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Ainda que haja farta jurisprudência ambiental pelo mundo, os casos climáticos são uma pedra no sapato de todo juiz. Como um tribunal teria legitimidade e argumentos jurídicos para determinar a reorganização da economia de um país em uma meta de redução de gases de efeito estufa (GEE)? Bom, com a experiência internacional, já se sabe como.
A literatura especializada refere-se ao momento atual como uma guinada jurídica para a tutela das mudanças do clima, com crescente reconhecimento do papel dos tribunais em garantir o cumprimento das metas de mitigação, supervisionar a manutenção de estruturas regulatórias eficazes, incentivar regulações bem fundamentadas, e requerer fiscalizações idôneas sobre a indústria. São parte essencial da governança do clima.
O primeiro grande litígio de um tribunal nacional superior que determinou a readequação de um governo nacional a metas climáticas mais (minimamente) ambiciosas foi o dos Países Baixos, no caso Urgenda. A decisão não passou a salvo de críticas, mas deu fôlego e impulso ao ativismo climático. Serviu também como um ponto de referência para outras jurisdições, visto que o ineditismo não é o melhor amigo da segurança jurídica.
No entanto, as bases de dados de litígios climáticos do Sabin Center ou do Grantham Institute sugerem que o caso Urgenda teve, até recentemente, um impacto extremamente limitado em transpor seus argumentos e resultados para outras jurisdições. A maior parte dos litígios continua sendo declinada pelos tribunais por razões como ausência de legitimidade processual ativa, falha em demonstrar que instâncias domésticas foram exauridas, e, principalmente, a doutrina da separação de poderes.
Mas em 2024 há uma movimentação expressiva nas cortes ao redor do mundo com a potencial alteração desse cenário. Por exemplo, a Corte Internacional de Justiça, o Tribunal Internacional para o Direito do Mar, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos devem emitir em breve opiniões consultivas que esclarecem quais as obrigações dos Estados diante das mudanças climáticas.
Em outro exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu no último dia 9 de abril três litígios climáticos. Tivemos, portanto, as primeiras jurisprudências europeias em controle de convencionalidade para proteção do clima.
Bem, a experiência acumulada demonstra que os movimentos sociais e os próprios tribunais nacionais se aproveitam das argumentações, falhas e acertos de outras jurisdições. Os profissionais que tratam do assunto são uma comunidade integrada, mesmo em distâncias globais. Essa onda vai chegar. Então eis aqui alguns aprendizados com os casos julgados pela Corte Europeia.
Foram três casos distintos julgados em conjunto: o dos jovens portugueses, o do ex-prefeito francês, o da associação de idosas suíças. Apenas o último teve sucesso, culminando com a condenação da Suíça. Os outros dois não tiveram julgamento de mérito, considerados improcedentes por questões procedimentais.
No primeiro citado (Duarte Agostinho e outros v. Portugal e 32 outros Estados), não se demonstrou que as instâncias nacionais foram exauridas, um requisito da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Na verdade, não tentaram nenhum processo nacional. Além disso, os jovens portugueses pediam não somente a condenação de Portugal, como também de outros 32 países.
Com uma série de argumentos como “circunstâncias excepcionais” e “características especiais” do caso, os jovens solicitavam que a demanda recaísse a todos os países signatários da CEDH. Mas a Corte entendeu que cidadãos portugueses só poderiam demandar a condenação de Portugal, sob risco de contrariar pilares básicos da Convenção, além de gerar caos sistêmico e hipertrofia judicial.
No segundo (Carême vs. França), o ex-prefeito e morador de Grande-Synthe, moveu uma ação no Conselho de Estado francês, em seu nome e em nome da cidade pedindo o controle de emissões de GEE no país. Grande-Synthe é reconhecida como vulnerável à crise climática e sujeita à inundação em 2040. No Conselho de Estado, os possíveis danos por inundações foram considerados vagos para admitir a legitimidade ativa de Carême, mas reconheceu-se a legitimidade do município com ordens contra o Estado francês. Inconformado, o ex-prefeito recorreu individualmente à Corte, que também não reconheceu a legitimidade ativa. A decisão argumenta que o prefeito sequer mantinha alguma propriedade vulnerável na França e morava em Bruxelas desde 2019.
O terceiro e único caso bem-sucedido é KlimaSeniorinnen vs. Suíça. Em 2016, a Verein KlimaSeniorinnen Schweiz (Associação de Mulheres Idosas para Proteção Climática na Suíça) e outras quatro idosas entraram com uma ação judicial contra o governo suíço. Depois de apelar para todas as instâncias nacionais sem sucesso, a Associação submeteu o processo na Corte Europeia de Direitos Humanos em 2020. Quatro anos depois, venceu. O que torna o caso diferente dos demais?
O artigo 34 da CEDH diz que a Corte pode receber petições de indivíduos que se consideram vítimas de violações de direitos da Convenção. Portanto, o autor da ação deve demonstrar concretamente que têm o “status de vítima”. Esse status não é simples de ser provado, e o indivíduo precisa de uma argumentação robusta para provar como está sendo pessoal e diretamente afetado pela ação ou omissão estatal por dois critérios: (1) alta intensidade de exposição aos efeitos adversos das mudanças climáticas e (2) necessidade urgente de assegurar a sua proteção.
A Corte reconheceu que normalmente não garante o “status de vítima” a associações. Muito menos admite ações populares (indivíduos agindo no interesse da coletividade). Para ter legitimidade ativa, só com status direto de vítima.
Entretanto, tratando-se de problema difuso, intergeracional e profundamente desigual, o desequilíbrio nos incentivos para tomar atitudes concretas só poderia ser amenizado com o reconhecimento da legitimidade das associações. Em resumo, no caso de externalidades difusas, nas quais poluir é benéfico apenas para um pequeno grupo enquanto os danos são suportados por todos, precisa-se de critérios processuais particulares. Aqui, a Verein KlimaSeniorinnen Schweiz foi bem-sucedida em sua argumentação sobre o impacto direto em suas associadas.
Não há um artigo específico sobre meio ambiente e clima na Convenção Europeia. No entanto, a Corte entendeu que a Suíça violou o direito humano à vida privada e familiar (art. 8º da CEDH) pois excedeu na sua margem de apreciação (ou seja, discricionariedade) em estabelecer políticas climáticas, e falhou em adotar uma regulação eficaz, privando as idosas suíças de usufruírem de seu direito à vida. Além disso, ficou estabelecido que a Suíça violou o direito de acesso à Corte (art. 6º §1º da CEDH) pois os tribunais nacionais não forneceram razões convincentes para eximir-se de julgar o mérito do caso.
Parece que a ampla deferência pelos juízes em relação aos atos de um governo não vão continuar em voga por muito tempo, pelo menos em relação ao clima. Por exemplo, o Tribunal estabeleceu o que os Estados precisam fazer para comprovar o cumprimento das obrigações climáticas sob a CEDH. É um teste de cinco etapas interrelacionadas: (1) especificar um cronograma de metas para atingir a neutralidade de carbono; (2) estabelecer metas e caminhos intermediários de redução de emissões; (3) fornecer evidências que demonstrem o devido cumprimento das regulações; (4) manter as metas de redução de GEE relevantes atualizadas com a devida diligência; e (5) agir em tempo hábil, de maneira apropriada e consistente.
Para sair do abstracionismo normativo e levar essas orientações a sério, um governo precisa de muito trabalho. Pela primeira vez estamos vendo a Corte Europeia exigindo esse esforço das instâncias políticas. Os próximos capítulos chegarão logo.