Superintendência-Geral do Cade publica manual para adoção de trustees

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Terceiros (monitores, auditores externos, mandatários, trustees) – neste trabalho genericamente indicados como trustees – vêm sendo mais frequentemente utilizados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e por autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo. São agentes autônomos e independentes que atuam como auxiliares à autoridade na fiscalização do cumprimento das decisões, compromissos e acordos que envolvam a aplicação de remédios (condições para aprovação de determinada operação ou para adoção de determinadas práticas comerciais), embora sejam remunerados pelos administrados sujeitos a essas restrições.

São geralmente utilizados na falta de recursos disponíveis pela autoridade de defesa da concorrência ou pela necessidade de expertise específica para execução de alguma tarefa ou adoção de medida necessária para implementação de remédios mais complexos. Os relatórios de análise de cumprimento elaborados pelos trustees são opinativos e um importante para a autoridade antitruste. O poder de fiscalização e de polícia de acompanhamento de cumprimento de decisões, portanto, não é delegado, sendo a autoridade de defesa da concorrência, em última análise, responsável pelo ateste das obrigações estabelecidas.

Trata-se de uma figura singular na administração pública, a qual permite que a autoridade de defesa da concorrência mantenha sua função original, mas também tenha auxílio de um terceiro independente, sem a necessidade de dispender recursos recorrentes (por exemplo, na contratação de pessoal que fique exclusivamente dedicado ao acompanhamento de decisões) com atividades que possam ser sazonais.

Os trustees são comumente utilizados no controle de estruturas (atos de concentração), mas também no controle de condutas (investigações de práticas anticompetitivas). Esses podem exercer três principais funções: (i) trustee de monitoramento, (ii) trustee de desinvestimento, e (iii) trustee de “operação” (hold separate manager ou operating trustee). 

Trustees de monitoramento são utilizados em ambos os controles de condutas e de estruturas. No âmbito de condutas, auxiliam na supervisão de cumprimento de obrigações comportamentais (e.g., garantia de manutenção de níveis de exclusividade, de não discriminação de clientes ou fornecedores). Em controle de estruturas, são em geral responsáveis por monitorar o processo de desinvestimento (desde a separação de ativos até a garantia de viabilidade, valor, capacidade de venda e competitividade do pacote de desinvestimento) ou em obrigações comportamentais (e.g., compromissos de não discriminação, obrigações de firewall).

Trustees de desinvestimento têm o mandato de venda do pacote de ativos negociado (ou de um negócio)  e, nessa posição, podem ser encarregados de avaliar potenciais compradores para o pacote de remédios proposto, propostas de aquisição do pacote recebidas, bem como acompanhar o processo de desinvestimento negociado entre compromissárias e a autoridade (o que pode incluir, por exemplo, a separação de estruturas físicas em uma planta produtiva, a segregação de times responsáveis pelo negócio, entre outros). Em geral, esse tipo de trustee só é utilizado caso as partes não consigam, por si sós, achar um comprador adequado ao pacote em desinvestimento.

Trustees de “operação” podem ser requeridos para gerenciar e supervisionar o dia a dia do negócio a ser desinvestido de forma que mantenha sua independência e competitividade em relação à empresa combinada pós-operação em análise, além de sai efetividade. Note-se que papéis dos diferentes tipos de trustees podem às vezes se sobrepor.

O Cade vem utilizando trustees de forma mais intensa nos últimos anos. No âmbito do controle de estruturas, nota-se que entre 2012 e 2023 foram celebrados 69 Acordos em Controle de Concentração (ACCs), dentre os quais 48 utilizaram algum tipo de trustee. O trustee de monitoramento foi utilizado em todos os casos, enquanto os trustees de desinvestimento e de operação apareceram, respectivamente, 11 e 8 vezes.

No que se refere ao controle de condutas, identificou-se que, a partir de pesquisa conduzida nos autos públicos do Cade e desconsiderando os casos envolvendo cartéis, foram celebrados 93 Termos de Compromisso de Cessação (TCCs) entre os anos de 2012 e 2023, dos quais 16 utilizaram trustees de monitoramento[1]. No decorrer dos anos, apesar de haver certa oscilação, é possível perceber que o número de TCCs com trustees vêm aumentando, tendo sido aproximadamente 82% deles utilizados nos últimos cinco anos.

Nesse cenário, com o objetivo de aprimorar práticas e processos associados ao uso de trustees, em 2023, o Cade contratou consultoria externa, no âmbito de parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que deu suporte ao Planejamento Estratégico do Cade 2017-2020 e em seguida àquele delineado para 2021-2024, para elaboração de manual de adoção de trustees em acordos firmados pela autarquia.

Esse projeto, capitaneado pela Superintendência-Geral do Cade (SG) após formação de grupo de trabalho[2] dedicado ao assunto, foi lançado em contexto mais amplo de revisão de normas com propósito de tornar mais eficiente o acompanhamento de decisões pelo Cade. Especificamente, a recém-publicada Resolução Cade 35/2023[3], que revoga a Resolução 6/2013[4], atribui à SG a manifestação original sobre o cumprimento de decisões, podendo o Tribunal do Cade, que mantém sua competência de decisão final sobre a matéria, e/ou a SG solicitarem parecer opinativo sobre questões jurídicas à Procuradoria Federal Especializada do Cade (ProCADE).

Assim, uma vez aprovados acordos com o Cade, fica a cargo da SG, conforme previsto na Lei 12.529/2011[5], a responsabilidade pelo monitoramento mais próximo de remédios adotados. Note-se que, já nesse movimento, em 2022 passou a viger a Portaria Cade 119/2022[6], que, ao disciplinar o quanto disposto na Resolução 6/2013, já dava mais ênfase a uma análise de cumprimento de decisões conduzida pela SG.

Com base em revisão de guias, estudos e precedentes do Cade, aplicação survey com contribuições públicas, além de pesquisa extensa de benchmark internacional realizada com cerca de 20 autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo, buscou-se avaliar os procedimentos até então adotados pelo Cade e propor, através do Manual, recomendações para atuação futura na adoção de trustees no monitoramento da implementação de remédios. Notou-se, em particular, que a prática do Cade se encontra bastante alinhada com aquelas adotadas por autoridades de defesa da concorrência estrangeiras.

Em linhas gerais, o Manual revisa, atualiza e complementa previsões relacionadas à adoção de trustees já delineadas pelo Guia de Remédios Antitruste do Cade, de 2018. Naquela oportunidade, o Cade esclareceu quais seriam os diferentes tipos de trustees, destacou sua autonomia e independência, além de cobrir critérios de análise para eleição e procedimentos para nomeação.

Nesse momento, o Cade lança documento mais robusto e específico, que traça em detalhes procedimentos de aprovação e nomeação de trustee, responsabilidades do trustee e das compromissárias, relacionamento entre compromissárias, trustee e Cade, questões de confidencialidade, além de procedimento de descumprimento, substituição, exoneração e renomeação de trustee e encerramento do monitoramento pelo trustee. Acompanham também o Manual modelos de cláusulas a serem incluídas em acordos firmados, além de minuta de Instrumento de Mandato que deve formalizar a relação entre compromissária e trustee.

Particularmente, o Cade busca tornar mais transparentes os critérios e requisitos que serão observados para análise de candidatos a trustee, dentre eles a análise de Plano de Trabalho – indicando de que forma o trustee pretende exercer suas funções, incluindo metodologia a ser utilizada –, a avaliação de capacidade operacional, qualificação técnica e minuta de Instrumento de Mandato, bem como a independência e a ausência de conflito de interesses.

Espera-se que, daqui em diante e a partir de esforços significativos feitos pela autarquia, o Manual lançado pelo Cade possa servir de norte para servidores, trustees e para administrados em um esforço conjunto de aprimoramento de prática em relação ao uso dessa figura tão relevante no monitoramento da implementação de remédios.

[1] Caso fossem considerados os casos envolvendo cartel na contagem, o número de TCCs negociados subiria para 427. Destaca-se que, nos precedentes de condutas coordenadas, em 17 (dezessete) deles, foi estipulada a necessidade de a compromissária contratar auditoria externa para supervisionar progresso de programa de compliance concorrencial a ser instituído como decorrência de condenação pela autarquia.

[2] CADE. Portaria Normativa Cade nº 14, de 15 de junho de 2022. Institui o Grupo de Trabalho para elaborar estudos e pesquisas sobre a utilização de cláusulas arbitrais e trustees em sede de acompanhamento de decisão no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, abrangendo Acordos de Concentração Econômica (ACCs) e Termos de Compromisso de Cessação (TCCs). Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?11fcbFkN81DNKUdhz4iilnqI5_uKxXOK06JWeBzhMdu1o7VqyXeq9tKSSC3I_YlnBX8Qjt099g7spbtEu5Ayy29jXlRAKR9rlVeBDrdt0Mc0uwYSr_CsMEswFRJndRgS>.

[3] CADE. Resolução Cade n° 35, de 06 de março de 2024. Disciplina o procedimento a ser adotado nos processos de fiscalização do cumprimento das decisões, compromissos e acordos aprovados pelo Tribunal Administrativo do Cade, nos termos do art. 52 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Disponível em:<https://sei.cade.gov.br/sei/publicacoes/controlador_publicacoes.php?acao=publicacao_visualizar&id_documento=1452311&id_orgao_publicacao=0>.

[4] Cade. Resolução Cade n° 6, de 03 de abril de 2013. REVOGADA.

[5] BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei no 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12529.htm>.

[6] CADE. Portaria Cade nº 119, de 31 de março de 2022. Perdeu eficácia com a revogação da Resolução Cade nº 6/2013.

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