Novas investigações sobre surveillance pricing e condutas ‘comportamentais’

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Nos últimos anos, o uso de dados pessoais de preferências de consumo, combinado com insights da economia comportamental, transformou profundamente a maneira como as empresas estruturam suas estratégias de mercado.

Ferramentas que monitoram o comportamento dos consumidores permitem não só antecipar tendências, mas personalizar preços e ofertas em tempo real. Essa prática, conhecida pela alcunha um tanto negativa de Surveillance Pricing, utiliza algoritmos sofisticados e big data para direcionar ofertas, muitas vezes explorando vieses comportamentais dos consumidores com potenciais impactos significativos sobre a competição.

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O Direito, sendo reativo por natureza, tem demorado para acompanhar essas novas práticas. Apenas recentemente as autoridades começaram a se debruçar sobre como esses métodos impactam as estruturas de mercado e os padrões de concorrência.

Em artigo publicado em 2017, já tivemos a oportunidade de apontar a “cegueira” das autoridades antitruste em relação às estratégias atípicas de abuso de posição dominante, especialmente aquelas baseadas em Economia Comportamental[1]. Naquele momento, apontamos que as empresas dominantes vinham utilizando novas táticas comportamentais para manipular a demanda, enquanto as autoridades permaneciam presas a conceitos tradicionais de abuso, na maior parte das vezes nos exemplos expressamente listados nas próprias legislações.

Sete anos depois, os olhares das autoridades antitruste começam a se voltar para essa preocupação, a exemplo da coleta de dados do FTC (Federal Trade Commission) sobre essa prática[2]. Essa investigação é um marco importante na esfera antitruste, em que o FTC busca informações de oito empresas que utilizam dados de monitoramento comportamental para determinar seus preços, revelando que a tecnologia e o big data estão, de fato, no centro das novas preocupações concorrenciais[3]

Em julho de 2024, o FTC emitiu ordens para oito empresas, incluindo Mastercard, JPMorgan Chase, Accenture, McKinsey & Co., e Revionics, para que fornecessem informações detalhadas sobre o uso de produtos e serviços de Surveillance Pricing.

Essas empresas utilizam algoritmos avançados, inteligência artificial e dados pessoais, como histórico de navegação e informações financeiras, para ajustar os preços dinamicamente com base nas características individuais de cada consumidor. A investigação visa a entender melhor como essas práticas afetam a privacidade dos consumidores e as implicações concorrenciais de cobrar preços diferentes para os mesmos produtos ou serviços, dependendo do perfil do comprador[4].

Essa prática pode ser problemática, pois pode permitir que as empresas cobrem preços mais altos de determinados consumidores com base em dados como localização, renda e histórico de compras. O FTC espera trazer transparência para o que considera um mercado “opaco”, em que os intermediários controlam o uso de dados pessoais de forma potencialmente prejudicial.

Além do FTC, autoridades antitruste de outros países estão também investigando o uso de algoritmos de Surveillance Pricing e seus impactos no mercado. Na União Europeia, as investigações incluem práticas de precificação personalizada que utilizam dados de consumidores para ajustar os preços de maneira individualizada, gerando preocupações sobre o uso indevido de dados pessoais para obter vantagens de mercado.

Isso também é uma questão observada no Reino Unido, onde as autoridades antitruste estão monitorando o uso de IA e algoritmos que podem explorar a coleta de dados sensíveis para criar disparidades de preços entre os consumidores.

Ainda, no Japão e na Coreia do Sul, há esforços semelhantes para entender como as grandes empresas utilizam dados pessoais e algoritmos avançados para influenciar o comportamento de compra e potencialmente prejudicar a concorrência. Esses países estão interessados em garantir que essas tecnologias não resultem em abuso de poder de mercado ou discriminação de preços, que poderia prejudicar consumidores menos favorecidos ou com menos poder de negociação.

É importante ressaltar que a análise deste artigo é feita estritamente pela perspectiva do Direito Concorrencial, e não pelas lentes da privacidade de dados ou do direito do consumidor. O foco central está em entender como essas novas práticas alteram a dinâmica concorrencial e a distribuição de poder de mercado.

O desafio atualmente é encontrar formas adequadas de analisar práticas inovadoras como o Surveillance Pricing utilizando teorias e ferramentas tradicionais, muitas vezes desenvolvidas para mercados estáveis e previsíveis. Conceitos tradicionais como market share e poder de mercado, que eram adequados para analisar a concorrência em mercados mais previsíveis, mostram-se insuficientes diante do novo mundo de big data e condutas baseadas em dados. Hoje, é muito mais difícil identificar e mensurar poder de mercado quando as empresas utilizam algoritmos para monitorar e ajustar os preços de forma dinâmica e quase invisível, tanto para consumidores quanto para reguladores.

Em outras palavras, essa nova investigação do FTC reconhece o potencial impacto negativo que algoritmos e o Surveillance Pricing podem ter ao influenciar preços de forma não intuitiva e potencialmente prejudicial. No entanto, é necessário equilibrar essa perspectiva com a proteção do acesso legítimo a informações disponíveis no mercado.

Como já dissemos no passado em artigo publicado neste JOTA[5], é preciso que se faça uma distinção do legítimo acesso a informações disponíveis no mercado, mas  levando em consideração uma análise efetiva do impacto da transparência de informações sobre a conduta dos agentes de mercado, com a adequada distribuição do ônus da prova.

De toda sorte, o que vemos agora é um cenário em que as autoridades, como o Cade, precisam expandir seu foco para além das condutas tradicionais e adotar uma abordagem mais flexível e sensível às inovações comportamentais, que moldam o comportamento do consumidor e criam novas barreiras à concorrência.


[1] BECKER, Bruno Bastos. Economia Comportamental e a “Cegueira” de Autoridades antitruste a estratégias atípicas de Abuso. Revista do IBRAC, vol. 23, n. 2. 2017.

[2] Vide: https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2024/07/ftc-issues-orders-eight-companies-seeking-information-surveillance-pricing

[3] Vide: https://www.independent.co.uk/news/ftc-ap-mastercard-new-york-mckinsey-b2584763.html

[4] Vide: https://www.independent.co.uk/news/ftc-ap-mastercard-new-york-mckinsey-b2584763.html

[5] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acesso-nao-troca-a-informacoes-concorrencialmente-sensiveis

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