O que está em jogo no julgamento do STF sobre a descriminalização do porte de maconha

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Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quarta-feira (6/3) a continuação do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659 (Tema 506 da repercussão geral), que discute a possibilidade de descriminalização do porte de drogas para consumo próprio no país. Iniciado em 2015, o julgamento foi retomado em agosto do ano passado, quando foi interrompido pelo pedido de vista do ministro André Mendonça.

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Até o momento, o placar está em 5 a 1 a favor da descriminalização do porte de maconha. Como o caso que originou o julgamento envolvia somente essa droga, os ministros entenderam que não seria o caso de expandir a discussão para todos os entorpecentes. Quanto à questão dos critérios para diferenciar usuários de traficantes, o plenário formou maioria de 6 a 0 pela necessidade de definição de parâmetros objetivos.

Os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber votaram pela descriminalização, com algumas diferenças. O ministro Cristiano Zanin foi o único a se manifestar contra.

Agora, além de Mendonça, faltam votar os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Nunes Marques e Cármen Lúcia. Como a ministra Rosa Weber antecipou seu voto antes de se aposentar no ano passado, o recém-empossado ministro Flávio Dino não participa do julgamento.

Caso concreto

O recurso em julgamento foi ajuizado pela Defensoria Pública de São Paulo questionando uma decisão Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de Diadema, em São Paulo, que manteve a condenação de um homem à pena de dois meses de prestação de serviços comunitários por ter sido pego com três gramas de maconha no presídio.

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No recurso, a Defensoria questionou a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, conhecida como Lei Antidrogas, que estabelece que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” será submetido às penas de prestação de serviços à comunidade, medida educativa de comparecimento a programa ou curso e advertência sobre os efeitos das drogas.

O principal argumento da Defensoria é que esse dispositivo da Lei Antidrogas contraria o princípio da intimidade e da vida privada, uma vez que portar drogas para uso pessoal não implicaria em danos a bens jurídicos alheios ou à saúde pública.

O defensor público paulista Rafael Munerati, em entrevista ao JOTA, lembra que ainda que o porte de drogas para uso pessoal não leve à prisão, ele ainda é caracterizado como crime. “É importante desestigmatizar o usuário de droga como um criminoso. Mesmo que não tenha mais prisão para o usuário, a pessoa ainda sofre todo o constrangimento de uma abordagem criminal”, diz o defensor.

Em 2015, no início do julgamento, o defensor defendeu em sustentação oral no Supremo que o usuário não deveria ser tratado pela lógica policial, mas sim no âmbito da saúde, educação e assistência social. “O tratamento punitivo manda direto para polícia e para o Judiciário, tomando tempo, trabalho e gerando gastos”, afirmou Munerati.

Já o então procurador-geral de Justiça de São Paulo, Márcio Fernando Elias Rosa, na sua sustentação oral, defendeu a constitucionalidade do artigo 28. “A lei não se preocupa em criminalizar o uso de entorpecentes e sequer admite a prisão em flagrante do mero usuário – o uso é fato não punível; a lei protege a saúde como bem jurídico e dá tratamento próprio para o usuário, dependente e autor do tráfico”, disse o procurador.

Interesse público

Desde que o julgamento foi pautado pela primeira vez em 2015, várias associações e entidades solicitaram participação como amicus curiae. Uma delas foi o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que é favorável à descriminalização de todas as drogas por considerar que a política atual de combate a elas é falha e provoca um encarceramento em massa.

“Com esse julgamento, o Supremo tem uma grande oportunidade de ser vanguardista na defesa dos direitos humanos e, de uma vez por todas, chancelar o ponto de que a guerra às drogas não é problema de política criminal, mas sim um problema muito maior, que vai desde questões de estrutura social a questões de saúde pública”, disse Priscila Pâmela, vice-presidente do IDDD, ao JOTA.

A posição é parecida com a adotada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), que também está listado como amigo da corte no julgamento. Dudu Ribeiro, coordenador do departamento de políticas de drogas do instituto, afirma que restringir a descriminalização somente à maconha não é ideal, mas já ajuda “no processo de desmontar essa lógica de proibição que causa mais danos do que protege vidas”.

Na visão de Ribeiro, o debate que está acontecendo no STF para a adoção de critérios mais objetivos para enquadrar as pessoas como traficantes ou usuários pode promover um avanço importante. “Isso não vai resolver o problema, mas vai deixar as pessoas menos suscetíveis – sobretudo as que têm menos poder econômico – à criminalização indevida”, diz o coordenador.

Do outro lado, pró-criminalização, está a Federação Amor-Exigente (FEAE), uma organização que apoia familiares de dependentes químicos. Em entrevista ao JOTA, Cid Vieira, o advogado que representa a federação, disse que a entidade é contra a descriminalização das drogas por entender que essa medida irá somente aumentar o número de usuários no país, dificultando ainda mais que o sistema de saúde consiga atender a todos.

Vieira também afirma que a FEAE é contra a definição de critérios específicos para diferenciar traficantes de usuários. Segundo o advogado, a legislação atual “já é clara” o suficiente e o Poder Judiciário “tem condições de identificar, caso a caso, quem é usuário e quem é traficante”.

Relembre os votos

O julgamento começou no Supremo em 2015, com o voto do relator, o ministro Gilmar Mendes. Inicialmente, Mendes votou pela descriminalização do porte de todo e qualquer tipo de droga. No seu voto, ele defendeu que as sanções previstas no artigo 28 da Lei Antidrogas fossem mantidas como sanções administrativas, deixando de lado os efeitos penais.

O ministro argumentou que “a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afigura-se excessivamente agressiva à privacidade e à intimidade”. Para ele, não seria necessário utilizar o direito penal para tentar controlar o consumo de drogas quando existem outras medidas eficientes de natureza não penal, como a proibição do consumo em lugares públicos e a limitação de quantidade compatível com o uso pessoal.

Na sequência, o ministro Fachin votou também pela inconstitucionalidade do artigo 28, mas restringiu seu voto à maconha, que foi a droga apreendida com o autor do recurso. Ele argumentou que atuar fora dos limites do caso poderia levar a intervenções judiciais desproporcionais.

Sobre a necessidade de estabelecer parâmetros objetivos que possibilitem a diferenciação entre o uso e o tráfico, Fachin afirmou que é atribuição legislativa determinar esses critérios. “Se o legislador já editou lei para tipificar como crime o tráfico de drogas, compete ao Poder Legislativo o exercício de suas atribuições, no qual defina, assim, os parâmetros objetivos de natureza e quantidade de droga que deve”, afirmou o ministro.

Terceiro a votar, o ministro Barroso acompanhou o voto de Fachin pela descriminalização do porte apenas da maconha, mas propôs que o porte até 25 gramas da droga ou a plantação de até seis plantas fêmeas sejam utilizados como parâmetros para diferenciar quem é usuário de quem é traficante até que o Congresso decida sobre o tema.

“O custo [da criminalização] tem sido imenso – em recursos drenados para a repressão, para o sistema penitenciário, nas vidas de jovens que são destruídas no cárcere, no poder do tráfico sobre as comunidades carentes – e os resultados têm sido pífios: aumento constante do consumo”, disse o ministro.

Após os três primeiros votos, o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em janeiro de 2017. Em novembro de 2018, o ministro Alexandre de Moraes, sucessor de Zavascki, devolveu o pedido de vista, mas só cinco anos mais tarde, em 2023, é que o tema voltou à pauta do Supremo.

Moraes, em agosto do ano passado, votou pela descriminalização do porte de maconha para consumo e propôs que seja presumido usuário aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 60 gramas de maconha ou até seis plantas fêmeas. A presunção, segundo Moraes, seria relativa, cabendo à autoridade policial verificar se há outros critérios caracterizadores de tráfico de entorpecentes, como a presença de itens como balança e cadernos de anotação.

Após o voto de Moraes, Gilmar Mendes pediu tempo para que pudesse revisar sua posição. Na sessão seguinte de julgamento do recurso, o ministro reajustou seu voto, restringindo a descriminalização do porte de drogas somente para a maconha. Quanto ao parâmetro que diferenciaria usuário de traficante, o relator defendeu que houvesse um critério definido e se mostrou aberto a utilizar as propostas dos ministros Barroso (25g) e Moraes (60g).

Na sequência, foi a vez de Cristiano Zanin votar. Até agora, o ministro foi o único que negou provimento ao recurso, votando pela constitucionalidade do artigo 28 da Lei Antidrogas. Ele, no entanto, foi favorável à ideia de que a Corte deva fixar critérios para diferenciar usuários de traficantes, sugerindo a quantidade de 25 gramas ou seis plantas fêmeas como parâmetro.

Após a manifestação de Zanin, o julgamento foi suspenso com o pedido de vista de Mendonça. Antes de encerrar a sessão, a ministra Rosa Weber, então presidente da Corte, decidiu adiantar seu voto. Acompanhando o relator, ela deu provimento ao recurso e votou pela descriminalização da maconha para uso pessoal. No caso concreto, ela votou pela absolvição do usuário.

Números

Durante o julgamento, o ministro Alexandre de Moraes disse que a Lei Antidrogas, de 2006, acertou em retirar qualquer pena de privação de liberdade para usuários de drogas. O problema, na visão do ministro, se deu na aplicação da norma, já que ela aumentou a discricionariedade dos policiais, do Ministério Público e dos juízes para definir quem é usuário e quem é traficante.

Moraes, no seu voto, trouxe uma análise de dados do departamento penitenciário brasileiro de 2007 a 2013, logo após a aprovação da Lei Antidrogas. Segundo o ministro, em 2007, de todos os presos, 15,5% estavam encarcerados por tráfico de drogas. Em 2013, esse número subiu para 25,5%. Além disso, nesse intervalo de tempo, o número total de presos no Brasil aumentou 80%.

“Em outras palavras, antes da nova lei, se 100 pessoas estavam presas, 15,5 eram por tráfico. Em 2013, essas 100 pessoas passaram a ser 180. E desses 180, 46 por tráfico. Seis anos após a aplicação da lei, se triplicou o número de presos por tráfico de entorpecentes no Brasil”, disse Moraes.

O ministro também apresentou um estudo feito pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) que mostrou que a falta de definição de um critério quantitativo para diferenciar usuário de traficante acabou causando uma injustiça entre pessoas que carregavam a mesma quantidade de droga.

“Na capital de São Paulo, se considera tráfico, em média, o porte de 33g de cocaína, 17g de crack e 51g de maconha. No interior do estado, 20g de cocaína, 9g de crack e 32g de maconha. Não é possível que haja tanta variação dentro do mesmo estado”, disse Moraes.

Experiência internacional

Barroso, em seu voto, afirmou que a política mundial de criminalização e repressão às drogas fracassou. Segundo ele, em vez de reduzir a produção e o consumo, esse método acabou resultado em “um poderoso mercado negro e permitiu o surgimento ou o fortalecimento do crime organizado”.

Segundo o ministro, quase todo o mundo democrático e desenvolvido está aos poucos abrandando a sua política em relação às drogas. Barroso citou o exemplo dos Estados Unidos, que lideraram a guerra às drogas, mas hoje já descriminalizaram o porte para uso recreativo e medicinal em vários estados.

Na Europa, o ministro destacou a experiência de Portugal, onde o porte de drogas para uso pessoal é descriminalizado há mais de uma década, e da Espanha, em que a lei não criminaliza o consumo de drogas, mas proíbe o uso em público. No caso português, pessoas com porte de até 25 gramas de maconha não são consideradas traficantes. Na Espanha, o limite é de até 100 gramas.

Segundo Barroso, a experiência portuguesa ao longo desses anos mostrou que o consumo geral de drogas não disparou, na verdade, ele até diminuiu entre os jovens. Ao longo desse período, houve também um aumento do número de dependentes químicos em tratamento e uma redução no número de usuários infectados pelo vírus HIV.

Na América Latina, o ministro lembrou que o próprio Uruguai se tornou, em 2013, o primeiro país do mundo a legalizar a produção, comércio e consumo da maconha. Por lá, os indivíduos podem portar até 40 gramas de maconha e cultivar domesticamente até 6 plantas fêmeas de cannabis. Barroso também mencionou que na Colômbia e na Argentina a descriminalização veio por decisão do Tribunal Constitucional e da Suprema Corte, respectivamente.

“Aos poucos, o mundo vai se dando conta de que são necessários meios alternativos à criminalização para combater o consumo de drogas ilícitas. Cabe relembrar aqui que descriminalizar não significa tornar o uso lícito nem muito menos incentivar o consumo”, afirmou o ministro.

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