Muito tóxico para a Europa, mas seguro para o resto do mundo?

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Enquanto crianças europeias são protegidas por legislações rigorosas contra produtos perigosos, como pesticidas tóxicos e brinquedos que trazem riscos à saúde, as do Sul Global são vistas como um mercado para esses mesmos itens.

Essa adoção de “duplo padrão” (ou double standards) no comércio internacional, ou seja, uma conduta que estabelece distinções entre os requisitos de segurança para consumidores europeus e os de outras partes do mundo, não é uma novidade, tampouco uma prática pontual em determinados setores.

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Expor essa dinâmica que perpetua desigualdades globais, especialmente entre grupos mais vulnerabilizados, como as crianças, continua sendo crucial. Por isso, o relatório Toxic Double Standards: How Europe sells products deemed too dangerous for Europeans to the rest of the world” (Duplos Padrões Tóxicos: Como a Europa vende produtos considerados perigosos demais para os europeus ao resto do mundo, em tradução livre), assinado por mais de 100 organizações do Brasil e do mundo, joga luz sobre o tema e propõe ações intersetoriais para esse problema.

Pesticidas tóxicos, brinquedos inseguros, plásticos de uso único, sistemas intrusivos de inteligência artificial e químicos industriais fatais são apenas alguns exemplos de bens e tecnologias proibidos na União Europeia (UE), mas que continuam a ser produzidos para serem exportados mundo afora, principalmente para o Sul Global, em uma clara demonstração de violação ao princípio da não discriminação contra crianças e adolescentes disposto no tratado de direitos humanos mais aceito na história, a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU.

O relatório denuncia não apenas a prática discriminatória do double standards por empresas transnacionais, mas sobretudo, o papel da própria UE nessa dinâmica. A UE apresenta diversas legislações destinadas à proibição de determinados produtos sob a justificativa da existência de impactos negativos à saúde pública, aos direitos humanos e ao meio ambiente, decorrentes do seu uso e consumo. Essas normas, contudo, não se aplicam quando os bens produzidos nos países pertencentes ao bloco são destinados ao uso ou consumo em países fora de seus limites territoriais, sobretudo países do Sul Global, inclusive o Brasil.

Desde 2009, a UE dedica-se à regulação da segurança de brinquedos, por exemplo, determinando a proibição de substâncias tóxicas e cancerígenas nos produtos, com vistas à proteção da saúde infantil. Esse cuidado, contudo, apresenta limites geográficos evidentes: uma proposta de atualização, apresentada em 2023, ainda permite que fabricantes sediados no bloco produzam brinquedos inseguros, desde que não sejam vendidos no mercado interno.

Apenas em 2021, a UE exportou cerca de € 2,4 bilhões em brinquedos para países não membros, sem, no entanto, qualquer comprovação de que os produtos exportados não apresentam características prejudiciais à saúde das crianças, segundo o relatório “Toxic Double Standards”.

Nesse sentido, a pesquisa “Infância Plastificada”, do Instituto Alana, destaca que 90% dos brinquedos produzidos mundialmente são feitos com algum tipo de plástico, impactando não só a saúde de crianças, mas também o meio ambiente. Assim, enquanto há compromisso firmado, e reafirmado, para a proteção da saúde das crianças dentro das fronteiras da UE, prevalece a preocupante desconsideração com o compromisso de proteger a saúde desse grupo a nível global.

O mesmo se verifica em relação aos pesticidas altamente perigosos, substâncias rigorosamente reguladas na UE, mas continuamente exportadas para o resto do mundo, inclusive para o Brasil. O caso maranhense revelado no relatório é bastante expressivo: em abril de 2021, agrotóxicos lançados por um avião sobre casas de uma comunidade rural causaram  sintomas de intoxicação nos moradores, dentre os quais André Lucas, à época com 7 anos de idade, que foi atingido diretamente pelas gotículas na pele.

Dentre os agrotóxicos pulverizados pelo avião, encontravam-se substâncias proibidas na UE, porém fabricadas por empresas com origem no bloco econômico. O cenário, mais uma vez, é evidente: os impactos das substâncias banidas internamente, mas externamente comercializadas pela UE, afetam as pessoas e a natureza, sobretudo no Sul Global, o destino preferencial de produtos considerados tóxicos, onde vivem 75% das crianças do planeta.

Nesse contexto, a adoção dessa política de exportação apresenta impactos multidimensionais na vida e na saúde de meninos e meninas que nascem e se desenvolvem em países principalmente da América Latina, África e partes da Ásia, prejudicando, de forma direta ou indireta, sua saúde, nutrição, o lazer e o direito a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável.

É inaceitável que a legislação da UE permita que empresas dos Estados-Membros lucrem com a venda de produtos claramente maléficos à saúde das crianças do Sul Global. Essas práticas encontram-se em discordância com as obrigações da UE de assegurar uma política coerente para o desenvolvimento, embasada no compromisso com a promoção dos direitos humanos globalmente.

No que diz respeito aos direitos das crianças, esse compromisso está fundamentado no Comentário Geral 26, que determina aos Estados a obrigação de tomar medidas, separadamente e em conjunto, por meio da cooperação internacional, para respeitar, proteger e cumprir os direitos das crianças.

Não basta, portanto, que a UE proteja apenas as suas crianças, enquanto viola os direitos de outras no mundo. Uma legislação europeia que proíba a exportação desses bens é o que o relatório demanda para garantir o mínimo de coerência política e respeito aos direitos humanos de crianças e adolescentes globalmente, sem discriminação.

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