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Em março e abril de 2024, o Instituto de Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento (IDP) e a Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA), com a direção dos professores ministro Gilmar Ferreira Mendes e Raúl Gustavo Ferreyra e com a coordenação do professor Atalá Correia e da professora Carolina Cyrillo, estão promovendo o webinar sobre a “Força Normativa da Constituição e a Sociedade Aberta”. Nesses encontros, em diálogo com a obra do jurista alemão Peter Häberle, dilemas constitucionais contemporâneos são enfrentados, analisados e debatidos.
Nesta semana, o foco foi o Estado Constitucional Cooperativo. Dessa forma, a professora Maite Alvado (UBA) tratou do Estado Cooperativo e o Poder Econômico Transnacional, tendo o professor Diego Dolabjian (UBA) discutido a questão do Estado Constitucional no Brasil e na Argentina. Por sua vez, dediquei-me à categoria da soberania digital.
Peter Häberle, originalmente em 1977 e 1978, publica suas reflexões sobre o Estado Constitucional Cooperativo. Em 2007, isto é, cerca de 30 anos depois, o texto foi editado em português, sendo traduzido pelo professor Marcos Augusto Maliska e pela professora Elisete Antoniuk, contando com específico prefácio à edição brasileira escrito pelo professor Peter Häberle.
O autor tedesco sustenta a relevância da cooperação dos Estados nacionais, assim como os novos papéis dos direitos comunitário e internacional. Como bem sintetizou o professor Raúl Gustavo Ferreyra no evento desta semana, de um lado há um reconhecimento do papel essencial que a soberania possui para os Estados Constitucionais, na obra haberleana. De outra parte, questões econômicas, sociais e jurídicas impõem e recomendam a ampliação das formas de cooperação dos Estados nacionais exatamente para melhor concretizar os direitos fundamentais e a democracia pluralista.
Interessante que o livro Estado Constitucional Cooperativo inicia com a discussão acerca da soberania e também finda com o mesmo debate. Nesse sentido, Häberle examina a construção do pensamento científico na área jurídica, afirmando que um paradigma científico pode permanecer por muito tempo, porém a Teoria dos Elementos do Estado de Georg Jellinek necessita de “uma revisão – nota: Cultura como ‘quarto’ elemento do Estado, relativização dos conceitos de ‘soberania’, ‘povo’ e ‘território’”[1].
A cultura é essencial na sua obra, a qual é estudada de diversas perspectivas como, por exemplo, a) o aspecto cultural, representando um quarto elemento do Estado e sendo um dos pilares da sua Teoria da Constituição, e b) as reflexões sobre o direito à cultura. De outro lado, chamo a atenção hoje para a relativização do conceito de soberania.
O complexo processo de integração europeu foi objeto de análise detida de Häberle, demonstrando que questões econômicas e sociais contribuem para a necessidade de cooperação entre Estados Constitucionais, porém se preocupando principalmente com temas jurídicos e constitucionais. Assim, examina e propõe a revisão dos papéis e das funções do Direito Internacional Público e da forma que este interage com o Estado Constitucional na concretização do constitucionalismo (filosofia constitucional).
Dessa maneira, o Estado Constitucional, o qual se pautava na lógica de uma soberania nacional forte, precisa abrir-se para cooperações com outros Estados Constitucionais nacionais, com organismos regionais e globais. Dessa maneira, conceitos “como ‘soberania’, impermeabilidade, esquemas internos e externos (..) deveriam ser questionados. (…) Há que se refletir sobre como o Estado Constitucional (cooperativo) pode se desenvolver para além das formas já conhecidas de interdependência (…)”, concluindo que a “construção da legitimação direta dos órgãos da comunidade, por meio de um Parlamento europeu diretamente eleito, deveria abrir mão do dogma da soberania nacional em prol de uma fundamentada divisão de competências entre Estado e organizações supranacionais”[2].
Atualmente, no espaço europeu, reivindica-se uma soberania digital europeia, a qual, de certa forma, parece um paradoxo, porque a União Europeia (UE) é um órgão internacional que não possui, na visão jurídica tradicional, soberania[3]. De outro lado, essa ideia encontra-se na maior parte dos instrumentos e estratégias construídas pela União Europeia como:
Comisión en el ámbito digital, incluidas las propuestas de actos normativos, en conclusiones del Consejo Europeo y del Consejo de la UE y en actos tan relevantes como la Brújula Estratégica, en resoluciones del Parlamento Europeo (en adelante, PE), en declaraciones interinstitucionales conjuntas, en dictámenes y resoluciones del Comité de las Regiones y del Comité Económico y Social y en actos jurídicamente vinculantes como decisiones del Consejo y del PE, reglamentos de ejecución y recomendaciones de la Comisión[4].
Trata-se em verdade de um aparente paradoxo. O mundo atual é conduzido por interações cotidianas por meio da tecnologia digital, a qual é utilizada em todo o mundo, porém desenhada, pensada e construída, a partir de interesses especialmente de empresas sediadas nos Estados Unidos e na China. Essas big techs atuam nos marcos jurídicos e pelos interesses políticos e econômicos desses relevantes Estados, sendo os EUA um Estado Constitucional individualista, visto que possui um modelo fraco de cooperação com outros Estados, com os demais países do continente americano e com a comunidade internacional em geral, e a China um Estado com sociedade fechada, pois o governo e o sistema político possuem fortes déficits à luz da democracia pluralista[5].
Nesse contexto não apenas se justifica, mas se impõe uma reflexão, a qual deve ser aliada a medidas práticas, sobre mecanismos necessários para a proteção do Estado democrático de Direito contra erosões democráticos que são promovidas com uso da tecnologia (redes sociais, plataformas de busca, mecanismos de mensageria digital e inteligência artificial tanto forte como fraca) desenhada fora dos limites territoriais dos Estados Constitucionais nacionais.
Em outras palavras, o Estado Constitucional Cooperativo precisa buscar mecanismos de cooperação mais robustos com outros Estados, com órgãos regionais e globais. Os países que integram a União Europeia estão atentos à necessidade de exercerem, de fato, poder sobre as decisões econômicas e políticas relacionadas com a tecnologia digital, que produz efeitos diretos e indiretos nos atos de governo e de Estado e nas economias nacionais e do bloco europeu.
Assim, faz todo o sentido trabalhar com a ideia de soberania digital europeia como um termo que apresenta preocupações com o impacto das práticas digitais, devendo a atuação das grandes empresas de tecnologia ser objeto de adequada regulação para a garantia dos direitos fundamentais e humanos e para a promoção e a manutenção de democracias constitucionais e pluralistas. Como apontava Häberle, a soberania deve ser repensada e não abandonada, sendo os problemas complexos solucionados de forma mais adequada por meio da cooperação.
No caso brasileiro, observa-se principalmente a utilização das competências dos poderes constituídos nacionais, ainda que inspirados nas contribuições dos outros países e da União Europeia, para buscar uma regulamentação constitucionalmente adequada da tecnologia digital. Como a integração regional brasileira é menos robusta, o caminho tem sido o emprego de mecanismos tradicionais de soberania. Desse modo, o Senado examina o PL 2338/2023, o qual dispõe sobre o uso da inteligência artificial.
Outra proposta legislativa relevante encontra-se atualmente tramitando na Câmara de Deputados, consistindo no PL 2630/2020, acerca da Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Por sua vez, no âmbito eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou recentemente alterações na Resolução 23.610/2019, sendo, por exemplo, o emprego de deepfakes vedado, necessário o aviso do uso da IA na propagando eleitoral e responsabilizadas as grandes empresas tecnológicas nas situações de não retirada de desinformação. Essas medidas do Estado brasileiro procuram lidar com diversos dilemas que a democracia sofre na sociedade de informação, pois as:
redes automatizadas que utilizam robôs e contas inautênticas em aplicativos e na internet ampliam os problemas nas comunicações eletrônicas e digitais, já que são com frequência instrumentos de produção e de disseminação de informações falsas. Ainda quando não criam e publicizam conteúdos falsos, as contas inautênticas promovem a distorção do livre mercado de ideias, em razão da majoração exponencial de emissores sobre determinadas visões, distorcendo no mínimo as forças no processo de discussão e deliberação. Por sua vez, as deepfakes com exceção da sua utilização para o humor têm por função promover a desinformação, atacando de maneira maliciosa e injusta pessoas e grupos[6].
Atualmente, o campo do constitucionalismo digital analisa os impactos das tecnologias digitais no Estado Constitucional e no direito constitucional positivo. Tanto na União Europeia como no Brasil, a soberania digital é importante, sendo, contudo, um conceito em construção. Pelo exposto, defendo a tese de que as construções teóricas de Häberle sobre o Estado Constitucional Cooperativo auxiliam na compreensão de alguns dilemas e problemas relacionados ao tema da soberania digital.
*
Agradeço ao professor Raúl Gustavo Ferreyra (UBA) os comentários e as considerações sobre a palestra no dia 3 de abril de 2024 e ao professor Marcos Augusto Maliska pelos diálogos acadêmicos e pela remessa de relevantes textos de Peter Häberle.
[1] HÄBERLE, Peter. Prefácio à Edição Brasileira. In:______. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução de Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
[2] HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo, 2007, p. 16-17; 30-31.
[3] Sobre a soberania digital europeia, cf. CARRILLO, Margarita Robles. La Articulación de la Soberanía Digital en el marco de la Unión Europea. Revista de Derecho Comunitario Europeo, 75, 133-171, 2023.
[4] CARRILLO, Margarita Robles., Revista de Derecho Comunitario Europeo, p. 136-138, 2023.
[5] Sobre essas categorias estatais, cf. HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo, 2007, p. 7.
[6] ROBL FILHO, Ilton Norberto; MÉDON, Felipe; MARRAFON, Marco Aurélio. A Inteligência Artificial a Serviço da Desinformação: como as Deepfakes e as Redes Automatizadas Abalam a Liberdade de Ideias no Debate Público e a Democracia Constitucional e Deliberativa. EALR, V. 13, nº 3, p. 44, Out-Dez, 2022.