Inteligência artificial: inteligente e ética?

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A busca pela consciência artificial: uma análise filosófica

O desenvolvimento da área de estudo sobre a natureza dos estados mentais recorre, com frequência, à analogia entre computadores e cérebros, para traçar semelhanças e diferenças e compreender o que é o pensamento.

Na área da filosofia da mente, um debate relevante que tem sido travado, nas últimas décadas, é a respeito da distinção entre “inteligência artificial” no sentido forte e no sentido fraco. Por um lado, em sentido forte, diz-se que máquinas, como computadores, adequadamente programados, têm estados cognitivos e, portanto, pensam do mesmo modo como fazem os seres humanos. Por outro, em sentido fraco, assevera-se que os computadores apenas simulam o ato de pensar.

Inteligência artificial inteligente e ética

Crédito: BlackJack3D / GettyImages

No âmbito filosófico, essa é, pois, uma questão ontológica, termo usado para a investigação das coisas que realmente são como elas são (e não como se imagina que são) e sobre qual a essência delas. Isso significa perguntar sobre a ontologia dos estados mentais, ou seja, entender no que eles realmente consistem. Basicamente, os filósofos da mente se dividem em dualistas e unionistas.

Dualismo vs. Unionismo: a questão da natureza da mente

René Descartes é dualista. Para ele, o pensamento é substância, ou seja, é algo que existe por si, independente da realidade corpórea, vale dizer, o corpo é constituído pela res extensa (coisa extensa), que não passa de um autômato ou máquina (sangue vai do coração ao cérebro, passa para os nervos, para os músculos e se estende aos membros), ao passo que a alma (mente) é constituída pela res cogitans/substantia cogitans (coisa pensante/substância pensante), que pode pensar, de maneira independente, tanto de qualquer coisa material, quanto do tempo e do espaço.

Aristóteles é unionista. Já para ele, o intelecto surge da relação entre alma e corpo e ambos não são substâncias separadas. A alma é causa e princípio do corpo vivo. E o que caracteriza a alma é que ela exerce a função vegetativa (conservação do corpo), a função sensitiva (sentidos externos, sentidos internos = sentido comum, memória e fantasia; e, apetite = vontade) e a função intelectiva (exercida de três modos: abstração, juízo e argumentação). Para a abstração, o intelecto agente (ativo) ilumina os dados sensíveis recebidos das coisas particulares, produzindo conceitos ou ideias, e o intelecto paciente (passivo) recolhe e conserva esses conceitos ou ideias.

Inteligência Artificial: simulação ou verdadeira cognição?

Não por outro motivo que uns dizem que algoritmos jamais poderão tomar decisões importantes pelos seres humanos, porquanto, decisões assim, inevitavelmente, envolvem uma dimensão ética, e algoritmos não entendem de ética. Outros já começam a dizer, contudo, que não há razão para supor que algoritmos não sejam capazes de enfrentar os dilemas éticos, na medida em que aparelhos celulares inteligentes e veículos autônomos, por exemplo, já se deparam com problemas éticos que atormentam a consciência humana há muito tempo.

A ficção científica, porém, tende a confundir consciência com inteligência, e supõe que a chamada “inteligência artificial”, aquela dos computadores, dos robôs e artefatos análogos, poderá se equiparar ou até mesmo suplantar a inteligência humana, o que exigirá dela desenvolvimento de consciência.

Inteligência artificial e a natureza humana

O enredo básico dos filmes e livros sobre “inteligência artificial”, geralmente, tem como ápice o momento apoteótico em que uma “máquina-homem” adquire consciência. Entretanto, na realidade, não é tão simples assim dizer que a “inteligência artificial” irá desenvolver consciência, haja vista que inteligência e consciência são bastante diferentes entre si. Por isso, é inevitável discutir os muitos desafios éticos na implementação da “inteligência artificial”.

Contudo, essa discussão pressupõe, ao menos, percorrer três linhas psicológico-antropológicas e seus reflexos éticos a respeito da própria natureza humana, com seus desdobramentos nas múltiplas interações sociais, na era da tecnologia da informação e da comunicação, todas elas confrontáveis com as “máquinas-homens” – computadores, robôs e outras análogas – já identificadas na sociedade contemporânea.

Inteligência vs. Consciência: uma distinção crucial

A filosofia não tem nenhuma especialidade, a não ser a capacidade de elaboração de conceitos, sem os quais faltaram, invariavelmente, ideias mais claras e distintas sobre as coisas em qualquer tempo e espaço. Dois deles, muito importantes, entre tantos outros, são inteligência e consciência, os quais não podem e não devem ser confundidos. Inteligência é capacidade para a resolução de problemas com eficiência (Harari, 2018, p 98). Por sua vez, consciência é aptidão para discernir e avaliar condutas como boas ou más, justas ou injustas, certas ou erradas, virtuosas ou viciosas, generosas ou egoísticas e, até mesmo, prazerosas ou dolorosas, tais como, “[…] sentir coisas como dor, alegria, amor e raiva” (Harari, 2018, p. 98).

Os limites da inteligência artificial

Alan Mathison Turing teve papel ímpar na história da inteligência artificial. Já em 1950, ele publicou um artigo em que discutiu se uma máquina podia pensar e tomar decisões de forma tão racional e inteligente quanto um ser humano (Turing, 2024).

Segundo Aristóteles, como todos os seres dotados de matéria, o homem é constituído de matéria e forma. No homem, a matéria chama-se corpo e a forma denomina-se alma. Com essa teoria, Aristóteles marcou, desde a antiguidade e por longo tempo, uma noção psicológico-antropológica fundamental, qual seja, a união substancial entre corpo e alma (Aristóteles, 2011, p. 31-33).

Trata-se, pois, de uma concepção de profundo caráter unionista. Para Aristóteles, o homem é um ser racional, capaz de aprender e apreender virtudes. A virtude é uma disposição da alma racional para escolher entre o bem e o mal. A medida da liberdade consiste, pois, em conhecer o bem e agir segundo o bem que decorre desse conhecimento repleto de discernimento (Aristóteles, 2018, p. 21-23).

O problema mente-corpo: uma perspectiva histórica

Com René Descartes, já na filosofia moderna, é introduzida a noção fundamental do cogito, ergo sum, o que significa uma realidade pensante (res cogitans), uma realidade não distinta do pensamento. Ao dizer que o pensamento é substância, ele afirma que o pensamento é algo que existe por si, independentemente da realidade corpórea. De fato, esse existir por si é a substancialidade. Assim, as expressões cogito (penso) e cogitatio (pensamento) são substituídas por substantia cogitans (substância pensante) ou res cogitans (coisa pensante), que é contraposta à substância corpórea ou coisa corpórea (res extensa).

Na ótica cartesiana, não há aquela união substancial entre a alma e o corpo (Descartes, 2005, p. 51-53). São duas realidades distintas e separadas. Existe uma alma imaterial e um corpo material. O corpo humano não passaria, pois, de um enorme maquinismo que deveria ser controlado pela alma, ou seja, ela deveria guiar as suas ações.

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Para René Descartes, o problema era suscitar a refundação racional de todo o sistema do saber, que transmite a articulação entre a lógica, o real e a ética. No projeto cartesiano, busca-se uma moral como sabedoria plenamente racional na ordem do bem a ser realizado pela ação.

Nesse projeto, a razão manifesta-se como liberdade na constituição de um ethos pensado e, portanto, plenamente inteligível, que pode e deve ser vivido com sabedoria, o que significa a busca ideal da perfeição entre o saber e o agir. Essa gradação exige que se percorra os planos fisiológico, psicológico e propriamente racional, culminando com a paixão mais elevada da alma, qual seja, a perfeita generosidade (Descartes, 1987, p.45-47). A generosidade cartesiana é a expressão acabada do preceito do bem julgar para o bem agir, aplicado a si mesmo e aos outros. O generoso é a manifestação concreta da mais alta moral, vale dizer, a moral de uma razão que é, indissoluvelmente, bem pensar e bem agir.

Corpo e Alma: um debate filosófico clássico

Como se pode perceber, ainda que com concepções bastante distintas, tanto para um unionista como Aristóteles, quanto para um dualista como René Descartes, a preocupação com uma alma racional (aristotélica) ou uma alma pensante (cartesiana) para bem agir está sempre presente na própria natureza humana.

Por sua vez, Julien Offray de La Mettrie entende que as teorias acerca do homem constituído de duas substâncias, alma e corpo, são impossíveis de comprovação empírica. Mais afinado com a filosofia cartesiana, mas sem lhe render adesão, ele transfere o postulado da sua fundamentação da res extensa para uma reflexão filosófica em conexão com a análise médica, o que implica dizer que o homem não seria mais do que uma máquina, isto é, todas as operações mentais são entendidas sob o ponto de vista físico-orgânico.

Não é nem Aristóteles, com sua teoria da união substancial alma e corpo, nem Descartes, com sua teoria da separação alma e corpo, que apresentam a melhor resposta sobre o homem (La Mettrie, 1982, p.125). O homem é o seu corpo e o corpo humano encerra uma mecanicidade, pois não passa de um complexo orgânico que se estrutura e funciona como uma máquina.

Dualismo Cartesiano: a separação entre res cogitans e res extensa

Para ele, o corpo do ser humano se organiza por meio de reações químicas e físicas através estímulos no cérebro e no sistema nervoso. O corpo é um relógio, mas um relógio imenso, construído com tanto artifício e habilidade que se parar a roda que serve para marcar os segundos, a dos minutos continua a girar e segue seu curso, assim como a dos quartos continuará a mover-se (La Mettrie, 1982, p. 94). O corpo é uma organização química e física que cumpre seu papel para o qual foi determinado de maneira mecânica, de tal forma que todas as ações são explicadas apenas pelo corpo. O próprio pensar é extensão corporal e suprime a alma como uma substância pensante.

O desenvolvimento da inteligência ocorre de forma evolutiva, na medida em que os homens utilizaram, primeiramente, os instintos e as sensações para adquirir inteligência e, dessa maneira, chegar ao conhecimento das coisas. A alma, se é dela que ainda se pretende falar, não escapa de ser afetada pelas sensações manifestadas no cérebro e, se houver algum desarranjo em alguma parte do corpo, isso terá repercussões, alterando o organismo, tal como ocorre, por exemplo, no caso da vertigem (La Mettrie, 1987, p. 22).

La Mettrie e o Homem-Máquina: uma perspectiva materialista

Significa uma concepção antropológico-psicológica monista, posto que alma, cérebro e corpo constituem uma coisa só, e as ações e reações se organizam sempre a partir da mecânica corpórea, chamada de “máquina-homem”. Julien Offray de La Mettrie entende que a ética a ser seguida é, portanto, a do mais prazeroso para si mesmo e para os outros, por se tratar uma sensação corpórea, que é uma espécie de combustível da própria vida. Assim, não seria demasiado dizer que virtude, generosidade e prazer ainda permanecem como reivindicações éticas sublimes, no mundo contemporâneo, na era das tecnologias da informação e da comunicação, e as “máquinas-homens” não dão sinais de que já tenham alguma consciência disso.

Uma “máquina-homem”, chamada de “inteligência artificial”, está distante de ser uma alma unida substancialmente a um corpo, capaz de agir de maneira virtuosa, porque consegue discernir e deliberar sobre o bem ou o mal que realiza ao executar suas tarefas.

O conceito de “Máquina-Homem” na filosofia

Essa “máquina-homem”, do mesmo modo, também não pode ser identificada como uma alma separada de um corpo, capaz de alcançar a generosidade, entendida como preceito do julgar e do agir com elevada e perfeita moral, ou seja, movida por uma racionalidade comprometida com o melhor alinhamento possível entre o bem pensar e o bem agir. E, se essa “máquina-homem” estiver mais próxima do homem-máquina, mesmo assim não há nada que ateste que ela é capaz de avaliar o que é e não é prazeroso a ela e aos outros em suas operações.

Nesse sentido, uma “máquina-homem”, por mais que possa atuar com certa autonomia, depois de processar e filtrar inúmeras informações, ainda está bem distante de enviar uma mensagem, ao término de uma tarefa, de que procurou agir de maneira virtuosa, generosa ou prazerosa.

Por mais que se queira denominá-la de “máquina-homem”, continua sendo somente uma máquina, para a qual a ética ainda é bastante estranha, como se fosse uma miragem, por ser incapaz de um juízo de valor sobre a virtude, a generosidade ou mesmo o prazer, para si e para os outros, de suas operações “finalizadas com sucesso”, como costumam ser emitidas suas mensagens ao término de um procedimento realizado.

O homem e a máquina

Mensagem essa de mero resultado alcançado obviamente, e não de uma ação ética. Uma “máquina-homem”, como por exemplo, a “inteligência artificial” do ChatGPT, a partir de suas buscas em várias fontes diretas ou indiretas, pode preparar e apresentar um texto, como uma produção própria, sem deixar qualquer sinal, porém, se o trabalho efetivado, na realidade, se caracteriza como um plágio de uma ou mais dessas fontes. Concluir um trabalho escolar por meio de plágio não é e jamais poderá ser considerado pela ética virtuoso, generoso ou mesmo prazeroso.

É certo que homem e máquina podem plagiar. A diferença é que o homem pode começar a desenvolver consciência ética desse malfeito, enquanto a máquina, pelo que se percebe, nem mesmo sinaliza que está em busca essa consciência. Assim, virtuoso, generoso ou prazeroso é quem programa essa “máquina-homem” ou quem se utiliza dela de maneira virtuosa, generosa ou prazeroso; logo, quem não se ocupa com nenhum desses critérios está distante de uma ação ética.

E uma “máquina-homem”, vale dizer, uma inteligência artificial – computador, robô ou outra análoga – ainda não parece sequer estar perto de ter iniciado um processo de desenvolvimento da consciência do que é virtuoso, generoso ou mesmo prazeroso para si e para os outros. Portanto, os desafios éticos não pertencem a universo dessa “máquina-homem”, com sua sofisticada inteligência artificial, e sim do homem consciente, com sua espantosa inteligência natural.


Marcius Tadeu Maciel Nahur

Natural de Lorena (SP), Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova. Formado em Direito, História e Filosofia. Mestrado em Direito com ênfase na Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Delegado de Polícia Aposentado.


Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2018. 392 p.
ARISTÓTELES. Da Alma. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011. 144 p.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: L&PM, 2005. 128 p.
DESCARTES, René. As Paixões da Alma. Tradução de Jacob Guinsberg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1987. 223 p.
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 441 p.
LA METTRIE, Julien Offray de. Traité de l’âme. Paris: Fayard, 1987. 129 p.
LA METTRIE, Julien Offray de. O Homem-Máquina. Tradução de Antônio Carvalho. Lisboa: Estampa, 1982. 200 p.
TURING, Alan Mathison. Computing Machinery and Intelligence. Disponível em: chrome- extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://redirect.cs.umbc.edu/courses/471/papers/turing.pdf. Acesso em: 20 nov. 2024.

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