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A desigualdade de gênero é uma realidade mundial que precisa ser enfrentada, podendo ser considerada um problema crônico social enraizado desde sempre na sociedade. A estrutura social atual ainda é vítima do patriarcado, que sistematiza a sociedade colocando o homem sempre em posições superiores às mulheres com a divisão estritamente estabelecida entre os gêneros.
Dessa forma, a mulher é reiteradamente ligada aos trabalhos de cuidado e estereótipos ligados a gentileza, delicadeza e dependência, por exemplo[1]. Ainda, é relevante mencionar que a renda média da mulher é menor e provém exclusivamente do trabalho[2], enquanto a dos homens inclui frutos de investimentos e dividendos.
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Tal fenômeno resulta na aplicabilidade de algo que pode desrespeitar os princípios fundamentais elencados pela Constituição Federal de 1988, em destaque ao direito à igualdade, localizado no artigo 5º.
O Direito Tributário oferece profunda contribuição para a promoção de igualdade de gênero, visto que é possível que se tenha a promoção de tratamento desigual àqueles que já estão em situações de inferioridade, dessa forma, o princípio da igualdade se interliga com os princípios da capacidade contributiva, da isonomia, da vedação do confisco e da seletividade[3].
Esses princípios foram criados a partir da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana que é fundante da sociedade e principalmente da estrutura do Estado Democrático de Direito e Social[4].
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Porém, tendo em vista que o sistema tributário também incide em práticas de consumo, ele acaba traduzindo características regressivas e, dessa forma, a carga tributária acaba incidindo de forma desigual e injusta entre os indivíduos, de modo que a população mais vulnerável, como as mulheres, acaba pagando mais tributos, o que agrava a desigualdade de gênero.
Ainda é possível dizer que a interseccionalidade[5] pode intensificar ainda mais a alta tributação sobre as mulheres, relacionando características de classe social e raça, por exemplo. Ademais, a imposição social determina que com os estereótipos elencados às mulheres, tornam-se elas as maiores consumidoras, por exercerem o trabalho de cuidado.
O pink tax
O termo pink tax (ou “taxa rosa”, em tradução livre), embora não possa ser considerada uma taxa de fato, diz respeito aos valores embutidos nos produtos voltados ao público feminino que não podem ser deduzidos do valor total. De outro modo, o pink tax trata dos valores adicionais pagos por mulheres na compra de artigos semelhantes àqueles adquiridos por homens por preços mais baixos.
A mera existência desta taxa pressupõe uma discriminação de gênero escancarada, visto que a diferença entre os preços é completamente inexplicável, além de violar os princípios constitucionais que promovem a igualdade de gênero e a dignidade humana.
O sistema tributário brasileiro, orientado pelo princípio da seletividade, se encarrega de valorizar a utilidade social de um bem ao estabelecer alíquotas específicas para cada tipo de produto de acordo com sua essencialidade. Quanto mais essencial, menor a alíquota respectiva a este produto[6].
Em face do princípio da seletividade, o chamado tampon tax, fenômeno específico do pink tax que se refere à tributação sobre absorventes e outros produtos relacionados à saúde menstrual, tidos como produtos essenciais para pessoas que menstruam, surge para comprovar que nem sempre a aplicação deste princípio é eficiente.
A Constituição de 1988 prevê a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (Art. 1º, III CF). Levando em conta o consolidado entendimento de que o Estado é responsável por assegurar o mínimo à existência humana digna, é bastante natural e correto presumir que o Estado deveria também se prontificar para fornecer os produtos e estrutura necessários para que as mulheres pudessem se manter seguras e saudáveis durante o período menstrual. Afinal, a menstruação é um fator biológico essencial à saúde e desenvolvimento da mulher e deve ser entendida como uma necessidade física inerente que deve ser suprida pelo Estado.
Ademais, o princípio da capacidade contributiva é outro princípio de suma importância do qual deriva o princípio da seletividade e que prevê a aplicação de carga tributária mais pesada sobre aqueles que concentram mais riqueza e são, portanto, mais capazes de contribuir.
A fim de observar adequadamente este princípio, as normas tributárias se prestam a levar em consideração as desigualdades sociais, prevendo tratamentos proporcionais à capacidade econômica individual (Art. 145, §1º CF).
Ainda hoje as mulheres recebem salários menores quando comparadas a homens que desempenham as mesmas funções, além de serem menos prováveis de ocuparem cargos de prestígio ou de hierarquia superior.
Em adição a esta situação, é sabido que, desde sempre, o gênero influenciou os papéis sociais e as funções atribuídas a homens e mulheres. No mais, os trabalhos braçais e que envolviam maior uso da força eram de responsabilidade dos homens, enquanto as tarefas domésticas e mais delicadas eram dadas às mulheres.
No cenário atual, embora essa concepção clássica das atividades exclusivas ao gênero tenha sido superada com a entrada da mulher no mercado de trabalho, a realidade é de que muitas mulheres permanecem sendo responsáveis pelos filhos, pela casa e por outras atividades semelhantes.
É evidente que a desigualdade salarial e a divisão sexual do trabalho criam um cenário no qual as mulheres brasileiras têm menos acesso à renda e sofrem uma carga tributária mais pesada, já que o consumo é fortemente tributado.
Para que a tributação seja exercida em observância aos princípios da capacidade contributiva e da seletividade, é fundamental a adoção de medidas que possam atuar de maneira a combater a desigualdade de gênero. Além de promover coesão no sistema tributário, essas medidas devem se orientar a reforçar a importância do papel da mulher na sociedade.
A Reforma Tributária e a inclusão da perspectiva de gênero
A Reforma Tributária, por sua vez, deve levar em conta a justa redistribuição da carga tributária, para que se promova a igualdade e a capacidade contributiva, princípios previstos na atual Constituição[7].
Cabe aqui destacar que até então alguns produtos específicos não estavam recebendo a devida atenção nas propostas apresentadas para a Reforma Tributária[8]. Porém, através do grupo de pesquisa sobre tributação e gênero da FGV, que desempenha um papel importante na busca pela igualdade de gênero dentro do âmbito tributário, buscou-se a oportunidade de apresentar propostas ao Senado Federal e, após várias tentativas, foi aprovada a inclusão de produtos básicos de saúde menstrual no rol daqueles que podem ter alíquota reduzida em até 60% ou até zerada.
Além disso, também foi aprovada a proposta que sugeria que os benefícios tributários deveriam passar por uma avaliação a cada cinco anos na promoção da igualdade entre homens e mulheres, também através da Emenda Constitucional 132.
Segundo Luiza Menezes, “isso significa que, pela primeira vez na história, conseguimos incluir na Constituição que a igualdade de gênero é um critério para avaliar medidas tributárias, como os regimes especiais”[9]. A pauta pink tax é importante de ser discutida, pois é um fenômeno ligado ao fato de que as mulheres são as pessoas mais expostas à desigualdade gerada e, por consequência, ocorre o afastamento do acesso a produtos essenciais.
Conclusão
Diante dos fatos apresentados, conclui-se que não é possível se abster das questões sociais e apenas aplicar a norma sem refletir sobre sua incidência e extensão. Ao longo deste trabalho torna-se nítida a conclusão de que as mulheres são as mais afetadas pela alta tributação. É por esta razão, inclusive, que não é possível promover a Reforma Tributária sem ouvir e atender as necessidades desta parcela da população, justamente para que as decisões sejam equiparadas entre gêneros.
[1] BONFIM, Mariana Lopes da Silva. A Ausência do Olhar de Gênero: qual o caminho para efetivação dos direitos humanos das mulheres no sistema de justiça barsileiro. Curitiba: Tirant Lo Blanc, 2023. 124 p.
[2] DANTAS, Isabella. Pink Tax: Caminhos para o enfrentamento da desigualdade de gênero. 2023. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília. Disponível em: https://bdtd.ucb.br:8443/jspui/bitstream/tede/3249/2/IsabellaDantasDissertacao2023.pdf
[3] SANTOS, Maria Angélica dos. Sistema tributário feminista: uma reestruturação necessária: como organizar um sistema tributário que respeite a dinâmica feminista? 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/sistema-tributario-feminista-uma-reestruturacao-necessaria-08072021. Acesso em: 22 jul. 2024.
[4] PIGNATARO, Onízia de Miranda Aguiar. “Tributo” indireto às mulheres: apesar de a população feminina ser maioria no país, na política ainda tem uma baixa representação. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/389214/tributo-indireto-as-mulheres. Acesso em: 15 abr. 2024
[5] HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo social, revista de sociologia da USP, vol. 26, n.1, p. 61-73, Junho, 2014: “A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (Bilge, 2009, p. 70)”.
[6] QUADROS, Ricardo. O Princípio da Seletividade no ICMS sobre a Energia Elétrica. Associação Brasileira de Direito Financeiro. 05 de março de 2015: “O Princípio da Seletividade é aquele que determina que o tributo deve obedecer ao critério de essencialidade do produto ou serviço, sendo inversamente proporcional a sua importância, isto significa que quanto mais essencial for o produto para a coletividade menor será a alíquota imposta sobre sua base de cálculo.” Disponível em: https://abdf.com.br/artigos/o-principio-da-seletividade-no-icms-sobre-a-energia-eletrica/. Acesso em: 15 abr. 2024
[7] TATHIANE PISCITELLI (São Paulo). Reforma tributária e desigualdade de gênero. 2020. Disponível em: https://direitosp.fgv.br/sites/default/files/2021-09/reforma_e_genero_-_final_1.pdf. Acesso em: 15 abr. 2024.
[8] MENEZES, Luiza Machado de Oliveira. Tributação e desigualdades de gênero e raça: vieses de gênero na tributação sobre produtos ligados ao trabalho de cuidado e à fisiologia feminina. 2023. 137 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023.
[9] MENEZES, Luiza Machado de O. Memória, Afeto e Esperança: nossa História de Luta pela Inclusão da Perspectiva de Gênero na Reforma Tributária (Emenda Constitucional n. 132/2023). Revista Direito Tributário Atual v. 56. ano 42. p. 731-751. São Paulo: IBDT, 1º quadrimestre 2024.