PEC da autonomia do BC falha nas suas boas intenções

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A PEC 65/2023 almeja conferir ao Banco Central autonomia plena, em seguimento às reformas que culminaram na Lei Complementar 179/2021. A imprensa tomou-a a valor de face, exaltando-lhe a intenção de tornar o BC empresa pública, sujeita ao regime jurídico privado, com autonomia e submissão ao controle do Congresso Nacional, auxiliado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Contudo, um olhar detido revela que os seus preceitos pouco contribuem para aquele fim, já que se limitam a replicar normas constitucionais ou legais já existentes, e a sua única inovação comporta ressalvas.

A PEC 65 insere-se na quarta onda de reformas do BC ocorridas após a década de 1970. Nesse período, os bancos centrais e os supervisores bancários assumiram a sua estrutura institucional atual. No plano internacional, consolidou-se o regime de metas de inflação, operacionalizado pelas taxas de juros, surgiram os princípios da Basileia de supervisão bancária e de capital, e firmaram-se as práticas de gestão de crises bancárias, individuais e sistêmicas, sobretudo após a crise financeira global.

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No Brasil, a primeira onda reformista ocorreu na década de 1980, com o fim do financiamento do Banco do Brasil pelo BC e a instituição de um regime de reestruturação bancária moderno para a época. A segunda rodada veio na década de 1990 com o Plano Real e o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), que racionalizaram a composição do Conselho Monetário Nacional (CMN) e ampliaram as ferramentas de gestão de crises bancárias. A terceira fase teve lugar em anos recentes com a atualização do mandato legal do BC, a atribuição de autonomia pessoal aos seus dirigentes e o aperfeiçoamento da sua relação com o Tesouro.

Essa última fase avançou na construção de um regime de salvaguardas da atuação do BC contra interferências indevidas dos poderes político e econômico. Para tanto, a LC 179 proclamou a sua autonomia funcional, financeira e administrativa e transformou-o em autarquia de natureza especial sem vinculação ministerial. Ademais, aperfeiçoou os seus freios e contrapesos externos, atribuindo aos seus dirigentes mandatos fixos, escalonados e não coincidentes com o do presidente da República, além de instituir critérios de elegibilidade e destituição dos membros da diretoria. Anteriormente, a Lei 13.820, de 2019, já definira um regime efetivo de recapitalização do BC pelo Tesouro e determinara que a valorização ainda não realizada dos ativos internacionais do BC fosse apartada em reserva contábil.

Apesar desses avanços, restam ainda empecilhos à concretização da abrangente autonomia proclamada em lei, cumprindo ao Congresso Nacional estabelecer as salvaguardas necessárias para lhe dar concretude. O estado-da-arte da matéria está condensado no Código de Transparência de Bancos Centrais e na política de avaliação de salvaguardas do Fundo Monetário Internacional (FMI), esta destinada a averiguar a aptidão dos bancos centrais a gerir com segurança os recursos recebidos do Fundo. São esses documentos que baseiam as considerações a seguir.

A principal barreira restante à autonomia funcional do BC é a sua subordinação ao poder normativo do CMN, órgão de composição majoritariamente política e de objetivos legais divergentes dos do BC. Outro obstáculo é a sujeição das decisões do BC à revisão do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), onde o setor privado detém metade dos assentos, seguido do Ministério da Fazenda e da Comissão de Valores Mobiliários. Permitir ao setor privado revisar, junto com o governo, as decisões do BC a ele desfavoráveis vai de encontro ao fim precípuo de resguardá-lo da interferência dos poderes político e econômico.

Da perspectiva orçamentária, tem relevo o BC não possuir receitas vinculadas às suas despesas e de a proposta e a execução do seu orçamento estarem sujeitas ao controle do Executivo. O resultado são dotações orçamentárias insuficientes e contingenciamentos de despesa pela escassez de receitas. Mesmo o orçamento das operações de política monetária precisa da aprovação do CMN, com impacto na flexibilidade do BC para intervir nos mercados visando à estabilidade de preços.

As demonstrações financeiras do BC também passam pelo escrutínio do CMN. Ademais, o seu controle externo incumbe a órgãos igualmente políticos: o Congresso Nacional, com o auxílio do TCU, e a Presidência da República, por meio da Controladoria-Geral da União (CGU). Bancos centrais autônomos prestam contas à sociedade e aos poderes constituídos mediante auditorias independentes, além da publicação de relatórios periódicos e da participação dos seus dirigentes em audiências públicas, mecanismos presentes no regime de transparência do BC.

Administrativamente, o BC sujeita-se às políticas de gestão da administração central, o que lhe limita a liberdade de organizar os seus serviços conforme as suas necessidades. Para contratar pessoal, por exemplo, depende da aprovação do governo tanto para realizar concursos públicos como para nomear os aprovados.

Aos embaraços diretos à autonomia do BC, soma-se a sua estrutura de governança desprovida de freios e contrapesos internos. A sua diretoria acumula as funções de formular políticas, implementá-las e supervisionar a sua implementação. Não há uma maioria de membros independentes que exerça vigilância sobre os que detenham funções executivas, ou um conselho de administração com maioria não executiva que formule políticas e supervisione a sua implementação pela diretoria.

A solução destas fragilidades institucionais passa, primeiro, por subtrair o BC da esfera normativa do CMN e por dotá-lo de uma instância recursal interna, em substituição ao CRSFN. Segundo, por vincular as receitas do BC às suas despesas e por afastar o poder do CMN de aprovar as suas demonstrações financeiras e o orçamento das operações de política monetária. Terceiro, por eximir o BC das diretrizes de gestão da administração central e do controle externo da CGU e do Congresso Nacional, assistido pelo TCU. Por fim, passa por dotar o BC de um conselho de administração de maioria independente à parte a atual diretoria, ou por acrescer à diretoria uma maioria de membros sem funções executivas.

A PEC 65 passa ao largo de qualquer uma dessas soluções. Com efeito, a maioria das suas disposições são reiterações de normas constitucionais ou legais já em vigor. O primeiro grupo inclui a reafirmação da competência do Congresso Nacional, auxiliado pelo TCU, para exercer o controle externo do BC, e a reiteração da autoridade do legislador para disciplinar a estrutura institucional do BC e o seu relacionamento com o Tesouro. O segundo grupo compreende a declaração de ausência de vinculação ministerial e a proclamação de ampla autonomia para o BC, fadada a continuar sem efetividade plena na ausência de salvaguardas adequadas.

A inovação da PEC fica por conta de transformar a autarquia em empresa pública, medida desnecessária e inadequada. Primeiro, porque a remoção dos entraves à autonomia do BC é compatível com a forma de organização autárquica, consoante o desenho que lhe deem a Constituição e a lei. Segundo, porque há dúvidas sobre se uma empresa pública pode exercer poder de polícia, com possíveis reflexos para as tarefas de supervisão do BC, assim como sobre o regime jurídico que se aplicaria aos atuais servidores, gerando riscos de litígio e de perda expressiva de pessoal.

A PEC 65 tem o mérito de retomar o debate sobre a aprimoração institucional do BC, a par da estatura internacional do Brasil, atual presidente do G20. À luz da presente discussão, é de se esperar que os congressistas retornem à prancheta e proponham um conjunto de alterações constitucionais e legais eficaz e harmônico à luz das práticas internacionais consolidadas e que permita à sociedade debruçar-se todos os ângulos da reforma proposta.

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O autor deste artigo expressa-se em caráter pessoal.

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