Prova de Titularidade e a credibilidade do mercado de carbono

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Recentemente, mais de 80 ONGs internacionais divulgaram uma Carta Aberta pedindo o fim das compensações de emissões de gases do efeito estufa (GEE) com créditos de carbono. O crédito de carbono é uma métrica surgida no Protocolo de Kyoto (1997), em que cada unidade corresponde a uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) equivalente que deixou de ser emitida na atmosfera.

No âmbito do mercado de carbono, os créditos de carbono desempenham o papel de “moeda ambiental” na mensuração e na precificação das emissões de GEE, transferindo recursos entre entidades nacionais, subnacionais ou privadas como forma de promover a sua redução global.

A lógica é que o sistema de comércio de créditos de carbono internalize os custos sociais das emissões de cada entidade e acabe por induzir políticas públicas e escolhas individuais mais favoráveis ao meio ambiente. O comércio acontece, basicamente, em dois sistemas distintos: o mercado regulado (cap and trade), onde setores e empresas têm um limite de emissões permitidas (linha base), e o mercado voluntário, formado por entidades não submetidas a qualquer limite.

Normalmente, as empresas inseridas no mercado regulado podem adquirir uma determinada quantidade de créditos de carbono para compensar as emissões acima do seu limite permitido, especialmente quando não houver tecnologia disponível para alterar o sistema produtivo ou tal tecnologia não seja economicamente viável.

Segundo as ONGs, o uso de créditos de carbono minaria os esforços globais de redução de emissões, servindo como desincentivo a uma maior ambição no compromisso de países e setores, ao substituir ações próprias pelo pagamento de compensações. A posição das ONGs se baseia na premissa da existência de uma falsa equivalência entre as emissões de combustíveis fósseis e o sequestro de carbono pelas florestas; da transferência de responsabilidade dos setores poluidores para comunidades tradicionais, deixando a “conta” climática para a parte mais vulnerável.

O argumento das ONGS é que a discussão sobre a preservação florestal, embora importante, visa desviar o foco do problema principal, que é a queima de combustíveis fosseis às custas dos países mais pobres.

Não à toa, o debate sobre o mercado de carbono não está limitado a uma simples equação aritmética, sendo preciso considerar aspectos concorrenciais e geopolíticos para que a transição para uma economia de baixo carbono seja realmente justa.

A verdade é que estamos diante de um cenário novo e complexo, que requer uma visão abrangente, onde não existem certezas irrefutáveis e a mensuração de causas e efeitos deve ser uma constante. Neste sentido, o mecanismo de compensação de créditos de carbono não pode ser simplesmente descartado, como pretendem as ONGs.

Embora imperfeito e sujeito a ajustes, é inegável que as iniciativas voluntárias de empresas que não têm a obrigação de reduzir emissões de GEE (o chamado “mercado voluntário”) vêm ao longo dos anos incentivando a experimentação em um mercado ainda embrionário, sem o ônus inerente a qualquer sistema regulado. Dada a ausência de regras específicas, padrões de conduta surgiram e têm sido aplicados de forma orientadora, servindo como um guia e base legal para certos acordos contratuais, com o único propósito de trazer maior segurança jurídica às transações entre particulares.

Não por outra razão, nas discussões em andamento sobre o mercado regulado brasileiro, parece ser consenso que parte dessas metodologias serão reconhecidas oficialmente pelo governo brasileiro.

Uma das metodologias mais difundidas são os VCS (Verified Carbon Standards) da Verra, uma ONG internacional que se tornou a maior certificadora de créditos de carbono do mundo por meio do desenvolvimento de padrões de mensuração, verificação e controle de projetos de carbono. Tais metodologias e os conceitos sobre o que seriam “adicionalidade” e “permanência” – parâmetros exigidos para a validade dos créditos – assim como a forma de se evitar a dupla contagem em emissões têm sido revistos periodicamente e se sujeitado a um intenso escrutínio público.

Há quem veja os recuos e questionamentos aos projetos como uma indicação do fracasso do sistema. Essa parece ser a visão das ONGs. No entanto, ao se considerar a trajetória de qualquer instrumento novo ao longo da história, é possível observar a repetição de um ciclo natural de aperfeiçoamento. Seriam as chamadas “dores do crescimento” de um mercado que ainda engatinha.

Especificamente sobre a experiência brasileira, recentes escândalos como a Operação Greenwashing têm levantado suspeitas sobre a falta de integridade dos créditos de carbono, especialmente daqueles decorrentes de projetos florestais, os chamados REDD+.

No entanto, seja qual for a metodologia adotada, é requisito essencial para a constituição dos créditos de carbono a comprovação da titularidade de toda a área envolvida no projeto e a sua regularidade ambiental, de acordo com a legislação aplicável. Essa análise tem sido chamada de Prova da Titularidade (ou Proof of Title em inglês).

A Prova da Titularidade consiste em um extenso processo de auditoria legal que busca auferir se os titulares do projeto possuem um direito claro e válido sobre os créditos gerados e é componente vital de qualquer processo de validação, verificação e certificação de projeto de carbono no âmbito do mercado voluntário. No Brasil, a questão fundiária exerce um papel central nos projetos de carbono, devido ao enorme potencial do país na redução de emissões de GEE através de soluções baseadas na natureza (SbN).

No entanto, premidos pelos altos custos envolvidos no desenvolvimento de projetos de carbono frente ao valor de mercado dos créditos gerados, temos testemunhado uma pressão pela realização de auditorias a valores irrisórios, o que compromete a credibilidade dos trabalhos.

Na prática, a Prova da Titularidade exige a análise minuciosa de uma ampla gama de documentos e certidões, indicados caso a caso por profissionais qualificados e conhecedores da temática envolvida. Esses documentos abrangem aspectos fundiários, registrais, cadastrais, regulatórios, ambientais, fiscais, além da análise detalhada de ações judiciais e procedimentos administrativos. Frequentemente, ao longo do processo, torna-se imprescindível a visita a órgãos e entidades da administração pública local, para a conformidade local.

A importância desse estudo, em última instância, está diretamente relacionada à credibilidade do mercado voluntário de carbono. Garantir que os créditos comercializados sejam autênticos e representem reduções reais de emissões é essencial para evitar fraudes e assegurar a eficácia das ações de mitigação das mudanças climáticas.

Além disso, a Prova da Titularidade permite a rastreabilidade dos créditos de carbono ao longo de sua vida útil. Isso significa dizer que é possível acompanhar o histórico de cada crédito, desde a sua origem até a sua aposentadoria, garantindo transparência e confiança nas transações realizadas. O investimento na realização da Prova da Titularidade é um investimento na credibilidade do próprio mercado de carbono brasileiro.

No entanto, se o investimento nos processos de auditoria precisa se dar de maneira abrangente, eficaz e responsável, é essencial que se encare a realidade de maneira pragmática, especialmente em resposta àqueles que veem eventos como a Greenwashing como um atestado da insegurança do mercado de carbono. As fraudes associadas a essa operação, atualmente sob investigação da Polícia Federal, são atribuídas a uma organização criminosa sofisticada, que envolve agentes públicos de diversas esferas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Não há mercado, dos tradicionais e consolidados aos emergentes e embrionários, que seja imune a atividades criminosas. Os procedimentos de auditoria, por mais rigorosos que sejam, não seriam capazes de detectar as fraudes cometidas, que só vieram à tona graças à intervenção direta das autoridades públicas. No entanto, a atuação das instituições de segurança pública, ao contrário do que possa parecer, são um importante componente de validação de mercado, a atestar a vigilância e a coerção necessárias.

A crise climática não está batendo, mas esmurrando à nossa porta. Não podemos renunciar a instrumentos ainda pouco explorados a cada obstáculo que surja no caminho. A interoperabilidade entre o mercado regulado e o mercado voluntário, o uso de ferramentas de taxação e precificação, bem como estratégias de mitigação e de transformação, não devem ser encaradas como soluções únicas ou excludentes entre si. Precisamos de todas essas abordagens e mais: sem jamais negligenciar a análise crítica e o cuidado jurídico.

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