O Judiciário e o direito à alimentação

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No último mês, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[1] divulgou que 72,4% dos lares brasileiros encerraram o ano de 2023 em segurança alimentar, ante 63,3% registrados em 2018, data da última pesquisa a investigar a questão. O Maranhão, estado que acompanhei mais de perto em razão do exercício pretérito do mandato de governador, evoluiu de 33,8% para 56,4% dos domicílios com segurança alimentar, um acréscimo de 22 pontos percentuais no período, o que me fez lembrar da rede de mais de uma centena de restaurantes populares que ali implantamos, com refeições a R$ 1.

O crescimento da concretização do direito à alimentação no Brasil é um dado de altíssima relevância, porém é preciso reconhecer que, para avançar ainda mais, é necessário fortalecer as ações que envolvem os Três Poderes da República.

Na Constituição Federal, a palavra “alimentação” aparece hoje citada cinco vezes. A partir da Emenda Constitucional 64/2010, de iniciativa do senador Antônio Carlos Valadares, de Sergipe, a alimentação passou a ser expressamente assegurada como um direito social e obrigação do Estado brasileiro, com alteração no art. 6º, caput, da Constituição Federal.

No entanto, mesmo antes da citada alteração constitucional, não restavam dúvidas acerca de sua fundamentalidade, dada a estreita relação entre a promoção do direito à alimentação e a concretização de outros direitos fundamentais, entre os quais, cito, apenas ilustrativamente, o direito à saúde e à educação. Em seu art. 7º, inciso IV, a Constituição relaciona o acesso à alimentação ao direito ao salário-mínimo; no art. 208, inciso VII, o acesso à alimentação é assegurado no contexto da educação; e, no art. 227, é garantido o direito à alimentação a crianças, adolescentes e jovens.

No âmbito internacional, já se reconhece, desde a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), que todos têm direito a um padrão de vida que assegure, entre outros, a alimentação (art. 25). Na mesma linha, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) reconhece o “direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome” (art. 11, §2), enquanto, no âmbito do Sistema Interamericano, o Protocolo de São Salvador prevê o “direito à nutrição adequada”, assim compreendida como aquela que “assegure a possibilidade de gozar do mais alto nível de desenvolvimento físico, emocional e intelectual” (art. 12.1).

Acerca do reconhecimento do direito à alimentação de grupos vulneráveis, destaco a Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 2, c – “alimentos nutritivos adequados”) e a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (“Considerandos” – “… em situações de pobreza, a mulher tem um acesso mínimo à alimentação…”).

Entre os instrumentos de soft law sobre o tema, merecem destaque as Diretrizes do Direito à Alimentação, elaboradas pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), no ano de 2004, com o objetivo de garantir a realização progressiva do direito, em contextos de segurança alimentar. O documento elenca quatro pilares para a segurança alimentar, sendo eles a disponibilidade, a estabilidade da oferta, o acesso e a utilização.

Também fixa estratégias de atuação para os Estados voltadas à ampliação do acesso à alimentação adequada, entre as quais a adoção de políticas de redução da pobreza; a previsão de medidas específicas para grupos vulneráveis e situações emergenciais e de catástrofes; e a revitalização de setores produtivos, com especial incentivo aos pequenos produtores e aos pescadores artesanais.

No Brasil, no plano infraconstitucional, merece destaque a Lei 11.346/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), com o fim de assegurar o direito à alimentação adequada, antes mesmo da inclusão da alimentação como direito social na Constituição Federal, determinando, em seu art. 2º, § 1º, que as políticas públicas destinadas à promoção do direito à alimentação devem levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. Além do mais, a lei consagra, em seu art. 3º, a definição de segurança alimentar e nutricional como o acesso regular e permanente à alimentação, em quantidade e qualidade adequadas, tal como acima sublinhamos.

Nesse contexto, cabe ao Poder Judiciário, guardião da Constituição Federal e da legalidade, garantir o direito social à alimentação, como integrante do âmago do “mínimo existencial” – elidindo inclusive as fronteiras da “reserva do possível”.

No âmbito da jurisprudência da Corte IDH, o tema do direito à alimentação foi abordado do caso Villagrán Morales y otros (“niños de la calle”) vs. Guatemala. Os fatos que deram ensejo à provocação da Corte consistiram no sequestro, na tortura e no assassinato de jovens em situação de rua por membros da Polícia Nacional da Guatemala. Em decisão proferida no ano de 1997, a Corte IDH reconheceu que o Estado da Guatemala violou um conjunto de direitos fundamentais das vítimas, entre os quais o direito à alimentação. Sobre ele, destacou que não foi assegurado às crianças o direito à segurança alimentar, uma vez que, por viverem em situação de extrema pobreza, seu acesso à alimentação era irregular[2].

Mais recentemente, em 2020, no caso Comunidades indígenas “Miembros de la Asociación lhaka Honhat” (nuestra tierra) vs. Argentina, a Corte IDH reconheceu a ocorrência de violação à propriedade de território ancestral, na Província de Salta, e, concomitantemente, a violação a diversos direitos humanos, entre os quais o direito à alimentação. Sobre o direito à alimentação, a Corte determinou, entre outras medidas, a apresentação de estudo sobre a situação de acesso à água e à alimentação na comunidade tradicional, bem como um plano de ação para assegurá-los[3].

No caso do Brasil, há vários exemplos relevantes. Durante a pandemia, ações foram propostas nos tribunais a fim de garantir aos estudantes que tivessem acesso à alimentação escolar no período do oferecimento de aulas remotas. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito da ADPF 709, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, determinou que o governo gederal adotasse com urgência medidas necessárias para garantir a entrega de alimentos ao povo Yanomami, que passa por extensa e profunda crise.

A garantia de direitos da população em situação de rua também foi objeto de ação no STF. A ADPF 976, cujo relator é o ministro Alexandre de Moraes, fixou o prazo de 120 dias (a contar de 25 de julho de 2023) para que os Poderes Executivos municipais e distrital realizassem diagnóstico e garantissem vagas de abrigo e capacidade de fornecimento de alimentação.

Com a ADPF 885, impetrada pela OAB em 2021, houve o pleito de retomada de mecanismos de garantia do direito à alimentação, a exemplo da ampliação do Auxílio Emergencial no valor de R$ 600, retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), reajuste no valor do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e garantia de acesso da população ao gás de cozinha, por meio de uma adequada política de preços. A ação foi extinta em 2023, já que o ministro Dias Toffoli, relator da ADPF, entendeu que os pedidos haviam sido atendidos, mas a demanda judicial trouxe luz às omissões do Poder Público na gestão da fome no Brasil, impulsionando a adoção de medidas políticas e administrativas em favor do direito fundamental à alimentação.

Nos anos 1980 e 1990, muitos devem lembrar, ganhou projeção nacional a campanha do “Soro Caseiro”, de iniciativa da Pastoral da Criança, coordenada por Zilda Arns, que combatia a desnutrição e desidratação infantil. Em 1993, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e Dom Mauro Morelli, criaram a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. A organização não governamental é responsável pela campanha “Natal Sem Fome”, de arrecadação e distribuição de alimentos. Tais iniciativas, entre outras, geraram políticas de transferência de renda, com um leque de programas voltadas a garantir o mínimo existencial às famílias: Bolsa Escola, Auxílio Gás e Bolsa Alimentação, posteriormente condensados em um só, o Bolsa Família.

Como se constata, a união dos Três Poderes com a sociedade civil trouxe maior concretização ao direito à alimentação. Contudo, os desafios continuam gigantescos. A maior das corrupções que o país enfrenta é a desigualdade social, que rouba o presente e o futuro das famílias brasileiras. Por isso, é indeclinável que a magistratura leve em conta a concretização do mínimo existencial de cada ser humano, o que obviamente imprescinde do direito à alimentação, em cada controvérsia a ser arbitrada. É uma forma nobre e justa de efetivamente respeitar a Constituição

[1] Dados disponíveis em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencianoticias/2012-agencia-de-noticias/notic%20ias/39838-seguranca-alimentar-nos-domicilios-brasileiros-volta-a-crescer-em-2023

[2] OEA. Caso Niños de la Calle(Villagrán Morales y otros) vs. Guatemala (1997). Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_63_esp.pdf>. Acesso em: 13 maio 2024.

[3] OEA. Comunidades indígenas Miembros de la Asociación lhaka Honhat(nuestra tierra) vs. Argentina (2020). Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_400_esp.pdf>.   Acesso   em: 13 maio 2024.

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