O pagamento pelo reequilíbrio de contratos administrativos é uma indenização?

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A dúvida é pertinente e, apesar de, em uma primeira análise, a resposta parecer simples, ela depende da forma como interpretamos, da perspectiva da teoria geral das obrigações, as ideias de pagamento, prestação na relação obrigacional, reequilíbrio e indenização.[1]

Trata-se de uma investigação sobre o enquadramento perante a teoria geral das obrigações das relações jurídicas criadas pelas regras contratuais e legais sobre distribuição de riscos em contratos administrativos. Esse tipo de investigação é incomum nos livros de direito administrativo, nos quais é raro encontrar esforço de conciliação entre as elaborações sobre os contratos administrativos e a teoria geral das obrigações e dos contratos desenvolvida no âmbito da teoria geral do direito e da doutrina do direito privado.

As indenizações se destinam a reparar situações decorrentes de atos ilícitos ou inadimplemento de obrigações, sejam essas obrigações de origem contratual, ou baseadas em regras legais sobre responsabilidade civil. Portanto, rigorosamente, só há indenização quando a prestação devida é substituída pela reparação possível, pela prestação equivalente, que é a indenização das perdas ou danos.[2] Se a prestação originária decorrente da relação jurídica criada pela incidência da distribuição de riscos é uma obrigação de pagamento (obrigação de dar dinheiro), não se deveria considerar que o cumprimento dessa obrigação é uma indenização.

O pagamento, por exemplo, do preço de um contrato de compra e venda não é uma indenização. Isso porque, apesar de ser uma obrigação de dar numerário, é a prestação originalmente devida pelo comprador no contrato de compra e venda e não uma prestação substitutiva, uma prestação equivalente, em vista do inadimplemento da prestação originalmente devida.

Muitas vezes, o elemento que, no caso da atividade de reequilíbrio, leva à confusão entre o cumprimento de uma obrigação de pagamento e a indenização é que, em um olhar superficial sobre o tema do reequilíbrio, alguém poderia supor que é preciso haver proporcionalidade entre o desequilíbrio e reequilíbrio e que essa mesma ideia permeia a relação entre a indenização e as perdas e danos.

Mas essa confusão é afastada quando se nota que já foi demonstrado que, no caso dos reequilíbrios, as regras adotadas pelos contratos para cálculo do reequilíbrio diversas vezes causam aleatoriedade entre o valor do desequilíbrio (que seria o equivalente à perda ou dano) e o valor do reequilíbrio (que seria o valor da indenização).[3]

Essa aleatoriedade é mais um elemento diferencial entre o reequilíbrio e a indenização. Enquanto a indenização deve sempre ser proporcional, o reequilíbrio, como toda obrigação de pagamento cujo valor é definido por regras de cálculo previstas em contratos, pode resultar em um valor diferente do valor do desequilíbrio.

Nesse contexto, a questão central para sabermos se o reequilíbrio eventualmente realizado por meio do pagamento em dinheiro é uma indenização é saber qual a prestação exigível do devedor da relação jurídica criada pela incidência da distribuição de riscos contratual que gera o direito ao reequilíbrio. Em outras palavras, é necessário saber qual a prestação originalmente devida pelo devedor do reequilíbrio e em que contextos essa prestação é substituída pela indenização reparatória de perdas e danos.[4]

Para fazer essa análise, é preciso, em primeiro lugar, lembrar que a atividade de reequilíbrio existe em virtude da celebração de um contrato administrativo, que estabelece uma distribuição de riscos, ou que aplica regras legais para distribuir riscos.

O fato jurídico que faz incidir essas normas sobre distribuição de riscos é a ocorrência de eventos que venham a impactar economicamente ou financeiramente uma das partes do contrato, mas cujo risco da sua ocorrência e efeitos foi assumido por outra parte do contrato.

Nesse sentido, como eu tenho defendido há vários anos[5] e já se tornou consensual na nossa doutrina jurídica, reequilibrar é uma atividade de compensação entre as partes pela ocorrência de eventos que lhes impactaram negativamente da perspectiva econômico-financeira, mas cujo risco foi assumido por outras partes do contrato.

O surgimento da relação obrigacional cujo desenlace é a atividade de reequilíbrio se dá pela ocorrência do evento de desequilíbrio, que é um fato jurídico. Esse fato jurídico realiza, executa, atualiza na realidade o que os tributaristas muitas vezes chamam de hipótese de incidência normativa das normas sobre distribuição de riscos, e, como consequência, faz surgir assim o direito ao reequilíbrio para a parte atingida por evento cujo risco não é seu, e a obrigação de reequilibrar para a parte que assumiu o risco da ocorrência daquele evento.

Para sabermos qual a prestação devida pela relação obrigacional surgida pela ocorrência do evento de desequilíbrio, precisamos olhar para a noção de controle sobre os eventos. É que aquele que assume o risco de um dado evento pode ou não ter controle sobre a sua ocorrência e sobre os seus impactos.

Se aquele que assumiu o risco não tem controle sobre o evento (por exemplo, no caso do reequilíbrio pela ocorrência de eventos imprevisíveis e de impactos extraordinários), a sua prestação principal é a compensação econômico-financeira dos seus impactos. Não há nesse caso qualquer prestação decorrente da distribuição de riscos anterior à ocorrência do fato jurídico que é o evento de desequilíbrio.

Portanto, a obrigação de reequilibrar é uma obrigação de pagamento para compensar perdas do credor, mas não se consubstanciaria em uma indenização, porque ela não é substitutiva de uma outra prestação. Ela é a prestação originária decorrente da incidência da distribuição de riscos sobre o evento de desequilíbrio.

Também não seria indenização o pagamento em pecúnia do reequilíbrio por erros, deficiências ou insuficiências de projeto em contratos de obras públicas. Isso porque a atividade de elaboração de projeto pela administração pública é geralmente anterior à contratação da obra, e a detecção dos erros, insuficiências e deficiências do projeto ocorrem geralmente após a celebração do contrato de obra.

Sendo assim, da celebração do contrato até o momento quando há o evento de desequilíbrio (descoberta dos erros de projeto), não há qualquer prestação que se espere da administração pública. Descoberto o erro de projeto (fato jurídico e evento de desequilíbrio), a prestação originária esperada da administração pública é pagar pelos impactos desse erro. Por isso, nesse caso, não se trata também de indenização.

Por outro lado, se aquele que assumiu o risco (o credor) tem controle sobre a ocorrência e/ou os impactos do evento poder-se-ia supor que a prestação original é realizar os atos necessários a evitar a ocorrência do evento de desequilíbrio e a geração de impactos negativos sobre as outras partes do contrato. Mas, se as partes tiverem apenas assumido o risco da ocorrência do evento e dos seus impactos, ou seja, se não houver nenhuma regra adicional à que atribui riscos, será do devedor a escolha entre prevenir a ocorrência e evitar os efeitos do evento de desequilíbrio, ou remediá-lo por meio da compensação ao credor impactado pelo evento.

Em outras palavras, o credor não terá a possibilidade de exigir a prestação consubstanciada em evitar a ocorrência do evento de desequilíbrio e dos seus impactos. Por isso, ainda nesse caso, me parece que o pagamento para compensação dos efeitos do evento de desequilíbrio seria a prestação originária, uma vez que o credor não pode exigir atos do devedor destinados a evitar a ocorrência ou os efeitos do evento de desequilíbrio.[6]

Situação diferente é a do descumprimento do contrato que dá margem ao reequilíbrio, por exemplo quando a agência reguladora ou o poder concedente resolve não aplicar o reajuste devido da tarifa contra a inflação de um contrato de concessão ou PPP. Nesse caso, não me parece haver dúvida de que a prestação originária era cumprir o contrato e, por isso, eventual pagamento em pecúnia pelo descumprimento de contrato seria uma indenização.

O tema da forma a ser adotada para reequilíbrio dos contratos levanta outros desafios. Nos contratos de prestação de serviço comum ou de obra, o reequilíbrio geralmente é feito ordinariamente por variação nos pagamentos em pecúnia e excepcionalmente por variação das obrigações do contratado. Mas, em contratos, mais complexos, como, por exemplo, os de concessão e PPP, o espectro de opções é mais amplo: pode-se reequilibrar também por pagamento em pecúnia, mas o mais comum é o reequilíbrio por variação de tarifa, do prazo do contrato, ou de obrigações de investimento do concessionário.

Particularmente, nos contratos de concessão, não há sequer, em regra, a expectativa que os reequilíbrios sejam feitos por pagamento em pecúnia. A forma esperada de reequilibrar é a variação da tarifa, do prazo e das obrigações do contrato. Sendo assim, nesses casos, e talvez só neles, seja possível ver o pagamento em pecúnia como indenização, como uma prestação substitutiva das prestações originalmente previstas. Isso não se aplicaria, contudo, às PPPs. Isso porque nas PPPs a expectativa muitas vezes é que o reequilíbrio seja feito por aumento do pagamento da contraprestação pública, que é uma das formas originais de prestação.

[1] Eu queria agradecer a Gustavo Valverde por ter, dias atrás, me feito a pergunta que é título do presente artigo. Desde então, a pergunta me acompanhou até concluir o presente artigo. Os erros evidentemente são de minha responsabilidade.

[2] Pontes de Miranda assim define as indenizações: “Na linguagem do direito brasileiro, reparar e restituir compreendem a recomposição natural e a recomposição pelo equivalente. Indenizar, em sentido estrito, é somente prestar o equivalente. O dever de indenizar supõe ter havido dano.” Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo XX, Thompson Reuters, Revista dos Tribunais. Atualizado por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, 2012, § 2.717, pp. 263.

[3] Cf.: os seguintes artigos de minha autoria: “O reequilíbrio econômico-financeiro e o mito do regresso ao “statu quo ante””, disponível em Colunistas, ano 2020, num. 470, disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/mauricio-portugal-ribeiro/o-reequilibrio-economico-financeiro-e-o-mito-do-regresso-ao-statu-quo-ante; e “Aleatoriedade em processos de reequilíbrio de contratos: o uso de estimativas de demanda para definir o valor da compensação às partes e para medir o valor do desequilíbrio”. 2015, p. 13. Disponível em https://portugalribeiro.com.br/biblioteca/.

[4] A prestação, na teoria das obrigações, é, ao mesmo tempo, uma atividade esperada do devedor e um resultado útil a que tem direito o credor. Vide Martins-Costa, Judith e Costa e Silva, Paula, Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação – Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro, São Paulo, Quartier Latin, 2020, pp. 55 e seguintes.

[5] Fui o primeiro a definir reequilíbrio como um braço operacional da distribuição de riscos. Vejam o seguinte trecho do meu livro sobre as melhores práticas na estruturação de editais e contratos de concessão e PPP:

“Mas, vale a pena especificar melhor a relação entre matriz de riscos, indicadores de desempenho, sistema de pagamentos, e sistema de equilíbrio econômico-financeiro: os indicadores de desempenho e o sistema de pagamento definem (a) o que a Administração Pública/usuário vão adquirir por meio do contrato; (b) o preço e forma de pagamento pelo serviço.

Já a matriz de riscos estabelece qual das partes é responsável por dar cabo de determinada atividade prevista no contrato, e, também, por lidar com as incertezas positivas e negativas – e os conseqüentes ganhos e ônus – que afetam tal atividade. Por exemplo, a parte à qual é atribuído o risco de construção/implantação será responsável pela construção do empreendimento na qualidade, prazo e custo previsto, mas também por lidar com todas as ocorrências, previstas ou não, que impactem positiva ou negativamente o cumprimento dessas obrigações.

A matriz de riscos, ao estipular as responsabilidades de cada uma das partes do contrato, fixa o conjunto encargos e benefícios de cada parte e, assim, em conjunto com os indicadores de serviços e o sistema de pagamentos constituem o que a doutrina jurídica costuma chamar de “equação econômico-financeira” do contrato.

Ora, a manutenção no tempo da equação econômico-financeira do contrato, isto é o cumprimento permanente, e, portanto, estabilização temporal – da distribuição de encargos e benefícios previstos na matriz de riscos contratual – requer a previsão de um sistema de equilíbrio econômico-financeiro. Por exemplo, em um contrato de concessão em que investimentos para expansão da rede não previstos expressamente no contrato sejam risco do Poder Concedente, sempre que o Poder Concedente solicitar ao parceiro privado a implantação de uma expansão na rede não prevista no contrato, será indispensável compensá-lo por isso. O sistema de equilíbrio econômico-financeiro do contrato é, pois, utilizado nesta situação.

Mais um exemplo: existem riscos atribuídos no contrato a uma das partes, mas cujos eventos gravosos a eles relacionados afetam adversamente outra parte do contrato. Imagine-se um contrato em que os riscos de caso fortuito e força maior sejam atribuídos ao Poder Concedente, e imagine-se que ocorram eventos de força maior que impeçam, por um período, a cobrança de tarifa pelo parceiro privado. Ora, neste caso, apesar do risco de força maior ser do Poder Concedente, a ocorrência gravosa a ele relacionada (impossibilidade de cobrança de tarifa) afeta diretamente o parceiro privado. Nesse tipo de circunstância, o sistema do equilíbrio econômico-financeiro é utilizado para indenizar ao parceiro privado o prejuízo decorrente do evento de força maior, de modo a cumprir a matriz de riscos contratual. A função, portanto, do sistema de equilíbrio econômico-financeiro é o cumprimento permanente da matriz de riscos contratual.

In: RIBEIRO, Maurício Portugal. Concessões e PPPs: Melhores práticas em licitações e contratos. 2010, item III.5. Disponível em: https://portugalribeiro.com.br/download/concessoes-e-ppps-melhores-praticas-em-licitacoes-e-contratos/. Esse livro foi originalmente publicado pela Editora Atlas em 2011, mas a edição do livro físico encontra-se esgotada.

[6] Em contratos administrativos, assumir o risco de eventos significa apenas se responsabilizar pelos impactos econômico-financeiros sobre outras partes do contrato da ocorrência dos eventos de desequilíbrio. Portanto, a não ser que haja disposição contratual específica nesse sentido, o credor não pode exigir do devedor atividades que evitem a ocorrência ou minimizem a produção dos efeitos do evento de desequilíbrio pelo mero fato de o devedor ter assumido por contrato ou por lei o risco de dado evento.

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