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Você é um consultor, no ano de 2009. Com um café ao lado do computador, envia um e-mail ao seu cliente mencionando uma notícia publicada em um grande veículo de mídia, sobre uma decisão no Superior Tribunal de Justiça. Entendeu-se, ali, que o plano de stock option era um contrato de natureza mercantil. Com certeza, você afirmou que não era remuneração por trabalho, pois sua interpretação possuía base legal e precedente jurisprudencial.
Você é um auditor da Receita Federal do Brasil. Em uma fiscalização, recebe uma série de contratos de altos profissionais, cuja boa parte dos pagamentos realizados a eles eram feitos por uma opção de compra de ações. Isso se reiterava anualmente, com valores suntuosos e com cláusulas que lhe davam a clara impressão de que aquilo não se tratava de um contrato mercantil, mas de uma remuneração disfarçada. Sua interpretação, inclusive, possuía base legal e precedentes do Carf. Com certeza, você afirmou que era remuneração por trabalho.
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Você é um empresário. No mesmo dia em que recebe a boa notícia do seu consultor, o diretor financeiro da sua empresa lhe procura para uma reunião urgente. O tema não é agradável: acabara de receber um auto de infração de centenas de milhões, com uma multa altíssima pelo cometimento de atos fraudulentos.
Ao colocar as mãos na cabeça, em um sinal de uma clara crise de ansiedade, você se questiona: qual fraude eu cometi?
O exemplo fictício acima, meramente didático, demonstra o claro exercício da dificuldade do ato de interpretar, isto é, de determinar o significado preciso de um texto. Esse verbo transitivo direto sofre, ainda mais, restrições quando se adentra ao cenário da interpretação jurídica, especialmente, quando os sujeitos da relação possuem interesses distintos, porém legítimos pela sua própria leitura do texto legal.
Como conselheiro do Carf, deparei-me com uma situação similar ao exemplo fictício citado. Fui relator no Processo 10166.720689/2017-18, com discussão relativa à aplicação de multa de ofício qualificada em dois casos extremamente controversos à época (talvez, ainda atualmente): o plano de stock option e a denominada pejotização. O tributo em lide: contribuição previdenciária.
Naqueles autos, os julgadores da DRJ entenderam por bem manter a aplicação da qualificadora da penalidade, considerando que o crédito tributário lançado sobre os pagamentos realizados à PJs e via plano de stock option encontrava-se permeado de ação volitiva de dolo, fraude e simulação, pois se distorciam daquilo que determinava a lei. O órgão fundamentou sua orientação, ainda, no conteúdo do relatório fiscal, o qual se reportava tão-somente aos contratos firmados entre as partes.
Em contraponto geral, a recorrente refutava a sua aplicação, porquanto não havia sido comprovada a prática de atos dolosos e fraudulentos, com o fim de evitar a ocorrência de fatos geradores. Para ela, a mera transcrição dos fundamentos legais e suposições abstratas não trariam a incidência da norma.
Em relação à pejotização, além de não comprovados os requisitos acima indicados, discorreu que a prática é usual no mercado e tem sido amplamente admitida pela Justiça do Trabalho e pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Em relação ao plano de stock option, fundamentou que se tratava de uma ação com permissivo legal expresso no artigo 168, parágrafo 3º, da Leis das S.A, além de ser um instrumento comumente utilizado pelas companhias com finalidade de promover um melhor alinhamento entre seus interesses e os dos empregados diretores.
Justamente por tais pontos, iniciei este simples artigo com o exemplo fictício. O intuito é demonstrar, academicamente, o racional que quis desenvolver naquele voto sobre o tema.
O primeiro ponto que entendi ser necessário avaliar é que, nas discussões daquelas matérias, estávamos diante de uma simples e clara divergência de interpretação da legislação tributária. Notem: não estávamos ali a discutir laudos para isenção elaborados de maneira fraudulenta, notas-fiscais “calçadas”, adulteração de nomenclatura fiscal, etc. Não. Estávamos a discutir possíveis interpretações de aplicabilidade de legislação societária, trabalhista e, sobretudo, tributária.
Esse ponto restou reforçado ao avaliar que a autoridade fiscal, com a devida vênia, foi frágil ao fundamentar a aplicação da regra punitiva. Pareceu-me que justificar: (i) o dolo com uma simples menção ao contrato; (ii) a fraude, porquanto os contratos a materializavam; e (iii) o conluio pelo fato de que a recorrente, pessoas jurídicas, diretores e beneficiários participaram do processo, não se tratava de comprovação de atos fraudulentos. Em minha concepção, tal afirmativa estava longe de demonstrar, efetivamente, a ocorrência dos requisitos de incidência da multa de ofício qualificada. Pelo contrário, reforçavam que a discussão, ali, se tratava tão-somente de divergência interpretativa.
Essa divergência que mencionei restava, à época, estampada ao levantar uma série de precedentes do conselho sobre os dois temas.
Sobre pejotização, por exemplo, encontrei os Acórdãos 2401-005.900 e 2201-004.378, da própria recorrente, nos quais restaram canceladas cobranças nesta exata matéria. Os Acórdãos 2402-007.200, 2401-005.900, 2201-004.538, 2401-011.244, 2301-005.788, 2201-004.539, 2301-005.823, 2803-003.815, também cancelaram lançamentos idênticos. Isso sem falar no julgamento (recente à época), do STF, sobre a inconstitucionalidade da Súmula 331 do TST (ADPF 324 e RE 958.252), aplicada pela autoridade autuante para presumir a ilicitude da conduta da recorrente.
Em relação ao plano de stock option, a recíproca era verdadeira. Os Acórdãos 2301-005.771, 2301-005.007, 2301-005.006, 2401-003.044, refletiam decisões que cancelaram créditos tributários desse tipo. Havia, inclusive, decisão recente, à época, do TRF da 3ª Região afastando a incidência tributária neste tipo de plano (4ª Turma, ApCiv – APELAÇÃO CÍVEL – 5000421-83.2018.4.03.6100, Rel. Desembargador Federal MARLI MARQUES FERREIRA, julgado em 17/02/2020, e – DJF3 Judicial 1 DATA: 26/02/2020).
In contrario sensu (isto é, ao favor do fisco), em relação à pejotização, foram encontrados os seguintes Acórdãos: 2401-006.810, 2202-009.796, 2401-010.803, 2202-010.130, 2202-009.606 e 2201-010.445. Quanto ao plano de stock option, citaram-se as decisões: 2402-011.012, 2402-011.011, 2201-010.522, 2301-005.772 e 2301-003.597.
Observem, então, caros leitores, que havia preclara divergência de entendimentos sobre as matérias discutidas tanto no Carf quanto no Poder Judiciário. Sabia-se bem que cada processo possui suas características, fatos, provas, etc. Mas todos circundavam e permeavam o mesmo pano de fundo: a discussão sobre a interpretação da legislação tributária, societária e trabalhista sobre tais.
A premissa que se colocou naquele voto é que a simples divergência de interpretação entre fisco e contribuinte não pode ser “gatilho” para aplicação da qualificadora da multa de ofício.
Com base nessa simples premissa, havia de se afastar o caráter doloso de uma conduta praticada em um cenário de dúvida quanto ao resultado de sua interpretação. Não se tratava de uma dúvida qualquer, mas de uma dúvida razoável, considerando a existência de base legal e precedentes jurisprudenciais que apontavam a conduta da recorrente como um exercício regular de direito.
Em outras linhas, o contribuinte que agiu – respaldado por uma interpretação possível/provável de seu direito, assim o fez, no máximo, com base em uma dúvida razoável, mas nunca com o intuito de lesar os cofres públicos. Tal ambiguidade interpretativa deveria afastar, por si só, a caracterização do dolo com base no princípio do in dubio pro reo, materializada no art. 112 do CTN.
Essa premissa, se bem nos atentarmos, caminha de mão dadas com a jurisprudência do Carf, segundo a aplicação da multa qualificada demandaria que o fisco comprove “o evidente intuito de fraude do sujeito passivo” (Súmula Carf 14).
Recordemos: tratava-se aquele processo administrativo, assim como tantas outras autuações e discussões jurídicas recentes, de aplicação de penalidade onerosíssima, que – além de convolar em representação fiscal para fins penais, sofre de uma séria fragilidade em seu fundamento de aplicabilidade. A mera divergência interpretativa, sem a necessária solidez na comprovação dos requisitos de dolo, fraude conluio, não merece desaguar em um processo criminal. O prejuízo – não só ao contribuinte, mas ao cidadão per se, é em demasia reprovável.
Por isso, reitero a conclusão que venho tendo, até o presente momento, em casos semelhantes: mera divergência interpretativa não é fundamento suficiente para aplicação da qualificadora da multa de ofício.
O cenário reportado, salvo melhor julgamento, faz subsunção ao conceito de erro de proibição indireto, que é aplicável quando o agente se equivoca quanto aos limites da justificação da suposta licitude da conduta (isto é, quando há erro quanto à antijuridicidade do comportamento). Tal erro deveria afastar, portanto, a qualificação do dolo com azo no princípio do in dubio pro reo, nos temos do art. 112 do CTN.