso desta (conforme previsto nos arts. 5º, inciso VI, e 11, §2º, da Lei nº 13.431/2017), deverá ser observado o mesmo procedimento do já citado art. 12 da Lei nº 13.431/2017, não sendo necessário que a criança/adolescente compareça “fisicamente” ao plenário.
Importante destacar que a coleta do depoimento especial da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência (e muito menos sua repetição, no plenário do Tribunal do Júri, após já ter sido este colhido na fase da pronúncia39) não é, de modo algum, “obrigatória”, sendo inclusive expressamente prevista, pelo art. 5º, inciso VI, da Lei nº 13.431/2017, a possibilidade daquela se recusar a depor, caso em que não poderá ser constrangida a fazê-lo,sob pena de acarretar a mencionada “violência institucional”.
Em qualquer caso, é preciso ter em mente que a criança ou o adolescente não pode ser tratado como mero “objeto de produção de prova”, mas sim uma pessoa em desenvolvimento que, por força nada menos que do art. 227, caput, parte final, da Constituição Federal (que é reproduzido pelo art. 5º da Lei nº 8.069/90), deve ser colocada a salvo de toda e qualquer forma de “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, sendo este verdadeiro comando constitucional, aliás, a própria razão de ser da Lei nº 13.431/2017.
A própria Constituição Federal, ademais, prevê que todos os meios lícitos de prova são admissíveis em Direito , razão pela qual deve-se buscar comprovar a ocorrência de eventual crime contra a criança ou adolescente, ou por ela testemunhado, por outros meios.
Diante dessas diretrizes, quando viável a demonstração da ocorrência dos fatos por outros meios de prova permitidos em lei, o Ministério Público deve evitar efetuar a coleta do depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, ressalvada a manifesta intenção de estas prestarem tais declarações.
O Manual menciona em nota sobre a necessidade de retirada do público do local aberto ao júri, ou seja, para que a transmissão se dê somente para os jurados partes e acusados para preservação da intimidade da vítima. Ainda assim, da mesma forma, caso a criança se recuse a depor, como visto, outros meios de provas devem ser utilizados.
A criança e o adolescente são sujeitos de direitos e não devem ser tratados como um meio para a obtenção de provas, mas sim como vítimas, seres humanos com direitos violados e nesse caso pensa-se que acaso a criança ou o adolescente não desejem ter sua imagem veiculada, que esse direito deva ser garantido. Poderia se questionar sobre a validade do depoimento se a imagem da criança não está sendo transmitida para a sala de audiências. Acredito que seja um problema contornável, na medida em que o técnico poderá comprovar a identificação por meio de relatório contendo as perguntas e as respostas.
Quando uma criança ou adolescente concorda em ser filmada em depoimento especial é fato que está cedendo ao menos internamente no processo a sua imagem de maneira permanente. Nesse diapasão, se não cabe cessão permanente de direitos da personalidade, até que ponto a filmagem da criança ou do adolescente deveriam ocorrer: só não filma quem pedir, ou haveria o direito da criança e do adolescente serem cientificados antes do depoimento que podem optar por manter câmera e áudio desligados?
É preciso imagem para ter contraditório? É necessário assistir a criança abusada relatar os fatos que ocorreram com ela ou por ela presenciados para que o seu relato seja crível? O fato de sua imagem não aparecer no vídeo afronta o direito de quem? Ou prestigia o direito de quem? São perguntas que todos devemos nos fazer para responder de forma adequada se cabe ou não indagar à criança/depoente se deseja que sua imagem seja ou não transmitida para a sala de audiências.
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CNMP. Guia Prático para a implementação da Política de Atendimento de Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência. Disponível em <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Publicacoes/documentos/2020/LIVRO_ESCUTA_PROTEGIDA_MENOR_10.pdf> Acesso em 24/06/2024
- Conclusão
Conclui-se que não há dúvidas de que, acaso uma criança ou adolescente solicitem de forma espontânea para que a câmera seja desligada, não poderá ser veiculada sua imagem nem mesmo para a sala de audiências sem a sua vontade; o que também se estende a sua voz, caso assim o deseje, ocasião em que, a prova oral será convertida em prova documental, quando o técnico poderá relatar todas as perguntas e respostas de maneira escrita, produzindo assim a prova criminal que será aquilatada em conjunto com as demais provas produzidas na instrução processual.
Quanto ao oportunizar às pequenas vítimas o direito de desligar o sistema de videogravação, ficam as perguntas quanto ao direito ou não de serem indagadas logo no início do seu depoimento especial se desejam ser filmadas, se querem que aquelas pessoas que estão na audiência ouçam sua voz. Também, fica a pergunta se a criança pode falar por si e pedir para desligar a imagem, com ou sem o auxílio de seu representante para a tomada dessa decisão e no caso de menores de sete anos, seria sempre facultada essa escolha ao representante legal. Essas perguntas ficam ainda mais relevantes nos júris populares, nos quais mesmo com a retirada do público do recinto onde está sendo realizado o júri, permanecerão os jurados, pessoas investidas de maneira não permanente no poder de julgar, que mesmo sob sigilo, poderão ver a criança ou o adolescente vitimado relatar os horrores que presenciou ou experienciou. Ficam os questionamentos para a reflexão, sempre com o objetivo de aumentar a proteção para as vítimas de atos violentos.
A garantia de direitos depende do constante aperfeiçoamento dos mecanismos protetivos e de controle, especialmente aqueles que tangem à proteção de pessoas duplamente vulneráveis.
Espera-se que com o passar dos tempos, as próprias violências sejam minimizadas, o que por certo sinalizará a evolução verdadeira dos sistemas de proteção e da humanidade.
- Bibliografia
ANDRADE, Adriano …[et al.]. Interesses Difusos e Coletivos. 5. ed. Rio de Janeiro: Método, 2022. pag. 187.
BRASIL. Lei Federal n. 13.431/2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm> Acesso em: 26 jun. 2024.
BRASIL. Decreto Federal n. 99.710/90. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm> Acesso em: 26 jun. 2024.
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