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O Brasil ocupa a 7ª posição no ranking global de maiores mercados farmacêuticos[1]. Além disso, conta com uma população multiétnica e numerosa, que já passa de 203 milhões de habitantes[2]. Conta, ainda, com pesquisadores altamente qualificados e instituições de pesquisa renomadas.
Essas características, combinadas ao fato de oferecer um mercado atrativo em termos de custos (especialmente considerando a cotação da moeda nacional), posicionam o Brasil como um terreno extremamente fértil para o desenvolvimento de pesquisas com seres humanos. Mesmo assim, o país ainda luta para se consolidar como um hub global nesse segmento.
Em dezembro de 2022, a Interfarma disponibilizou a versão mais atualizada do seu excelente estudo em parceria com a IQVIA sobre a pesquisa clínica no Brasil. Nele, essa realidade fica evidente. O estudo aponta que o Brasil ocupa a 20ª posição no ranking de países que mais recebem pesquisas clínicas, concentrando apenas 2% dessas pesquisas.
O país já foi ultrapassado por outros de menor PIB e de pouquíssima (ou nenhuma) relevância no mercado farmacêutico, como Egito, que ocupa a 14ª posição com 3,4% das pesquisas, e a Turquia, que ocupa a 17ª posição com 2,5% das pesquisas. Por outro lado, o estudo também aponta que, com o melhor aproveitamento do seu potencial, o Brasil poderia saltar para a 10ª posição no ranking (posição que é hoje ocupada pela Itália), concentrando 4,5% das pesquisas[3].
Estimou-se que um salto dessa ordem seria capaz de atrair investimentos anuais de cerca R$ 3 bilhões, com efeitos na economia ainda maiores, de R$ 5 bilhões. A realização de mais pesquisas clínicas também implicaria o emprego de mais de 48 mil profissionais e o tratamento de mais de 55 mil pacientes[4], colocando-os mais próximos do que há de mais avançado no mundo em termos de novas terapias.
Isso sem mencionar outros ganhos indiretos, como a criação de um ambiente mais propício à ciência e ao desenvolvimento, o fortalecimento das nossas instituições de pesquisa e o incentivo para os nossos profissionais, que passariam a ter a oportunidade de participar de diferentes projetos internacionais, trocando experiências e aprendizados.
Fruto do Projeto de Lei 200, apresentado no Senado ainda em 2015, a Lei 14.874/2024 foi sancionada com o objetivo de estabelecer um marco legal que permita a resolução dos problemas que impedem o Brasil de atingir esse cenário de protagonismo.
É dito constantemente que só a instituição de um marco legal para a pesquisa com seres humanos já seria um avanço, considerando que até então a sua disciplina se dava somente por normas infralegais do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sob o ponto de vista ético, e da Anvisa, sob o ponto de vista sanitário.
Sim, dar um tratamento legal ao tema foi um avanço, eis que, pelo menos, retirou-se do CNS o monopólio no estabelecimento dos parâmetros éticos, foco principal da Lei 14.874. Mas, sem dúvida, mais importante que o nível hierárquico das regras é o seu conteúdo. E é aí que se questiona se a Lei 14.874 foi exitosa em resolver os problemas que aqueles que decidem trazer ou não estudos para o Brasil identificam como os verdadeiros obstáculos.
Fazer esta análise para toda a Lei 14.874 extrapolaria o limite deste artigo. O foco, então, será analisar esse cenário para os dois principais problemas. O primeiro deles é a burocracia e morosidade do processo de aprovação dos protocolos de pesquisa (parte I), que, ao lado do vácuo legislativo, foi o principal obstáculo identificado quando da proposição do PL 200/2015[5]. E o segundo é a irrazoabilidade da obrigação do patrocinador de fornecer o produto experimental pós-estudo por prazo indeterminado (parte II), obstáculo tão relevante quanto e ao qual foi dada mais atenção ao longo da tramitação do PL 200. Analisemos aqui, então, o primeiro problema.
Consta na justificativa do PL 200 que o processo de revisão ética adotado no Brasil é “lento e burocrático”, e que “segundo especialistas da área, o tempo médio para aprovar uma pesquisa clínica no Brasil é de um ano, podendo chegar a 15 meses, enquanto na maioria dos países desenvolvidos ele varia de três a seis meses”[6].
O estudo da Interfarma e do IQVIA aponta que esse tempo teria diminuído desde então, apesar de ainda estar longe de ser o ideal. De 2020 a 2022, a mediana do tempo real de aprovação foi de 215 dias (aproximadamente 7,2 meses), o que ainda é extremamente alto não só quando comparado a países desenvolvidos e mais bem posicionados no ranking global, como os EUA, que ocupa a 2ª posição e cuja mediana foi de 32 dias (aproximadamente 1 mês), mas também a outros países da própria América Latina, que estão abaixo do Brasil no ranking, como a Argentina, que ocupa a 23ª posição, mas cuja mediana foi de 113 dias (aproximadamente 3,8 meses)[7].
Para mudar esse cenário, a Lei 14.874 acabou com as ineficiências até então estabelecidas pela regulação no processo de aprovação ética, sendo a principal delas a necessidade de dupla análise – i.e., pelos comitês de ética em pesquisa (CEPs) vinculado à instituição de pesquisa e, depois, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) – para as pesquisas relacionadas às diversas áreas temáticas definidas no item IX.4 da Resolução 466/2012 do CNS. Agora, somente os CEPs serão responsáveis (arts. 13 e ss. da Lei).
A alteração terá um impacto significativo considerando que tais áreas temáticas, na prática, acabavam por abranger quase que a totalidade dos protocolos submetidos. Para se ter uma ideia, uma delas era a de “pesquisas com coordenação e/ou patrocínio originados fora do Brasil”, o que, em 2023, representou sozinha 93% do total de protocolos submetidos[8].
Soma-se a isso o fato de que a Norma Operacional 1/2013 do CNS até então estipulava um tempo máximo para a conclusão da análise ética de 115 dias (aproximadamente 3,8 meses), dos quais 75 dias (aproximadamente 2,5 meses) eram destinados apenas à análise da Conep (item 2.2, “D” e “E”, e item 2.3, “F” da NO 1/2013).
Também teve fim a análise por múltiplos CEPs em estudos multicêntricos, ficando a análise, agora, a cargo preferencialmente do CEP vinculado ao centro coordenador da pesquisa (art. 14, §7º da Lei). Esse também é um avanço, já que muitas vezes esse processo se tornava infindável e ainda mais ineficiente, tendo-se em vista a necessidade de que eventuais alterações na documentação por um dos CEPs fossem encaminhadas a todos os demais para apreciação (inclusive novamente para aqueles que já haviam aprovado a pesquisa).
Com relação aos prazos especificamente, a Lei 14.874 estabeleceu que o CEP terá 10 dias úteis contados da submissão do protocolo para que decida se aceita ou não a “a integralidade dos documentos da pesquisa” e mais 30 dias úteis para que emita o parecer, sendo que, durante os 30 dias, pode ainda o CEP solicitar informações adicionais e/ou ajustes, suspendendo o referido prazo por, no máximo, 20 dias úteis (art. 14).
A instituição do prazo não foi uma novidade propriamente dita. Tanto o prazo de 10 dias quanto o prazo de 30 dias já eram previstos na regulação do CNS, com a diferença de que eram contados em dias corridos e, agora, deverão ser contados em dias úteis – ou seja, com o aumento desses prazos. Em compensação, a Lei 14.874 excluiu o prazo adicional de 30 dias que a regulação conferia ao CEP para realizar nova análise com relação a eventuais alterações do protocolo que tenha exigido ao pesquisador (item 2.2, “D” e “E” da NO 1/2013) – ou seja, com a redução do prazo pelo menos nessas hipóteses.
De qualquer forma, todas essas alterações implicarão, pelo menos em tese, a redução do tempo máximo de análise ética de 115 dias para 40 dias úteis, sendo esse um saldo positivo.
Apesar de não ser o seu foco, a Lei 14.874 também instituiu o prazo máximo de 90 dias úteis para a análise sanitária, prevendo que, havendo a omissão da agência, a pesquisa poderá ser iniciada (desde que tenha a aprovação ética) (art. 58 da Lei). A previsão tratando da análise sanitária apareceu pela primeira vez já durante a tramitação do PL 200 na Câmara dos Deputados, quando a Comissão de Seguridade Social e Família aprovou o substitutivo apresentado pelo então deputado Hiran Gonçalves[9].
Inicialmente, a análise sanitária foi disciplinada de forma bastante similar ao que já era previsto no art. 36 da RDC 9/2015 da Anvisa. Esse dispositivo estabelecia o prazo de 90 dias como regra geral, mas com as exceções previstas no seu §3º (“desenvolvimento nacional, desenvolvimento clínico de produtos biológicos – incluindo vacinas – e desenvolvimento clínico em fase I ou fase II”), para as quais a regulação estabeleceu prazo de 180 dias para análise e que o silêncio administrativo não geraria a aprovação por decurso desse prazo.
Após algumas discussões quanto ao prazo ideal, o plenário da Câmara aprovou o texto com a previsão de que o prazo da análise sanitária não poderia superar o prazo de 90 dias, “exceto os casos de produtos complexos, definidos em regulamento, que não poderão superar o prazo de 120 (cento e vinte) dias”[10]. No entanto, quando de volta para o Senado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania entendeu pela necessidade de se especificar que o prazo de 90 dias deveria ser contado em dias úteis, bem como de que não deveria haver nenhuma exceção a esse prazo.
O avanço trazido pela Lei 14.874 nesse aspecto foi, portanto, pôr fim a toda e qualquer exceção. Essas exceções eram bastante abrangentes, de modo que o prazo máximo de análise para grande parte das pesquisas não era de 90, mas sim de 180 dias (i.e., 6 meses). Por exemplo, no relatório anual de atividades de 2023 da Coordenação de Pesquisa Clínica em Medicamentos e Produtos Biológicos (Copec) da Anvisa, consta que 97 dos 307 protocolos submetidos se enquadravam na exceção de “desenvolvimento clínico em fase I ou fase II” (ou seja, aprox. 31,6%)[11].
O problema é que, por mais que a intenção do legislador possa ter sido boa, não parece nada factível que, de uma hora para outra, a Anvisa consiga passar a cumprir o prazo de 90 dias previsto no art. 58 da Lei 14.874/2024 para todo e qualquer tipo de protocolo. O referido relatório da Copec aponta que, das 14 petições ordinárias (i.e., não priorizadas) e não enquadradas nos critérios de análise simplificada, o tempo mediano de análise da agência em 2023 foi de 233 dias (aproximadamente 7,8 meses) – ou seja, muito superior ao prazo de 90 ou mesmo de 180 dias que eram previstos na regulação. Não à toa, das 299 petições concluídas naquele ano, 94 (31%) foram liberadas por decurso de prazo[12].
Isso é ainda mais verdade diante da redução da força de trabalho enfrentada pela Agência nos últimos anos, com perdas sucessivas no seus quadros funcionais[13]. A Agência atua hoje com um número baixíssimo de servidores ativos (aproximadamente 1.600[14]), e apenas 18 deles atua na Copec[15]. Inclusive, apesar de a Lei 14.874 ainda nem ter entrado em vigor, a própria Anvisa já manifestou a sua preocupação com relação ao prazo único de 90 dias, em webinar no qual se discutia a minuta submetida à consulta pública para revisão da RDC 9/2015[16].
Além disso, se por um lado impor consequências ao silêncio administrativo sem qualquer tipo de exceção pode parecer uma solução para o problema da morosidade, por outro, é importante ponderar que pode vir a criar um problema ainda maior. Poder iniciar a pesquisa sem depender da análise da Anvisa pode ser melhor que ficar parado, mas também pode gerar uma série de situações problemáticas.
Como ficarão esses estudos caso a Anvisa um dia pare para analisá-los? Poderá interrompê-los caso entenda necessário realizar complementações no protocolo? Poderá não aceitar dados gerados nesses estudos para fins de aprovação do registro, quando foi a própria Agência que não parou para analisá-los no devido prazo? Nesses casos, como ficaria a proteção aos investimentos já realizados pelo patrocinador?
Paralelamente, será que só a previsão legal para análise ética, i.e., sem nenhum tipo de fiscalização e/ou consequência para os CEPs em caso de descumprimento, será suficiente?
As alterações trazidas com o novo marco legal são promissoras, mas é evidente que não são, por si sós, suficientes para resolver o problema, sendo necessário que as suas previsões sejam de fato respeitadas pelos CEPs e pela Anvisa no que se refere ao cumprimento dos novos prazos de análise. É muito importante, portanto, que a indústria não se iluda e continue a fazer um papel importante de “pressionar” e acompanhar de perto as autoridades do Poder Executivo na regulamentação dessas e das diversas outras questões sensíveis que não foram endereçadas pelo legislador na Lei 14.874/2024.
[1] INTERFARMA. A importância da pesquisa clínica para o Brasil. v. dez/2022, p. 26.
[2] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/06/28/brasil-populacao-censo-2022-ibge-mundo.htm.
[3] INTERFARMA. A importância da pesquisa clínica para o Brasil. v. dez/2022, p. 4.
[4] INTERFARMA. A importância da pesquisa clínica para o Brasil. v. dez/2022, p. 43.
[5] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4584489&ts=1716957710022&disposition=inline.
[6] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4584489&ts=1716957710022&disposition=inline.
[7] INTERFARMA. A importância da pesquisa clínica para o Brasil. v. dez/2022, p. 32.
[8] Anvisa. Relatório anual de 2023 da Coordenação de Pesquisa Clínica em Medicamentos e Produtos Biológicos (COPEC), p. 11.
[9] Disponível em: DCD0020190821001460000.PDF (camara.gov.br).
[10] Disponível em: https://statics.teams.cdn.office.net/evergreen-assets/safelinks/1/atp-safelinks.html.
[11] Anvisa. Relatório anual de 2023 da Coordenação de Pesquisa Clínica em Medicamentos e Produtos Biológicos (COPEC), p. 17.
[12] Anvisa. Relatório anual de 2023 da Coordenação de Pesquisa Clínica em Medicamentos e Produtos Biológicos (COPEC), p. 16.
[13] Ofício nº 254/2024/SEI/DIRETOR-PRESIDENTE/ANVISA.
[14] Dado informado pelo Diretor Rômison Rodrigues Mota durante a abertura da 10ª Reunião Ordinária Pública da Diretoria Colegiada da Anvisa, realizada em 12/jun/2024.
[15] Parecer nº 4/2023/SEI/COPEC/DIRE2/ANVISA.
[16] Webinar “Consulta Pública da revisão da RDC 09/2015, relativa à pesquisa clínica de medicamentos”, realizado em 24/mai/2024.