Precisamos de uma lei do processo estrutural?

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Recentemente, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, constituiu comissão de Juristas para elaborar anteprojeto de lei para dispor sobre o “processo estrutural”[1].

Segundo o Plano de Trabalho apresentado pelo Relator da Comissão, em reunião de 19/6/2024, o anteprojeto que se pretende redigir observará as seguintes diretrizes: i) texto curto, ii) que seja operado em conjunto com o Código de Processo Civil e com o regramento próprio do processo coletivo (Lei 7.347, de 1985 [LACP], e Lei 8.078, de 1990 [CDC]), e iii)  aproveitamento de dispositivos específicos dos PLs 5.139/09, 8.058/2014 e 1.641/21, que sejam relacionados ao contexto do processo estrutural (concebido primordialmente como ação civil pública, mas com aplicação a ADPFs de caráter estrutural, conforme âmbito de aplicação cogitado para o anteprojeto no aludido plano de trabalho).

No seu clássico texto publicado em 1979, o professor Owen Fiss identificava, nos Estados Unidos, um novo padrão de atividade jurisdicional, por ele denominado de “processo judicial de caráter estrutural”, voltado a garantir a implementação das estruturas sociais. Em suas palavras, “o processo judicial de caráter estrutural é aquele no qual um juiz, enfrentando uma burocracia estatal no que tange aos valores de âmbito constitucional, incumbe-se de reestruturar a organização para eliminar a ameaça imposta a tais valores pelos arranjos institucionais existentes[2]. Inicialmente identificado como espécie de litígio que envolveria a burocracia estatal, a concepção de processo estrutural expandiu-se para também alcançar grandes corporações e agentes econômicos.

Em situações de normalidade, a intervenção do Poder Judiciário se faz na dimensão do controle sobre a conduta dos agentes e dos seus resultados (declarando a inconstitucionalidade ou ilegalidade de determinada conduta, anulando atos, determinando o ressarcimento, aplicando o regime de responsabilidade adequado). No processo estrutural, o Judiciário, como se vê, vai além.

É nítido que o grau de intervenção do Judiciário no processo estrutural desafia, quando pensamos em litígios envolvendo o Estado, a adequada compreensão do princípio da separação de Poderes. E, quando pensado em lides privadas, entram em cena ainda os limites da atuação judicial em face do princípio da livre iniciativa e da legalidade, como expressão da liberdade.

Isso porque o processo estrutural acaba por chamar o Judiciário a se embrenhar no processo decisório dos agentes políticos (no âmbito próprio da atuação política na esfera legislativa e administrativa) e dos agentes econômicos (no desenvolvimento de suas atividades), alterando-se as estruturas instituídas (perdoem-me a tautologia), dirigindo-os para cumprimento de certos objetivos e de determinada maneira, aspectos que, em situações de normalidade, seriam decididos no âmbito da política e da liberdade.

Para Owen Fiss, a necessidade de implementar valores constitucionais justificaria essa nova feição da atividade jurisdicional. Conquanto não se ignore a importância da jurisdição para concretizar valores constitucionais, essa afirmativa não pode ser assimilada de forma acrítica e deve considerar a ordem jurídico-constitucional e o contexto histórico, social, econômico e institucional vigente.

É por isso (e considerando o impacto que a atividade jurisdicional no processo estrutural provoca nas instituições públicas e privadas) que entendo que vem em boa hora o interesse do Congresso Nacional de regulamentar o processo estrutural.

Não se pode ignorar o grande desenvolvimento do processo estrutural no Brasil a partir da doutrina e da prática forense (considerando uma certa visão da Constituição, operada com as técnicas processuais previstas no processo coletivo e no CPC), tendo muito dos membros da Comissão de juristas expressiva colaboração nesse sentido. Essa experiência acumulada, por certo, servirá de subsídio para que o Legislador, ao regulamentar o processo estrutural, ratifique os acertos, corrija os excessos e aponte novos rumos para o processo estrutural, estando atento para a observância dos limites da atuação do Poder Judiciário no Estado democrático de Direito.

É preciso, portanto, compreender a função do Judiciário. E, buscando contribuir para o debate que se instaurou, permito-me trazer algumas premissas que me parecem importantes na construção de um regime para o processo estrutural[3], que identifico também como espécie de processo coletivo[4].

A essência do Judiciário está na aplicação do direito posto, exercendo o controle sobre condutas (comissivas ou omissivas). Juiz não é político, não é gestor público nem agente econômico. Juiz não tem discricionariedade para fazer escolhas políticas, desenhar políticas públicas ou gerir negócios. Mas o juiz tem o múnus de sindicar essas esferas da vida, sob a ótica do Direito, quando provocado.

Por outro lado, a participação no processo, realizando-se audiências públicas ou franqueando a ampla participação de amicus curiae, conquanto fundamental para o devido processo legal, não é suficiente, per se, para suprir o déficit de legitimidade democrática, política ou técnica. Isso porque o Juiz não está submetido ao regime de responsabilidade política de um agente público ou pessoal de um agente privado.

Essas singelas observações têm consequências para definir as situações que justificam a instauração de um processo estrutural e as legítimas medidas que poderiam ser adotadas.

Na aplicação do Direito posto, deve-se ter cuidado com concepções que maximizam o processo de interpretação e criação do direito ignorando as instâncias decisórias próprias. Isso para evitar a pertinente crítica de Carlos Blanco de Morais, que, examinando a prática judicial do controle judicial das omissões estatais em ações judiciais, identifica que se criou no País “um modelo inédito que configura o judiciário como um centro autónomo prestador de benefícios sociais dotado de carácter supletivo em relação aos poderes legislativo e administrativo”.

Ainda em suas palavras, deve-se evitar cair na tentação de conceber os direitos fundamentais e os princípios constitucionais como “delegações normativas em branco ao intérprete (mormente ao judiciário) para criar direito a partir das suas próprias pré-compreensões políticas e filosóficas, de forma a desvalorizar ou a contrariar o próprio direito ordinário do legislador democrático[5].

É certo que o Judiciário poderá contribuir para superação de impasses e a implementação de valores constitucionais, mas a todo o momento será testado pelas partes para avançar sobre as dimensões extrajurídicas dos conflitos e, se não houver cautela, poderá ser capturado pela lógica política, social e econômica dos conflitos que é chamado a resolver numa perspectiva jurídica.

O plano de trabalho da Comissão de juristas indica diretrizes que parecem sinalizar para a consciência da cautela que deve presidir a intervenção judicial nessa espécie de processo, quando situa o “processo estrutural como construção compartilhada de soluções para litígios complexos”, que deve estimular “métodos consensuais e extrajudiciais de solução de conflitos e cooperação e negociação processual”. É um bom ponto de partida, mas se deve estar atento aos requisitos que justificam a instauração dessa atividade jurisdicional excepcional e aos limites dessa atuação.

Gutierrez Beltran se propõe a fazer uma breve lista de critérios que permitem avaliar o nível de legitimidade das intervenções judiciais estruturais (pensadas em lides que envolvam o Estado), que sintetizo: i) é preciso que exista um fundamento normativo explícito – legal ou constitucional – que fixe uma obrigação para as autoridades adotarem medidas de caráter geral a fim de garantir os direitos dos cidadãos; ii) deve estar presente uma situação de violação generalizada e sistemática de direitos; iii) há uma correlação entre legitimidade judicial e o órgão jurisdicional que decide o processo estrutural (órgãos colegiados e de cúpula possuem maior legitimidade); e iv) a intervenção judicial deve promover a menor ingerência possível no desenvolvimento o processo decisório inerente às competências dos órgãos representativos. Para o autor, quanto maior o grau de adesão da “decisão estrutural” a essas exigências, maior será a legitimidade da atuação judicial[6].

Esses requisitos, como se vê, buscam lidar com dificuldades inerentes à incursão da atividade jurisdicional nessa seara, como a ausência de legitimidade representativa (democrática) do Judiciário, o equilíbrio (dinâmico) do princípio da separação de Poderes e a preservação dos espaços decisórios das instituições. E, no nosso entender, ajudam a nortear a o delineamento das categorias processuais nesse específico campo (para disciplinar os pressupostos processuais, as hipóteses e possibilidades de tutela definitiva e provisória, o cabimento das medidas recursais e outros elementos relevantes para o regime do processo estrutural).

Confiamos que os juristas que receberam o múnus público de elaborar o anteprojeto do processo estrutural e o legislador (Senado, Câmara dos Deputados e presidente da República) saberão construir um marco normativo que ajude a situar a função do Poder Judiciário num Estado democrático de Direito, encontrando um ponto de equilíbrio entre o princípio da separação de Poderes, o devido processo legal e a efetivação de direitos.

[1] Instituída pelo Ato do Presidente nº 3, de 2024 (Diário do Senado Federal de 12/4/2024), a Comissão (que tem tendo como Presidente o Subprocurador-geral da República Augusto Aras, Vice-Presidente o Min. Ribeiro Dantas (STJ) e Relator o Des. Federal Edilson Vitorelli (TRF6)), terá o prazo de 180 dias para apresentar anteprojeto de Lei do Processo Estrutural no Brasil. Para acompanhar os trabalhos da Comissão, confira-se a seguinte página no site do Senado Federal: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2664.

[2] FISS. OWEN. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. São Paulo: RT, 2004. Cap. 1. As formas de justiça. p. 27 (Originalmente publicado no vol. 93 da Harvard Law Review (1979).

[3] Para um maior desenvolvimento do tema, ver QUINTAS, Fábio Lima. Juízes-administradores: a intervenção judicial na efetivação dos direitos sociais. Revista de informação legislativa: RIL, v. 53, n. 209, p. 31-51, jan./mar. 2016. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/53/209/ril_v53_n209_p31>

[4] Nesse sentido, o entendimento de Edilson Vitorelli: “O processo estrutural é um processo coletivo no qual se pretende, pela atuação jurisdicional, a reorganização de uma estrutura burocrática, pública ou privada, que causa, fomenta ou viabiliza a ocorrência de uma violação pelo modo como funciona, originando um litígio estrutural” (Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças” (Revista de Processo, vol. 284/2018. São Paulo: Editora RT, out/2018. p. 333-369.

[5] MORAIS, Carlos Blanco. Direitos sociais e controlo de inconstitucionalidade por omissão no ordenamento brasileiro: activismo judicial momentâneo ou um novo paradigma?. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, v. 5, n. 20, p. 211-243, out./dez. 2011. pp. 219, 222-223.

[6] GUTIÉRREZ BELTRÁN, Andrés Mauricio. El amparo estructural de los derechos. Tesis doctoral inédita leída en la Universidad Autónoma de Madrid (14/72016). Cap. 3, precisamente item 3.6.

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