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Em 20 de dezembro deste ano, a maior reforma constitucional do Poder Judiciário da história recente completa 20 anos. A Emenda Constitucional 45/2004 foi promulgada com o objetivo de dar maior eficiência e celeridade à justiça. Para tanto, criou diversos mecanismos, entre os quais o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as Súmulas Vinculantes, e a Repercussão Geral. Ademais, acrescentou o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal e conferiu a possibilidade de aprovação de tratados e convenções internacionais com procedimento que lhes dê equivalência a uma emenda constitucional.
O instituto da Repercussão Geral foi formulado como uma resposta ao vertiginoso volume de recursos que chegavam ao Tribunal[1]. A ideia era gerar um filtro para selecionar apenas os processos de maior relevância para efetiva análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – conceituada de forma aberta, a repercussão geral deveria selecionar questões relevantes sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa – enquanto, para os demais, prevaleceria a solução fornecida pela instância inferior.
A prática se mostrou, no entanto, muito mais complexa do que a teoria. Apesar de a sua criação completar 20 anos em 2024, a Repercussão Geral só começou a ser aplicada de fato em maio de 2007, quando a Emenda Regimental 21/2007 foi aprovada[2]. Em dezessete anos e quinze dias, nada menos do que 1287 teses foram analisadas pelo Supremo, número que inclui tanto as que reconheceram a repercussão geral da matéria quanto aquelas que declararam a sua infraconstitucionalidade[3].
Durante anos, a sistemática da Repercussão Geral foi diagnosticada como um fracasso[4]. Por alguns, porque não impediu que o número de recursos submetidos à análise do Supremo ao longo dos anos continuasse a crescer[5]; para outros, porque a seletividade do Tribunal deixaria a desejar, e temas demais teriam a sua repercussão geral reconhecida, de forma a banalizar o instituto[6]. Sem dúvida, o maior problema relacionado à sistemática da Repercussão Geral nas últimas décadas é o mesmo do qual padecia a atuação do Tribunal como um todo: a morosidade em proferir decisões[7].
Por um lado, isso fazia com que centenas de casos permanecessem por longos períodos aguardando a análise da repercussão geral. Por outro, milhões de processos sobrestados para aguardar o julgamento das repercussões gerais já reconhecidas tinham suas resoluções adiadas pela dificuldade de se equacionar a pauta do Supremo. Quando a Repercussão Geral completou dez anos de prática, em 2017, aproximadamente 300 temas aguardavam julgamento e, tomando-se a média de tempo dos casos já julgados, levaria ao menos oito anos para que todos fossem julgados todos[8].
Mas a sistemática da Repercussão Geral sofreu duas alterações fundamentais em sua segunda década de existência, que alteraram profundamente o quadro descrito em 2017. O primeiro foi sem dúvida a ampliação do Plenário Virtual do Supremo, um game changer para o Tribunal como um todo, e não apenas para o julgamento dos Recursos Extraordinários com repercussão geral reconhecida.
O deslocamento de quase a totalidade dos julgamentos colegiados para o Plenário Virtual – atualmente, são 98% dos julgamentos do Tribunal[9] – aumentou exponencialmente a capacidade do Supremo, e consequentemente diminuiu o tempo de espera para a resolução dos casos. Em 2023, o Supremo julgou quase 50 casos com Repercussão Geral[10]; até 2017, a média não ultrapassava os 30 casos[11]. O acervo do Tribunal segue caindo, apesar de um constante crescimento da chegada de novos processos.
Esse aumento na eficiência do STF, que aumentou o número de teses de repercussão geral, combina-se com uma segunda alteração relevante para a sistemática, essa incluída pelo Código de Processo Civil de 2015: a possibilidade de propositura de reclamações em face do descumprimento de teses de repercussão geral Embora a jurisprudência defensiva do Supremo tenha criado entraves ao uso da reclamação para esse fim[12], a existência do instrumento foi um passo importante na consolidação da repercussão geral como um uniformizador de jurisprudência, além de uma equiparação expressa do status das repercussões gerais com o das ações de controle concentrado.
A Repercussão Geral aos 20, portanto, já não será o mesmo instituto que era aos 10 anos. A aproximação entre os controles difuso e concentrado, o aumento da capacidade e da eficiência do Supremo e a consolidação do sistema de precedentes vinculantes no ordenamento brasileiro causaram profundas transformações.
Outra grande inovação da Emenda Constitucional 45/2004 foi a inserção do 3° ao art. 5° da Constituição Federal, que previa unicamente os parágrafos 1° e 2°. Já trazia uma verdadeira cláusula de abertura ou norma geral de recepção em relação aos tratados internacionais sobre direitos humanos. Doutrina de envergadura, liderada por Cançado Trindade[13] e Flávia Piovesan[14], a quem nos filiamos, há muito defende sejam estes tratados considerados hierarquicamente como normas constitucionais. Na jurisprudência do STF, porém, houve um iter de construção iniciado em 1977, com o Recurso Extraordinário (RE) 80.004/SE[15], que fixou entendimento jurisprudencial segundo o qual os tratados internacionais de direitos humanos posicionam-se hierarquicamente como lei ordinária. O tema foi objeto do Embora o Relator, o Ministro Xavier de Albuquerque, tenha elaborado voto a favor da primazia dos tratados, a maioria do Tribunal acolheu a tese da legalidade.
Já sob a vigência da Constituição Federal de 1988, o STF voltou a se debruçar sobre a temática ao julgamento do habeas corpus (HC) 72.131/RJ[16], relativo à prisão civil de depositário infiel em contrato de alienação fiduciária em garantia. Foi reafirmada a tese da legalidade, além de especificamente enquadrar o art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) como norma geral e, portanto, inidônea a revogar a nacional específica (Decreto-Lei n.º 911/69) a regular a matéria. Assim, o art. 5°, §2°, permaneceu sendo interpretado pelo STF para conferir hierarquia legal aos tratados internacionais de direitos humanos, como decidido no RE 253071[17].
Em 2004, sobreveio a Emenda Constitucional 45, que previu um procedimento solene, perante o Congresso Nacional, com quorum igual ao de aprovação de Emendas Constitucionais (EC), para a internalização dos tratados internacionais sobre direitos humanos no país. Passou a haver, então, a coexistência de tratados e convenções sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil anteriormente à EC 45/2004, como a CADH, e posteriormente à referida Emenda e, por consequência, aprovados segundo os seus termos. Os primeiros, na linha aqui defendida, seriam materialmente constitucionais[18], ao passo que os segundos, material e formalmente constitucionais. Este, contudo, não é o entendimento do STF.
Até o momento, foram aprovados com este procedimento os seguintes tratados, que possuem, por conseguinte, natureza constitucional material e formalmente – equivalentes a Emendas Constitucionais: Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinada em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, concluído no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), celebrado em Marraqueche, em 28 de junho de 2013, e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmada pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013.
Apesar de mantido o entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto à estatura legal dos tratados internacionais de direitos humanos, prosseguiu-se no amadurecimento do tema, até que o novo pronunciamento em 2008, momento em que superou a antiga visão correspondente à natureza legal dos referidos tratados[19]. Passou-se a entender que os tratados internacionais de direitos humanos têm status supralegal, ou seja, acima da legislação e abaixo da Constituição, como decidido no RE n.° 466.343[20], no qual se discutiu a possibilidade de prisão civil do depositário infiel em decorrência de contrato de alienação fiduciária em garantia.
Em que pese a identificação de duas teses ou correntes – a da constitucionalidade e a da supralegalidade – foi firmada a jurisprudência[21] que acata a supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil antes da EC/45; logo, sem o procedimento que os equipara às emendas constitucionais. O julgamento resultou na edição da Súmula Vinculante 25 pelo STF em 2009, com o seguinte teor: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”.
O resultado evidencia uma louvável alteração de postura em prol dos direitos humanos, mas uma tímida relação com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). Foi a primeira vez que se mencionou o controle de convencionalidade no âmbito do STF, embora por meio de um voto específico de um dos Ministros – Celso de Mello –, assim como inicialmente ocorreu na Corte Interamericana de Direitos Humanos, mediante o voto de García Ramírez. Em paralelismo, pode-se dizer, por conseguinte, que assim como o tema foi paulatinamente ganhando espaço e desenvolvimento no SIDH, há um percurso fértil a ser percorrido na seara interna brasileira.
Apesar da inovação da EC 45/2004 estar prestes a completar 20 anos, vislumbramos a ainda necessária compreensão da materialidade constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, postura a ser fomentada e, quiçá, objeto de aprimoramento constitucional em caminho já pavimentado pela aniversariante.
[1] Promulgada há 15 anos, Reforma do Judiciário trouxe mais celeridade e eficiência à Justiça brasileira. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=434106&ori=1, acesso em 16/05/2024.
[2] Repercussão Geral – Vigência. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=vigencia, acesso em 16/05/2024.
[3] Teses de Repercussão Geral – atualizado até 16/05/2024. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/repercussaogeral/teses.asp, acesso em 16/05/2024.
[4] BARROSO, Luís Roberto. REGO, Frederico Montedonio. Balanço de dez anos da Repercussão Geral. Disponível em: https://www.jota.info/especiais/balanco-de-dez-anos-da-repercussao-geral-07022018, acesso em 16/05/2024.
[5] BARROSO, Luís Roberto. REGO, Frederico Montedonio. Como salvar o sistema de repercussão geral: transparência, eficiência e realismo na escolha do que o Supremo Tribunal Federal vai julgar. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, dez.2017, p. 695-713.
[6] CRUZ, Gabriel Dias Marques da. STF pode levar 10 anos para zerar estoque da repercussão geral. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-fev-08/stf-levar-10-anos-zerar-estoque-repercussao-geral/, acesso em 16/05/2024.
[7] BARROSO, Luís Roberto. REGO, Frederico Montedonio. Como salvar o sistema de repercussão geral: transparência, eficiência e realismo na escolha do que o Supremo Tribunal Federal vai julgar. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, dez.2017, p. 695-713.
[8] BARROSO, Luís Roberto. REGO, Frederico Montedonio. Balanço de dez anos da Repercussão Geral. Disponível em: https://www.jota.info/especiais/balanco-de-dez-anos-da-repercussao-geral-07022018, acesso em 16/05/2024.
[9] HORBACH, Beatriz Bastide. Como funciona e o que esperar do Plenário Virtual do STF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-28/observatorio-constitucional-funciona-esperar-plenario-virtual-stf/, acesso em 16/05/2024.
[10] Em balanço, presidente do STF reforça valorização de decisões colegiadas em 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=522869&ori=1#:~:text=Em%202023%2C%20101.970%20decis%C3%B5es%20foram,contra%20decis%C3%B5es%20de%20outras%20inst%C3%A2ncias., acesso em 16/05/2024.
[11] BARROSO, Luís Roberto. REGO, Frederico Montedonio. Balanço de dez anos da Repercussão Geral. Disponível em: https://www.jota.info/especiais/balanco-de-dez-anos-da-repercussao-geral-07022018, acesso em 16/05/2024.
[12] A reclamação constitucional que alega desrespeito a entendimento do Supremo Tribunal Federal em recurso extraordinário com repercussão geral só pode ser admitida depois de esgotadas as instâncias ordinárias, o que o STF definiu que só ocorre após a interposição do Recurso Extraordinário. Cf.
[13] Como Consultor Jurídico do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores do Brasil), Cançado Trindade propôs à Assembleia Constituinte o teor do artigo 5º, §2º, da Constituição Federal de 1988. Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional. Direito e Democracia, v. 1, n. 1, p. 44, 2000.
[14] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 19. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 138-171.
[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 80004/SE. Relator: Min. Xavier de Albuquerque, j. 1°.06.1977, DJ 29.12.1977.
[16] Com a seguinte ementa: “‘Habeas corpus’. Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel. – Sendo o devedor, na alienação fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva contida na parte final do artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988. – Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no § 7º do artigo 7º da Convenção de San José da Costa Rica. ‘Habeas corpus’ indeferido, cassada a liminar concedida”. Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Habeas Corpus 72131/RJ. Relator: Min. Moreira Alves, j. 23.11.1995, DJ 1°.08.2003.
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma). Recurso Extraordinário 253071/GO. Relator: Min. MOREIRA ALVES, j. 29.05.2001, DJ. 20.06.2001.
[18] Nesse sentido e defendendo que o Brasil termina por adotar um sistema misto, PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p.73.
Embora sustentemos a natureza materialmente constitucional da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o entendimento prevalecente no STF é em prol da sua supralegalidade. Vide BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma). Habeas Corpus 94013/SP. Relator: Min. Carlos Britto, j. 10.02.2009, DJe 13.03.2009.
[19] Cf. MAUÉS, Antonio Moreira. Supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Diálogo Judicial. In: MAUÉS, Antonio Moreira; MAGALHÃES, Breno Baía (org.). O cumprimento das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos: Brasil, Argentina, Colômbia e México. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 5.
[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 466.343-1/SP. Relator: Min. Cezar Peluso, j. 03.12.2008, DJe 04.06.2009.
[21] No mesmo sentido o RE 349703/RS e o HC 87585/TO, julgados na mesma ocasião: BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 349703/RS. Relator: Min. Carlos Britto, Redator para o acórdão: Min. Gilmar Mendes, j. 03.12.2008, DJ 04.06.2009; e BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Habeas Corpus 87585/TO. Relator: Min. Marco Aurélio, j. 03.12.2008, DJe 25.06.2009.