O problema da audiência de conciliação do art. 334 do CPC

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Dizia o saudoso professor Jorge Amaury Maia Nunes: os fatos não pedem licença a modelos teóricos.

A frase pode ser aplicada, em certa medida, no âmbito do art. 334 do Código de Processo Civil, que estabeleceu a necessidade de audiência de conciliação ou de mediação prévia à contestação pelo réu.

Relembremos a norma.

Diz ela, inspirado no pilar da solução consensual de conflitos, que permeia o CPC/15, que, após o ajuizamento da ação, o juiz deve citar o réu para comparecer a uma audiência de conciliação ou mediação, momento em que, não obtido um acordo, aí sim, sairá o demandado intimado para contestar.

O dispositivo regula, ainda, que a audiência somente não ocorrerá se ambas as partes assim se manifestarem ou se o direito controvertido for indisponível.[1] Portanto, aqui vale uma adaptação do provérbio: se só um não quer, vai ter audiência assim mesmo.

Todavia, os fatos engoliram a norma.

Por todo o país, juízes vêm dispensando essa audiência, sem que as partes manifestem desinteresse, mesmo quando se trata de direito disponível.

São inúmeros os exemplos. E por ser fato notório nos tribunais brasileiros, deixamos aqui de trazer casos concretos.

Claro que não se pode olvidar dos juízes que a aplicam. E, ao que parece, tem funcionado bem nesses locais. Mas não é desses que vamos nos ocupar. Eles aplicam a norma. O que nos interessa aqui são aqueles que não estão dando concretude ao art. 334 do CPC. Por que não aplicam? A resposta não é simples.

Voltemos, portanto, ao problema.

Por que muitos juízes não estão marcando a audiência de conciliação ou de mediação do art. 334, mesmo nas hipóteses em que ela deve ser realizada?

Algumas razões podem ser extraídas dos despachos/decisões que determinam a citação do réu para contestar, nos quais expressamente há a indicação de que a audiência não será realizada. São elas:

a) baixo número de acordos realizados nos processos;
b) falta de datas disponíveis para a audiência;
c) alto número de processos na vara;
d) possibilidade de realização de acordo a qualquer tempo;
e) impossibilidade de realização de acordo.

Todas elas são fatos que, como se percebe, não deram espaço à norma.

Analisemos.

Quanto ao primeiro motivo, seria, provavelmente, o mais coerente de todos, ainda que contrário à disposição legal.

É que o baixo número de acordos poderia justificar a inefetividade da norma, funcionando como elemento interpretativo de não aplicação normativa. É um pouco forçado, a norma permaneceria não sendo aplicada, mas seria coerente com a realidade.

A questão é que a maioria dos despachos/decisões que negam a audiência sob esse fundamento não trazem nenhum estudo para justificar a utilização desse argumento. É empírico.

Conversando com colegas – juízes e advogados – pelo Brasil há notícia do contrário: em alguns estados, o índice de acordos é relevante. Existe, a propósito, um estudo[2] feito pela professora Amanda Vieira, no Rio de Janeiro, que mostra que por lá é elevado o número de acordos nas varas que implementam a audiência. É o oposto do que se alega em diversas outras localidades para a não marcação de audiência.

Ademais, no último relatório “Justiça em Números”, do CNJ, há informação de que o número de sentenças homologatórias de acordos, na fase de conhecimento, é de 17,8%.[3] No relatório não há informação do montante deste percentual que se refere à audiência do art. 334. Mas por si só já se percebe que, ainda que não seja alto, é um número razoável para um país que somente agora, com o CPC/15, criou uma diretriz firme de priorizar métodos consensuais de solução dos conflitos.

Se 17,8% ainda está longe de ser um número ideal, somente com reiteração e esforço se conseguirá atingir um nível desejado de acordos. É preciso olhar para esses números como um incentivo e não como um problema.

Portanto, se o objetivo é implementar uma cultura conciliatória, deixar de aplicar um dispositivo que traduz à risca essa cultura é jogar contra o esforço que se tem feito para mudar a mentalidade litigiosa do brasileiro.

No tocante à falta de datas disponíveis, esse é um argumento que pode ser utilizado para toda e qualquer audiência.

Se for assim, as audiências de instrução também poderiam ser dispensadas por falta de calendário, determinando-se a produção de outros tipos de provas. Claro que se trata aqui de um argumento terrorista, até porque o objetivo desse ato processual é diverso, mas serve para mostrar como a justificativa dada para a não realização de audiência poderia se encaixar para outras situações.

Além disso, a falta de datas disponíveis é uma questão de gerenciamento interno da vara, da comarca ou da circunscrição judiciária, e, portanto, não pode ser transferido aos jurisdicionados o problema criado pelo próprio Poder Judiciário.

Diz-se, ainda, que o alto número de processos em tramitação na vara seria uma causa para dispensar a audiência de conciliação, pois seria necessário dar vazão aos processos.

O argumento é justo, mas caminha no mesmo sentido do fundamento anterior. Trata-se de causa aplicável não só à audiência de conciliação, mas a todo e qualquer procedimento que resultasse em um agendamento de tarefas do magistrado fora de seu gabinete. Por esse argumento, questões relacionadas ao gerenciamento interno da justiça se sobreporiam ao que determina a lei.

Há soluções para isso, por exemplo, a designação de conciliadores ou mediadores para a realização dessa primeira audiência, dispensando-se, assim, a participação do magistrado, na forma do art. 165 do CPC.[4]

E isso é feito. Em diversos estados, a audiência é realizada por conciliadores ou mediadores[5], pertencentes a um núcleo específico[6] direcionado exatamente para essa tentativa de acordo. Portanto, uma solução já existe, e vem sendo utilizada.

Aqui, contudo, em alguns casos, os fatos atropelaram os modelos teóricos: há relatos de que os núcleos também já estão assoberbados. O que fazer? Amplia-los? É preciso pensar em uma solução ou assumir que a norma, como escrita, não deu certo.

Mas há outra medida possível: a sessão conciliatória do art. 334 pode ser realizada por mediador extrajudicial. Essa possibilidade é expressamente prevista na Recomendação 28/2018 do CNJ, que sugere que o Poder Judiciário faça convênios com os cartórios extrajudiciais para que referida sessão seja por eles realizadas, desafogando, assim, ao menos em parte, a pauta dos tribunais.[7]

O próximo argumento dialoga diretamente com os dois anteriores: o acordo é possível de ser realizado a qualquer tempo, inclusive fora do ambiente judiciário, e, por isso, não há necessidade de uma audiência específica somente para isso.

De fato, a justificativa tem sentido. Mas dois pontos precisam ser examinados.

Em primeiro lugar, existe uma norma que determina a realização da audiência de conciliação. Bem ou mal, ela é válida e não poderia deixar de ser aplicada, a menos que fosse declarada sua inconstitucionalidade. Mas esse ponto é um guarda-chuva. Pode ser deduzido para confrontar qualquer dos argumentos utilizados para a não marcação da audiência.

O segundo ponto é mais importante. É que a experiência de conciliadores e mediadores certamente auxilia no momento da realização de um acordo.[8] A expertise faz muita diferença e trabalha a favor na hora de se chegar a um denominador comum. As partes podem acordar entre elas? Podem. Fora do ambiente judiciário? Podem. Mas o conciliador ou o mediador está lá exatamente para aumentar essa chance de acordo.

Por fim, a impossibilidade de realização de acordo. E aqui não se trata das hipóteses legais de dispensa da audiência, mas, sim, de um juízo de valor do magistrado no caso concreto.

Trata-se, admitimos, de justificativa que nos causou estranheza quando com ela nos deparamos. Todavia, já foi utilizada algumas vezes. Precisamos separá-la em duas frentes.

Na primeira, o juiz age como se tivesse uma bola de cristal para antever o que vai ocorrer na audiência de conciliação. Essa hipótese, com todo o respeito, nos parece dissociada de qualquer respaldo técnico, jurídico ou fático, porque se insere num juízo de valor pessoal do magistrado.

Já na segunda, o juiz age com base na sua experiência, dispensando a audiência porque um dos litigantes – em regra empresas com muitas demandas – reiteradamente se nega a fazer acordos. É essa justificativa que levou a norma a ser atropelada pelos fatos. É aqui que precisa ser encontrada uma solução.

Quanto a esse aspecto, vale destacar a posição dos renomados autores, Fernando Gajardoni, Luiz Dellore, André Roque e Zulmar Oliveira Jr., para os quais, quando uma das partes declinar a audiência, o juiz pode dispensá-la, com base na sua experiência e na valoração da manifestação de vontade dessa parte, de acordo com o art. 139, II e IV, do CPC.[9]

Seria interessante um estudo aprofundado, direcionado, para que se pudesse fazer um levantamento sobre a efetividade das audiências do art. 334, inclusive por unidade da federação, com o objetivo de, pela via legislativa adequada, rever a norma, se for o caso, ou, de outro lado, comprovar que a sua não aplicação causa prejuízos práticos à diretriz de solucionar consensualmente os conflitos, propugnada pelo Código de Processo Civil.

Esse estudo poderia, ainda, direcionar sua métrica para os tipos de processos em que os acordos são realizados, sobretudo porque, como se sabe, temas da fazenda pública têm um baixo percentual de solução consensual, enquanto questões de família têm uma maior chance de acordo.

Outra medida apropriada, que pode ser tomada em paralelo, seria uma resolução do CNJ estabelecendo que a audiência somente poderá ser dispensada se houver elementos concretos de que ela seria inócua. É uma saída, mas paliativa.

Ou aguardar que tribunais de justiças e tribunais regionais federais fixem precedentes, examinando o tema, enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não analisa a questão de forma definitiva.

Nesse ponto, vale trazer uma decisão paradigmática, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que, em IRDR, decidiu que:

“É obrigatória a realização de audiência preliminar a que alude o art. 334 do CPC, quando inexistente manifestação expressa de ambas as partes pelo desinteresse na composição consensual. – É nulo o processo, quando o juiz, diante da manifestação de apenas uma das partes, deixa de designar a audiência de conciliação prevista no art. 334 do CPC”.[10]

Vale destacar, por outro lado, o voto divergente no qual constou a seguinte afirmação:

“Nada obstante a interpretação literal do art. 334, §4º, CPC/15, a designação de audiência de conciliação ou mediação não se revela obrigatória, cabendo ao Juiz analisar a conveniência de sua realização, ponderando as circunstâncias da causa e a probabilidade de autocomposição. Destarte, a não realização de audiência não acarreta, em regra, nulidade processual”.

O acórdão não analisou os fatos aqui desenvolvidos neste trabalho. Resolveu a questão sob o ponto de vista normativo e principiológico. Mas já é uma diretriz importante.

Não é um tema fácil. Enquanto o art. 334 permanecer vigente com a atual redação, urge que os tribunais se manifestem de forma definitiva, em especial o STJ, para que se tenha a clareza da existência de nulidade na não aplicação do dispositivo, ou se, de outra banda, os fatos demonstram que a audiência é opcional, e, portanto, não há nulidade na sua não realização.

Até lá, a norma continuará sendo engolida pelos fatos.

[1] Não se desconhece que há vozes na doutrina sustentando a possibilidades de dispensa da audiência se apenas uma das partes não tiver interesse na sua realização. É possível ver uma compilação dessa divergência em: GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 519.

[2] Ainda pendente de publicação.

[3] Relatório “Justiça em Números”, p. 252/253, disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/05/justica-em-numeros-2024.pdf.

[4] Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.

[5] Há diferença técnica existente entre conciliação e mediação, mas, para os fins deste texto, ambas se assemelham porque o que importa, em verdade, é a realização ou não de um acordo.

[6]  A Resolução CNJ 125/2010 criou os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), no âmbito dos tribunais brasileiros, com o objetivo de fortalecer e estruturar unidades destinadas ao atendimento dos casos de conciliação.

[7] Resolução CNJ 28/2018 recomenda aos tribunais de justiça dos Estados e do Distrito Federal, a celebração de convênios com notários e registradores do Brasil para a instalação de centros judiciários de solução de conflitos e cidadania (Cejuscs).

[8] No mesmo sentido: NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 18. edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 922.

[9] GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 519/520.

[10] Processo nº 1.0000.17.027556-4/003, Rel. Desa. Juliana Campos Horta de Andrade.

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