Há democracia no ativismo judicial?

Spread the love

Nos últimos anos, o debate sobre o ativismo judicial no Brasil tornou-se central nas discussões sobre o funcionamento e equilíbrio dos poderes. O Supremo Tribunal Federal (STF), com competência constitucional para interpretar a Constituição e assegurar seu cumprimento, tem assumido um papel cada vez mais ativo na formulação de decisões reservadas, a priori, aos Poderes Legislativo e Executivo. Este artigo aborda a atuação do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal, as necessidades da sociedade e o equilíbrio entre os poderes.

De início, cabe refletir sobre o significado de ativismo judicial. Há diversas formas de se identificar e conceituar o ativismo judicial e apresentamos aqui as duas mais atuais. O ministro Luís Roberto Barroso entende o ativismo judicial como uma escolha do magistrado, um direito da magistratura, de interpretar a norma de forma abrangente, “expandindo o seu sentido e alcance”[1].

Assine a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas no seu email

Já para o professor Elival da Silva Ramos, o ativismo judicial consiste no “exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário” – e explica: subentende-se aqui a limitação imposta ao magistrado, de agir dentro dos limites impostos pelo próprio sistema jurídico para que se tenha o regular exercício da função jurisdicional.[2]

Há argumentos robustos para correntes ideológicas que defendem e que criticam a prática de ativismo judicial. Certamente, existe uma ideologia moderada, que o tolera sob o argumento de servir como uma resposta frente às “omissões legislativas” ou mesmo como uma maneira de assegurar direitos e princípios constitucionais garantidos a todos os brasileiros.

No entanto, com atuações crescentes e decisões polêmicas no que se refere ao papel reservado a cada um dos poderes, o embate institucional tem levantado preocupações que, em última instância, impactam questões diretamente ligadas ao Estado democrático de Direito.

De um lado temos um Poder Judiciário que não pode se esquivar de solucionar as solicitações dos cidadãos, pois o acesso à justiça é um direito fundamental, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal – é o “princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional”, que determina que o Poder Judiciário “deve” (e não apenas pode) apreciar qualquer lesão ou ameaça a direito.

Já o Poder Legislativo, este sim, pode ser omisso, pode optar por não criar, modificar ou revogar leis em determinadas situações, seja por questões políticas, por falta de consenso ou por outros fatores. Essa omissão, embora passível de críticas, é um direito decorrente da liberdade política que os representantes eleitos têm dentro do processo legislativo.

Contudo, é fundamental refletir se o ativismo judicial consegue conviver em harmonia com a democracia. Uma decisão que obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) a fornecer medicamentos de alto custo para pacientes portadores de doenças raras é, certamente, positiva. Mas ao saber que existem 108 ações judiciais em trâmite apenas para ter acesso a um medicamento que custa R$ 17 milhões, o saldo positivo da obrigatoriedade gera preocupação orçamentária.

Além disso, um recorte na obrigatoriedade que estabelece como beneficiário apenas uma faixa etária específica, gera uma preocupação adicional com os critérios definidos. A maior preocupação, contudo, reside na falta de observância ao processo legislativo. Isso porque a decisão foi tomada em audiência de conciliação convocada pelo Supremo Tribunal Federal sem a realização de debates públicos, sem a possibilidade de participação de quem se entende parte interessada e a aprovação não foi feita por parlamentares eleitos .

É preciso entender que existe todo um processo legislativo que visa garantir uma participação democrática de grupos de interesse e pressão com respeito às regras da Constituição Federal (e das Constituições Estaduais, se for o caso), que culmina na votação, pelos parlamentares escolhidos pelo povo, enquanto uma decisão no âmbito judicial – seja monocrática ou por colegiado – depende do entendimento de pessoas que não foram eleitas.

Críticos argumentam que no ativismo judicial há usurpação da função legislativa e que juízes estão, muitas vezes, atuando onde deveria haver uma decisão legislativa – tomada legitimamente por representantes eleitos e com a devida observância ao processo legislativo. Ademais, há preocupações de que decisões ativistas possam ser influenciadas por ideologias pessoais dos juízes, desembargadores ou ministros.

Nesse sentido, não há espaço para coexistência entre ativismo judicial e democracia tendo em vista que a atuação dos magistrados poderia extrapolar os limites do devido exercício jurisdicional, prejudicar o equilíbrio entre os poderes e normalizar a ideia de que o Supremo Tribunal Federal detém a função de um “poder moderador” ou que o Judiciário é um “legislador positivo”.

Em que pese os argumentos, vale destacar que, para se evitar o desequilíbrio entre os poderes e o desrespeito aos pilares de um Estado democrático de Direito é necessário atenção e obediência a limites claros e princípios como:

  • Separação dos poderes;
  • Dever de transparência (principalmente sobre o fundamento motivador do ativismo judicial);
  • Legalidade e supremacia da Constituição;
  • Autocontenção judicial;
  • Excepcionalidade (a intervenção do Judiciário deve ser mínima e dentro dos limites do sistema, suas medidas não devem ser utilizadas para substituir a vontade democrática expressa no processo legislativo ou para interferir constantemente na política).

A ausência ou desrespeito a esses limites compromete a legitimidade do Judiciário e afeta a estabilidade das instituições democráticas. Para evitar que isso ocorra o Congresso Nacional exerce um papel fundamental de equilíbrio e limitação do ativismo judicial, por meio da revisão e criação de leis, controle e fiscalização do Judiciário; normatização do ativismo judicial; debates públicos (ou o próprio exercício destinado ao Parlamento de debater políticas públicas).

De acordo com dados do painel de Omissão Inconstitucional[3] do programa Corte Aberta, sistema de transparência do STF, que “tem por objetivo reunir os principais julgamentos nos quais o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido situações de inconstitucionalidade por omissão”, há uma crescente interferência do Judiciário em face aos outros poderes, especialmente destacada a partir do início do governo Bolsonaro no ano de 2019 e se mantém até os dias de hoje.

“A seleção contempla decisões colegiadas proferidas pelo Plenário e pelas Turmas após 05/10/1988 (data de promulgação da Constituição Federal)” e, dos 140 julgados selecionados apenas 7 são de omissão judicial, ou seja, 4,5% do montante. O restante é metade omissão normativa e a outra metade omissão administrativa.

A proeminência do Judiciário durante a pandemia da Covid-19 é ilustrativa. O aumento dos julgamentos nos casos de omissão se mantiveram, totalizando o maior número anual no ano de 2020, com 18 julgamentos. De acordo com o ministro do Supremo Gilmar Mendes[4], em referência às ações da Corte no enfrentamento da pandemia, caso “não fosse a atuação do Tribunal nesta matéria, provavelmente o país teria muito mais mortos”. “Estou convencido de que o Tribunal contribuiu para uma melhoria, talvez para reduzir um déficit de governança no que concerne à política sanitária”.

Com relação à omissão normativa, é sabido que parte desses casos são atrelados a normas que a Constituição prevê regulamentação posterior, como é no caso do direito de greve, previsto no art. 37 inciso VII da Constituição, com necessidade de lei complementar posterior. Nesse episódio específico, “o Tribunal, por maioria, conheceu dos mandados de injunção e propôs a solução para a omissão legislativa com a aplicação, no que couber, da Lei 7.783/1989, que dispõe sobre o exercício do direito de greve na iniciativa privada”.[5]

Há também casos das omissões administrativas, que pode ser exemplificado com o caso da decisão do ministro Alexandre de Moraes com relação à população que vive em situação de rua. Segundo a decisão, em observância a inação dos Poderes Legislativo e Executivo ao longo dos anos, demandou-se por parte do governo federal a criação, em 120 dias, de um plano nacional para amparar a população de rua.[6]

Aqui vale um adendo, já que os dados aqui trazidos dizem respeito a decisões colegiadas, ignorando uma das maiores fontes de ativismo judicial que são as crescentes decisões monocráticas da Corte (de janeiro a junho deste ano 80,7% das decisões da Corte foram em caráter monocrático[7]). As decisões monocráticas têm sido alvo de críticas, uma vez que concentra um poder significativo nas mãos de um único magistrado, o que pode comprometer a transparência, a imparcialidade e o princípio da colegialidade, fundamentais ao processo judicial.

Essa prática é especialmente problemática em casos de grande relevância política ou social, nos quais a decisão individual pode gerar impactos profundos e controversos, levando a questionamentos sobre a legitimidade e a falta de consenso nessas deliberações. Além disso, o uso excessivo das decisões monocráticas tende a aumentar a insegurança jurídica e reduzir a previsibilidade das decisões do tribunal, o que pode fragilizar a confiança da sociedade no sistema judiciário e no próprio STF.


[1] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.  Anuário ibero-americano de justiça constitucional 13. p. 29. 2009.

[2] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, p.129. 2010.

[3] https://transparencia.stf.jus.br/extensions/omissao_inconstitucional/omissao_inconstitucional.html

[4] https://www.poder360.com.br/brasil/atuacao-do-stf-na-pandemia-ajudou-a-salvar-vidas-diz-gilmar-mendes/

[5] Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaOmissaoInconstitucional> MI 670/ES, rel. orig. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007; MI 708/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007; MI 712/PA, rel. Min. Eros Grau, 25.10.2007)

[6] https://www.conjur.com.br/2023-dez-23/o-controle-de-omissoes-inconstitucionais-como-garantia-da-forca-normativa-da-constituicao/

[7] https://www.poder360.com.br/poder-justica/na-mira-da-camara-decisoes-monocraticas-sao-maioria-no-supremo/

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *