Lei de Equidade Salarial: levando o pragmatismo a sério

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Diz o ditado que de “boas intenções o inferno está cheio”. Para além de intenções, a Administração Pública deve se pautar por eficiência na gestão dos recursos e conduzir a política pública baseada em evidências.

Nessa esteira, o princípio constitucional da eficiência na Administração Pública é essencial para garantir a otimização das ações do Estado no atendimento das demandas da sociedade.

O princípio da eficiência tem sido objeto de debates e análises desde sua inclusão na Constituição Federal brasileira, por meio da Emenda Constitucional 19/98, reflexo de uma mudança significativa no paradigma da gestão pública, marcando a transição do modelo burocrático para o gerencial. Tal princípio fundamenta-se na racionalidade econômica, que demanda a busca pelos melhores resultados com o menor dispêndio de recursos. É a formalização de que a eficiência na Administração Pública implica não apenas agir dentro dos limites da legalidade, mas também alcançar resultados positivos e satisfatórios para a comunidade na gestão do célebre dilema da Economia entre recursos escassos e necessidades ilimitadas.

Neste artigo, o princípio da eficiência será utilizado para analisar os dispositivos da Lei 14.611/2023, do Decreto 11.795/2023 e da Portaria MTE 3.714/2023, que tratam da equidade salarial entre homens e mulheres no Brasil, de modo a verificar se as soluções propostas por esses atos normativos são as mais adequadas à finalidade proposta: promover a equidade salarial.

Tal análise é motivada pela percepção de que os atos normativos mencionados podem não apenas falhar em promover a equidade salarial, mas também gerar consequências econômicas negativas, o que revelaria um desalinhamento significativo com o princípio da eficiência. A imposição de custos adicionais às empresas, a possibilidade de colusão entre elas, o potencial nivelamento por baixo de salários e o desincentivo a políticas salariais de bonificação por desempenho são alguns dos impactos econômicos adversos que podem surgir.

Portanto, é imperativo examinar criticamente esses dispositivos à luz do princípio da eficiência, visando identificar possíveis falhas e propor alternativas que efetivamente promovam a equidade salarial de forma eficaz e economicamente sustentável.

A Lei 14.611/2023 aborda a equiparação salarial e critérios remuneratórios entre mulheres e homens, além de introduzir modificações na Consolidação das Leis do Trabalho, estabelecida pelo Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943. Por sua vez, o Decreto 11.795/2023 tem como finalidade regular essa lei, enquanto a Portaria 3.714/2023 trata da regulamentação do mencionado decreto. Sobre a divulgação de dados acerca de salários, assim dispõe a Lei 14.611/2023 em seu artigo 5º:

Art. 5º Fica determinada a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas pessoas jurídicas de direito privado com 100 ou mais empregados, observada a proteção de dados pessoais de que trata a Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).

1º Os relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios conterão dados anonimizados e informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens, acompanhados de informações que possam fornecer dados estatísticos sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade, observada a legislação de proteção de dados pessoais e regulamento específico.

Já o Decreto 11.795/2023 dispõe o seguinte:

Art. 2º O Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios de que trata o inciso I do caput do art. 1º tem por finalidade a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos e deve contemplar, no mínimo, as seguintes informações:

I – o cargo ou a ocupação contida na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, com as respectivas atribuições; e II – o valor:

do salário contratual;
do décimo terceiro salário;
das gratificações;
das comissões;
das horas extras;
dos adicionais noturno, de insalubridade, de penosidade, de periculosidade, dentre outros;
do terço de férias;
do aviso prévio trabalhado;
relativo ao descanso semanal remunerado;
das gorjetas; e
relativo às demais parcelas que, por força de lei ou norma coletiva de trabalho, componham a remuneração do (…)

3º O Relatório de que trata o caput deverá ser publicado nos sítios eletrônicos das próprias empresas, nas redes sociais ou em

instrumentos similares, garantida a ampla divulgação para seus empregados, colaboradores e público em geral.

Por sua vez, a Portaria MTE 3.714/2023 determina:

Art. 4º A publicação do Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios deverá ser feita pelos empregadores em seus sítios eletrônicos, em suas redes sociais ou em instrumentos similares, sempre em local visível, garantida a ampla divulgação para seus empregados, trabalhadores e público em geral.

Essas disposições têm como objetivo possibilitar uma análise objetiva dos salários, remunerações e distribuição de cargos entre os gêneros, conforme estipulado no art. 2º do Decreto 11.795/2023. No entanto, as informações detalhadas no inciso II do mesmo artigo, que incluem os valores de diversas parcelas que compõem a remuneração de um trabalhador específico, são consideradas sensíveis do ponto de vista concorrencial. Sua divulgação, seja pelos próprios sites das empresas ou por relatórios do Ministério, pode facilitar a coordenação entre concorrentes.

Além disso, os dispositivos normativos em questão impõem custos adicionais às empresas, sem necessariamente alcançar a finalidade pretendida de equidade salarial. Não há qualquer avaliação que demonstre a relação direta entre a transparência de informações proposta por essa regulação e o avanço na busca da equidade salarial.

Em vez disso, ao obrigar a publicidade exaustiva dos detalhes referentes à remuneração praticada, fragiliza-se o lado mais vulnerável em uma negociação salarial: o trabalhador. A explicitação das informações pode criar, desde logo, dois incentivos adversos aos trabalhadores: incentivar o nivelamento por baixo de salários e desencorajar políticas de bonificação por desempenho.

O nivelamento por baixo dos salários é resultado esperado da racionalidade econômica presente em uma situação na qual não haverá mais assimetria de informações: ao ter certeza da remuneração praticada pelos concorrentes, uma empresa tem a noção precisa do seu teto de custos e buscará reduzi-lo, de modo a otimizar seu resultado operacional.

Corre-se o risco, dessa forma, de a política em análise obter a desejada equiparação salarial não pela elevação da remuneração das trabalhadoras – supostamente em patamar inferior ao de seus pares masculinos –, mas sim pela redução de remuneração dos homens. Pior: esse quadro pode ser agravado com um deslocamento para baixo de todas as remunerações, mantendo-se o diferencial hoje supostamente existente entre homens e mulheres, criando-se um “péssimo de Pareto”: salários menores para todos e manutenção da inequidade.

O desencorajamento de políticas de bonificação por desempenho é outro incentivo adverso que pode decorrer da explicitação da remuneração proposta pelos dispositivos normativos em comento. Explica-se: bonificação por desempenho é um mecanismo diferenciador de remuneração entre trabalhadores, calibrado essencialmente em função das diferenças de atuação profissional existentes entre eles. Uma vez que o modelo proposto pela Lei 14.611/2023 e sua regulamentação infralegal parece desconsiderar o fato de que é possível haver diferenciação remuneratória justificável, não haverá empregador disposto a adotar esse tipo de mecanismo, dado que a diferenciação naturalmente decorrente de sua utilização tem a capacidade de produzir uma infinidade de obrigações – e custos associados a tais obrigações – para quem adotar tal mecanismo.

Ao impor restrições e exigências adicionais às empresas, os dispositivos normativos podem aumentar seus custos operacionais em flagrante desrespeito à Lei de Liberdade Econômica. Isso pode incluir a necessidade de realizar auditorias salariais regulares, implementar sistemas de monitoramento complexos e lidar com processos judiciais decorrentes de possíveis violações. Esses custos adicionais não são eficientes, pois não há garantia de que as ações impostas aos empregadores produzirão benefícios proporcionais em termos de equidade salarial.

Além dos custos adicionais, os dispositivos normativos podem gerar impactos econômicos negativos mais amplos. Por exemplo, a imposição de requisitos salariais rígidos pode levar as empresas a adotar práticas de colusão para manter os salários artificialmente baixos. Isso não apenas prejudica os trabalhadores, mas também distorce o funcionamento do mercado de trabalho e prejudica a concorrência. Além disso, ao desencorajar políticas de bonificação por desempenho, os dispositivos podem minar a motivação e produtividade dos trabalhadores.

Para além de todas essas questões, necessário ainda mencionar o fato de que os relatórios apresentados não refletem adequadamente a massa de dados solicitada. Mesmo que se desconsiderassem todas as ponderações apontadas até aqui, ainda assim seria impossível não questionar a política desenhada, pois o resultado de todo o esforço imposto às empresas é incompatível com o que se desejaria atingir: identificar situações de inequidade salarial entre homens e mulheres e agir sobre elas.

Os normativos analisados impuseram a obrigação de fornecimento de um conjunto não desprezível de informações às empresas. Era de se esperar que, minimamente, os relatórios oferecessem à sociedade e à Administração Pública a possibilidade de compreensão sobre a realidade da remuneração nessas empresas, de modo a subsidiar ações concretas para corrigir eventuais distorções ao tratamento equitativo de homens e mulheres. Não é o que acontece.

Os relatórios são superficiais, utilizam medidas de posição como média e mediana sem os devidos cuidados – sem ponderar corretamente formação, experiência, parcelas fixas e eventuais da remuneração (como horas extras) ou mesmo nível hierárquico –, não criam referenciais setoriais para favorecer a comparação (por exemplo, como está a situação de determinada empresa em relação à média do setor e/ou região em que atua?), não medem a evolução, mas apenas um momento específico (poderiam conter informações de mais de um exercício, de modo a ver a evolução da situação da empresa, por exemplo). Em resumo, deixam dúvidas sobre a razão da exigência de fornecimento de tamanha quantidade de informações e mesmo se elas foram utilizadas adequadamente na confecção dos relatórios.

Em conclusão, a análise dos dispositivos da Lei 14.611/2023, do Decreto 11.795/2023 e da Portaria MTE 3.714/2023 à luz do princípio da eficiência revela desafios significativos. Embora esses atos normativos tenham como objetivo promover a equidade salarial entre homens e mulheres, sua eficácia e eficiência são questionáveis.

A imposição de custos adicionais às empresas, o potencial desincentivo a políticas de bonificação por desempenho e a possibilidade de coordenação entre concorrentes são alguns dos impactos adversos identificados. Além disso, a falta de clareza nos relatórios de transparência salarial pode gerar interpretações equivocadas e impor custos adicionais desnecessários às empresas.

Portanto, é essencial que – diante da inflexibilidade do governo federal em reavaliar cuidadosa e pragmaticamente o tema – o Poder Judiciário se debruce sobre a constitucionalidade e a ilegalidade de referidos atos normativos a fim de que um melhor desenho seja concebido para se atingir a tão almejada equidade salarial, já prevista na CLT há décadas…

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