STF e o cálculo do impacto econômico de suas decisões

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Reportagem do Valor Econômico do último 24 de abril, cujo título é “STF passa a calcular impacto econômico de processos levados a julgamento”, mostra que os ministros do Supremo Tribunal Federal já tomaram 16 decisões em processos relevantes baseados na análise econômica feita pelo Núcleo de Processos Estruturais Complexos (Nupec), que foi criado pelo ministro Luís Roberto Barroso no segundo semestre do ano passado.

De acordo com a reportagem, o caso mais emblemático teria sido o da revisão da vida toda dos aposentados do INSS, em que o governo calculava um impacto de R$ 480 bilhões para a União em caso de derrota enquanto o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), que representava os aposentados, estimava o impacto em apenas R$ 1,5 bilhão.

A mera descrição do problema já mostra o quanto os referidos cálculos são limitados: normalmente se entende por impacto econômico apenas os custos que serão suportados pelo governo ou pelas empresas, sem a consideração dos benefícios que serão atribuídos aos cidadãos e à sociedade nos diferentes cenários decisórios.

Tais aspectos mostram que as chamadas análises de impacto das decisões, longe de serem avaliações globais e abrangentes das consequências das diversas decisões, muitas vezes acabam se limitando ao cálculo do que empresas e governos têm que pagar, sem nem mesmo considerar as perdas – além das financeiras – daqueles que litigam contra tais agentes.

Ao assim fazer, desconsidera-se o fato de que, por mais que os cálculos dos custos financeiros a serem suportados por governos e empresas seja importante, especialmente quando há divergências entre as partes, podem ser muito limitados para se entender a dimensão consequencialista global de cada cenário decisório. Mais do que isso, podem ser a necessária contrapartida de inúmeras violações de direitos que não podem ficar sem resposta.

Como já tive oportunidade de demonstrar em outros escritos[1], as consequências de uma decisão não se limitam aos efeitos econômicos e muito menos a uma parcela dos efeitos econômicos – os custos que governo ou empresa terão que suportar. Se queremos realmente avaliar impactos e consequências das decisões judiciais, especialmente das oriundas do STF, precisamos discutir igualmente os efeitos pessoais, sociais e políticos, dentre outros que se mostrem relevantes.

Ocorre que essa avaliação mais abrangente não é uma tarefa fácil, especialmente se a metodologia utilizada for exclusivamente quantitativa. Já tive a oportunidade de tratar desse tema em relação às análises de impacto regulatório[2], ressaltando as diversas limitações dos métodos quantitativos:

Indispensabilidade de juízo valorativo sobre as variáveis que serão quantificadas e como;
insuficiências de métodos quantitativos para tratar de inúmeras questões – como as ambientais, sociais e relacionadas a direitos humanos e fundamentais – a começar pela dificuldade de mensuração dos custos e benefícios relacionados a tais matérias;
risco de ignorância ou indiferença ao que não pode ser mensurado quantitativamente;
desconsideração da circunstância, de que, em áreas como meio ambiente, segurança, saúde e proteção a direitos fundamentais, várias decisões podem ser corretas mesmo quando os seus benefícios não superam os seus custos, pela simples razão de que refletem valores que não são de mercado e que, portanto, não podem ser avaliados monetariamente[3].

Diante de um tribunal que, a exemplo do STF, tem por missão a guarda de inúmeros valores insuscetíveis de conversão econômica, ainda há advertências adicionais para a tentativa de quantificação de todas as variáveis em disputa:

Nem tudo que é contável conta e nem tudo que conta é contável;
nem tudo é suscetível de comparação pela mesma métrica quantitativa;
a quantificação do inquantificável, como é o caso da perda de uma vida humana ou a destruição de um ecossistema, normalmente envolve a utilização de critérios que, sem embargo da moralidade duvidosa, podem envolver alto grau de arbitrariedade e reducionismo;
nem todas as opções submetidas ao cálculo e à comparação são aceitáveis do ponto de vista jurídico ou moral.

Logo, assim como precisamos avançar na análise de todas as consequências envolvidas, é necessário reconhecer o quanto é equivocada a ideia de que somente é satisfatório o conhecimento que pode ser quantificado. Pelo contrário, há receios fundados de que, na tentativa de se quantificar tudo, sejam ignoradas coisas importantes – porque são difíceis ou impossíveis de serem quantificadas – ou sejam distorcidos ou mal representados os fatos que estamos querendo mensurar.

Mesmo quando as análises econômicas se baseiam em sofisticados modelos econômicos, com o objetivo de predizer e mensurar os cenários possíveis, certamente que os seus resultados serão sempre parciais e incompletos. Ademais, não serão propriamente nem neutros, nem objetivos, na medida em que dependerão de uma série de escolhas metodológicas que não podem ser apartadas dos valores, das pré-compreensões e da subjetividade do pesquisador, além de precisarem passar pelo crivo da interpretação quanto aos seus resultados.

Quanto mais complexo for o assunto e quanto mais variáveis estiverem em jogo, mais os resultados de tais análises serão limitados e afastados da realidade como um todo, especialmente quando existirem impactos de difícil ou impossível identificação ou mensuração. Mais preocupante ainda é o risco de tais análises ocultarem, sob o simulacro da tecnicidade, decisões que são substancialmente políticas ou econômicas.

Os problemas se potencializam nas análises econômicas preditivas, que buscam mapear o futuro comportamento econômico dos agentes envolvidos. Afinal, antecipar um futuro desconhecido e repleto de incertezas não é tarefa trivial.

Não é sem razão que os prêmios Nobel de Economia Banerjee e Duflo, no seu excelente livro Good Economics for Hard Times[4] chamam de bad economics precisamente a parte da economia relacionada às predições, pretensão em relação à qual os autores são extremamente críticos, seja por entenderem que economistas fazem um trabalho muito pobre de predição, seja por entenderem que predições com acurácia são normalmente impossíveis. Por essa razão, consideram que a maioria dos economistas acadêmicos procuram ficar fora da futurologia.

Para os autores[5], a boa economia – good economics – é exatamente a menos estridente, por partir da premissa de que, sendo o mundo suficientemente complicado e incerto, a melhor coisa que economistas têm a compartilhar não são suas conclusões, mas sim os caminhos que adotaram para chegar a elas: os fatos que sabem, a forma como interpretaram tais fatos, os passos dedutivos adotados e as fontes remanescentes de incertezas. Sob essa perspectiva, os autores são claros no sentido de que economistas não são cientistas no mesmo sentido que físicos o são, razão pela qual normalmente têm pouca certeza absoluta para compartilhar com os outros.

A perspectiva proposta por Banerjee e Duflo é muito importante, na medida em que mostra a cautela com que as análises de impacto – especialmente as que apresentam dimensão preditiva – precisam ser realizadas e compreendidas, a fim de que contemplem as seguintes preocupações:

Tão importantes quanto os resultados das análises de impacto são os seus caminhos metodológicos, os quais igualmente precisam estar sujeitos à crítica e ao controle social;
tão importante quanto o que as análises de impacto revelam é o que elas não revelam em razão da impossibilidade ou dificuldade de quantificação ou da própria incompatibilidade da metodologia para a referida avaliação;
os resultados das análises de impacto não podem ser vistos como conclusões objetivas ou verdades incontestáveis, mas sempre como explicações precárias e reducionistas da realidade, que certamente poderão lançar algumas luzes ao problema sob exame, mas nunca encerrarão propriamente as discussões em torno dele.

Isso mostra também que o quanto é importante equilibrar as análises quantitativas com outros tipos de análises e julgamentos. Aliás, é esta a principal ideia de Jerry Muller no seu sensacional livro Tyranny of Metrics[6]: não é possível substituir julgamentos complexos por métricas, assim como é falsa a premissa de que apenas com métricas pode haver accountability e transparência.

Com efeito, segundo o autor, além de as coisas mais importantes não poderem ser mensuradas, os julgamentos (reasoning) são fundamentais não apenas para decidir o que e como será mensurado, mas sobretudo para avaliar a importância relativa do que está sendo mensurado, os resultados da mensuração e a sua compatibilidade com os aspectos qualitativos e valorativos. Aliás, tal conclusão é igualmente compartilhada pela OCDE[7], que ressalta a necessidade de que fatores qualitativos importantes não podem ser subordinados aos fatores quantitativos, sobretudo em se tratando de países em desenvolvimento.

Dessa maneira, as análises de impacto econômico, embora necessárias e importantes, não podem ser vistas como “tábuas de salvação” nem como a última palavra sobre julgamentos complexos. Pelo contrário, devem ser compreendidas como avaliações parciais e limitadas que, exatamente por isso, precisam estar submetidas ao escrutínio e ser complementadas com julgamentos normativos.

Aliás, na reportagem do Valor, o economista da presidência do STF, Guilherme Resende, ressalta, acertadamente, o valor meramente instrumental das análises econômicas, já que “são vários os fatores que vão ter que ser levados em conta na decisão”, de forma que “o econômico é mais um nível de informação para tomar a decisão.”

Dessa maneira, precisamos avançar com a devida cautela na agenda de previsão de cenários ou de cálculo de impacto econômico de decisões do STF. Para além da necessidade de incorporar na análise as principais variáveis envolvidas – e não apenas os interesses financeiros de empresas e governos – é fundamental discutir sobre metodologia, accountability e complementaridade entre análises quantitativas e qualitativas, especialmente diante de direitos fundamentais que, por definição, são insuscetíveis de conversão em dinheiro.

[1] Ver, a título de exemplo, FRAZÃO, Ana. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/consequencialismo-inconsequente-15062022?non-beta=1

[2] FRAZÃO, Ana. Lei de Liberdade Econômica e Análises de Impacto Regulatório -AIRs. In: FRAZÃO, Ana; CARVALHO, Angelo (Org). Lei de Liberdade Econômica. Análise Crítica. Rio de Janeiro: Forense, 2022. pp. 301-334.

[3] Ver, nesse sentido, KELMAN, Steven. Cost-Benefit Analysis.  An Ethical Critique. http://www.colby.edu/economics/faculty/thtieten/ec476/kelmanbca.pdf. Sobre questões ambientais, ver SUNSTEIN, Cass. “Cost-Benefit Analysis and the Environment”. John M. Olin Program in Law and Economics Working Paper No. 227, 2004.

[4] BANERJEE, Abhijit; DUFLO, Esther Good Economics for Hard Times. New York: Public Affairs, 2019, p. 6.

[5] Op.cit., p. 7.

[6] MULLER, Jerry Z. The tyranny of metrics. New Jersey: Princeton University Press, 2018.

[7] OCDE. Regulatory Impact Analysis in OECD Countries. Challenges for developing countries. https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/35258511.pdf.

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