Diversidade, temporários e segurança jurídica: os desafios para os servidores em 2025

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Na segunda-feira (28/10) comemorou-se o Dia do Servidor Público. Os servidores públicos que atuam na administração pública municipal no Brasil somam 6,5 milhões de pessoas, o que corresponde a 60% do total de servidores do país.

Na avaliação de Jessika Moreira, diretora executiva do Movimento Pessoas à Frente, ainda que esse contingente esteja invisibilizado nas discussões político-eleitorais, é fundamental que os novos governos eleitos em 2025 priorizem a gestão estratégica desses profissionais. “São essas pessoas as principais responsáveis por entregar serviços e políticas públicas à população em áreas essenciais como saúde, educação, zeladoria e mobilidade”, diz Moreira, em entrevista ao JOTA publicada na newsletter Por Dentro da Máquina.

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A especialista em inovação no setor público, que soma mais de 8 anos de atuação em projetos relacionados à transformação digital, dados, inovação e gestão de pessoas no governo, conversou com a newsletter Por Dentro da Máquina para discutir os avanços e desafios que os servidores públicos brasileiros tiveram no último ano e o que está por vir em 2025.

Questionada sobre quais são os maiores desafios para a administração, Moreira elencou quatro pontos: “equidade étnico-racial e gênero no serviço público, especialmente em cargos de liderança, transparência de dados de gestão de pessoas, contratação de trabalhadores temporários e segurança jurídica para gestores.” A seguir, confira os principais pontos da entrevista:

Neste ano, o Dia do Servidor é celebrado logo após as eleições municipais de 2024. Pensando na administração municipal, quais medidas os candidatos eleitos devem ter em mente para inovar e melhorar suas administrações de forma positiva para os cidadãos? 

Atualmente, são 6,5 milhões de trabalhadores atuando na administração pública municipal, o que corresponde a 60% dos servidores do país. É importante destacar que, apesar de invisibilizados em discussões político-eleitorais, são essas pessoas as principais responsáveis por entregar serviços e políticas públicas à população em áreas essenciais como saúde, educação, zeladoria, mobilidade, entre outras. Com os novos governos eleitos em 2025, é imprescindível que a gestão estratégica desses profissionais se torne uma agenda prioritária.

Recentemente, o Movimento Pessoas à Frente publicou o Guia de Gestão de Pessoas para Lideranças Municipais, com referências e boas práticas para a gestão de pessoas nas cidades brasileiras. O documento aborda medidas importantes nos temas gestão de lideranças, transparência e uso de dados de pessoal, equidade, modernização no modelo de carreiras, gestão de desempenho e de desenvolvimento de servidores e contratações temporárias. Nós acreditamos que com lideranças públicas que representem toda a diversidade da população brasileira, mais aptas, bem-preparadas e com as condições necessárias para gerir suas equipes, é possível garantir políticas e serviços públicos cada vez melhores, promovendo uma vida mais digna e justa para todas as pessoas, além de um melhor Estado.

Nos últimos 12 meses, quais foram os principais avanços que o Brasil teve em relação à gestão de pessoas no setor público? 

Em setembro, foi sancionada a Lei Nacional dos Concursos Públicos (Lei 14.965/2024), projeto que visa a modernização dos certames e mais segurança jurídica para os gestores que querem inovar na forma de avaliar os candidatos ao serviço público. Participamos da sanção presidencial no Palácio do Planalto enquanto representantes da sociedade civil e acreditamos nessa mudança como um importante marco na administração pública nacional. É um avanço necessário para atrairmos os melhores profissionais, pessoas mais vocacionadas, utilizando métodos de avaliação mais precisos e personalizados aos diferentes cargos da administração pública.

Pouco antes, em agosto, o Brasil também teve outro avanço importante na gestão de pessoas no setor público. Na ocasião, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) expediu uma portaria focada em estabelecer diretrizes e critérios para a elaboração de propostas de criação, racionalização e reestruturação de planos, carreiras e cargos na administração pública federal. A normativa adota um número significativo de diretrizes defendidas pelo Movimento Pessoas à Frente sobre o tema, partindo do diagnóstico de que o serviço público se assenta hoje a partir de carreiras desorganizadas, que se diferenciam muitas vezes apenas pela escolaridade ou órgão vinculado dos servidores, causando desigualdade de tratamento entre servidores que executam funções similares.

Sobre a Lei Nacional dos Concursos. O que deve ser feito para que ela seja incorporada no dia a dia da administração?

A lei nacional é apenas o primeiro passo para a modernização dos concursos públicos. Pouco antes, lançamos a nota técnica “A Hora e a Vez da Modernização dos Concursos Públicos no Brasil” avaliando o PL 2.258/2022, que deu origem à nova legislação, e apontamos algumas diretrizes para a implementação da nova lei.

Ao todo, são sete diretrizes prescritas (indução, evidência de boas práticas, alinhamentos das normas, experimentação, articulação, capacitação e monitoramento), que passam por pontos como elaboração de material de comunicação em linguagem não jurídica para que gestores públicos conheçam a norma, construção de banco de boas práticas de concursos públicos no Brasil, revisão legal do decreto que estabelece normas para os concursos federais, além de experimentação inicial de formas de inovação em órgãos e entidades interessados na modernização de seus concursos. Também são abordadas a aproximação com órgãos de controle como Tribunal de Contas da União (TCU) e Ministério Público da União (MPU) para diminuir o risco de litígios judiciais nas novas provas, estruturação de programas de capacitação sobre estratégias e técnicas para a modernização dos concursos, regulamentação dos certames on-line e das entrevistas, entre outros.

Além disso, para que a legislação seja efetiva, é imprescindível um esforço de coordenação do governo federal em estabelecer uma agenda de trabalho para a sua implementação e monitoramento, induzindo boas práticas, capacitando e fomentando a inovação responsável Brasil afora, nos Estados e sobretudo nos municípios, entes que mais executam concursos públicos.

Anteriormente a senhora mencionou a importância da diversidade na gestão pública. Essa pauta avançou no último ano? Quais desafios o Brasil ainda precisa superar? 

Ainda temos uma desigualdade de gênero e étnico-racial desafiadora no serviço público, principalmente em cargos de liderança. Este ano, tivemos a aprovação da Lei de Cotas no Serviço Público no Senado e, em março do ano passado, a assinatura do Decreto 11.443/2023, que prevê pelo menos 30% dos cargos e funções comissionadas nos órgãos e entidades da administração pública federal ocupados por pessoas negras até 31 de dezembro de 2025. São avanços que devem ser celebrados, mas não podemos nos esquecer das mulheres negras, que são historicamente e sistematicamente excluídas das posições de tomada de decisão no serviço público. Um exemplo emblemático são os cargos de “natureza especial” no executivo federal, como secretários executivos, secretários especiais e subchefias, onde temos apenas 8% de mulheres negras, contra 17% de mulheres brancas e 63% de homens brancos.

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Há algumas discussões acontecendo sobre o salários dos servidores. De um lado, um projeto de lei que tenta limitar os supersalários. Do outro, servidores pressionando para a criação de um piso salarial para suas categorias. Qual é a importância de aprovação dessas medidas para a administração pública e para os servidores? 

É importante destacar que apenas 0,27% dos servidores usufruem do privilégio dos supersalários, segundo o Centro de Liderança Pública (CLP), mas não é assim que a população enxerga esse cenário. O estudo “Opinião dos brasileiros sobre funcionalismo público e lideranças”, feito pelo Datafolha a pedido do Movimento Pessoas à Frente, mostrou que 25% dos brasileiros acreditam que todos ou a maioria dos funcionários públicos possuem supersalários. A realidade é que o salário na administração pública está muito abaixo do teto de R$ 44 mil, com uma mediana para servidores municipais de cerca de R$ 2,5 mil, por exemplo. Metade dos funcionários públicos estatutários, vale dizer, têm salários de até R$ 3,3 mil.

Os servidores públicos devem ser valorizados e receber salários condizentes com a entrega de valor público que fazem à sociedade. Afinal, são eles o ativo mais importante de que o Estado dispõe para garantir políticas públicas das mais diversas áreas aos cidadãos e promover ações por um país mais justo e mais desenvolvido. Desta forma, uma política integrada de gestão de pessoas no setor público, que contemple, dentre outras, iniciativas de gestão de desempenho e desenvolvimento, uma organização bem estruturada das carreiras, e a promoção de equidade de gênero e étnico-racial em cargos de liderança, deve ser o instrumento central para a construção da política remuneratória no serviço público, colocando a efetividade da gestão pública em primeiro lugar e evitando desigualdades entre os próprios servidores.

Considerando esse contexto, é preciso dar um basta nos chamados “penduricalhos” que geram supersalários no funcionalismo, ultrapassando o teto constitucional e promovendo uma competição entre carreiras por esses adicionais salariais para burlar a Constituição, com verbas indenizatórias, adicionais, auxílios, gratificações e outras vantagens.

O projeto da Lei de Cotas está na Câmara agora. Como o movimento avalia o texto que está sendo discutido?

A renovação e o aprimoramento da Lei de Cotas no Serviço Público, a partir do PL 1.958/2021, é uma das pautas que o Movimento Pessoas à Frente considera como prioritária para o Brasil em 2024. É importante destacar que consideramos imprescindível que o texto seja aprovado na Câmara sem mais alterações, para garantirmos que não haverá nenhum retrocesso na pauta. Essa lei representa um compromisso importante do Estado brasileiro com a correção de discriminações históricas contra a população negra.

Outro tema que tem sido muito discutido é a adoção de ferramentas de inteligência artificial na administração pública. Como você vê a implementação dessa tecnologia no Brasil?

Os governos devem investir esforços consistentes no desenvolvimento dos servidores públicos nas tecnologias emergentes para que, em benefício da sociedade, possam aproveitar todo o potencial das inovações digitais, já que são esses os profissionais responsáveis em planejar, entregar e avaliar os serviços e políticas públicas com o uso de inteligência artificial.

Ao automatizar os processos administrativos para maior eficiência da gestão e para melhores serviços para a população, não podemos perder de vista a necessidade de alfabetização digital e a adoção de diretrizes para segurança digital, privacidade e proteção de dados pessoais e governamentais. Além disso, o uso ético da IA deve ser priorizado para evitar desigualdades a partir de vieses discriminatórios. As administrações públicas precisam garantir que a tecnologia seja inclusiva, especialmente em áreas mais vulneráveis.

Acredita que a IA deve reduzir o número de profissionais necessários no serviço público? 

As tecnologias devem estar a serviço das pessoas, tanto dos servidores como dos cidadãos que acessam os serviços públicos. O foco deve estar na efetividade do Estado, isto é, no impacto positivo da administração pública na sociedade. Quanto mais a tecnologia avança, mais fundamental o aspecto humano se torna. É a capacidade de análise crítica, interpretação e tradução que permite transformar o uso das novas tecnologias em benefício para a sociedade. Ou seja, o aspecto mais importante da tecnologia é o próprio ser humano.

Devemos fugir do “solucionismo tecnológico” que é a simplória ideia de que mais tecnologia é sempre a solução para os desafios atuais. Desta forma, importa ressaltar a necessidade de haver servidores bem capacitados para operar e programar inteligências artificiais e outras tecnologias, em um ambiente onde novas competências são requeridas.

Se por um lado a automatização de algumas tarefas administrativas com o uso da inteligência artificial pode acabar reduzindo a necessidade de mão de obra em certas funções, principalmente em postos de trabalho com tarefas de baixa complexidade, também enxergo oportunidades para o surgimento de novos cargos na administração pública, especialmente em áreas de inovação. Programas de qualificação profissional serão fundamentais para permitir essa adaptação aos novos tempos.

Olhando para o futuro, qual desafio deve ser prioridade da administração pública em 2025 nas três esferas de poder?

Temos algumas questões importantes que contemplam as três esferas administrativas: equidade étnico-racial e gênero no serviço público, especialmente em cargos de liderança, transparência de dados de gestão de pessoas, contratação de trabalhadores temporários e segurança jurídica para gestores.

Em relação ao primeiro desafio, cabe dizer que apenas 37,8% dos cargos de alta liderança no governo federal são ocupados por mulheres, sendo apenas 11% de mulheres negras nestas posições. Já temos evidências que apontam que uma burocracia representativa, além de promover mais confiança da população no serviço público, melhora índices relacionados à saúde, educação e corrupção.

Quando falamos sobre transparência e uso de dados de gestão de pessoas, precisamos destacar que a ausência de dados qualificados sobre a composição do funcionalismo público, principalmente dos entes subnacionais, se mostra como um problema histórico que impede o avanço de políticas de gestão de pessoas no serviço público orientada a evidências. Nosso estudo Conhecendo as Lideranças Públicas apontou que dos 23 estados que possuem painéis de transparência, apenas oito informam há quanto tempo as pessoas que ocupam cargos de liderança estaduais estão na função, dado importante para analisar o grau de rotatividade dos servidores. Nenhum deles fornece informações sobre escolaridade, raça ou gênero nestes cargos.

Já os trabalhadores temporários no serviço público, que são em torno de 2 milhões no Brasil, ainda sofrem com a falta de uma norma única. Pensando nisso, nós do Movimento Pessoas à Frente e o Conselho Nacional de Secretários de Estado da Administração (Consad) estamos realizando um diagnóstico desses servidores com o objetivo de contribuir para a elaboração de um projeto de lei que estabeleça diretrizes gerais para União, estados e municípios para esse modelo de contratação na administração pública. É importante dizer que acreditamos que a modernização do contrato por tempo determinado passa por assegurar direitos do trabalhador, estimular o planejamento da força de trabalho, reduzir desigualdades e aumentar a segurança jurídica.

Por falar em segurança jurídica, temos também um desafio no que tange os gestores públicos. A aprovação da nova Lei de Improbidade Administrativa, em 2021, permitiu que gestores bem-intencionados se sintam mais seguros para tomar decisões, uma vez que houve redução da subjetividade dos órgãos de controle e maior controle do fenômeno chamado de “apagão das canetas”. A lei mitiga esse risco com medidas que tornam os critérios para julgamento mais objetivos e impedem a penalização da inovação responsável, afastando, por exemplo, a modalidade culposa da improbidade. No entanto, ainda precisamos avançar. Uma pesquisa da Fundação Tide Setubal investigou os efeitos do controle sobre o trabalho dos servidores públicos do Poder Executivo e apontou que entre 60% e 70% dos participantes mencionaram desafios e dificuldades no diálogo com órgãos de controle, enquanto cerca de 40% a 50% destacaram a formalidade nos diálogos e o tom acusatório. Além disso, também é relevante que a administração pública invista na capacitação de seu quadro de pessoal. O estudo mostrou que apenas 29% dos respondentes afirmam possuir todos os recursos necessários para atender bem às demandas dos órgãos de controle, como tempo, conhecimento e apoio técnico e político.

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