Trabalho em plataforma e PLP 12/24: avanço ou retrocesso?

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Regular o trabalho em plataformas digitais não é uma tarefa insuperável, ao contrário do que fazem crer aqueles que querem que o novo mundo do emprego seja uma terra sem lei. 

A União Europeia acaba de aprovar uma nova regra que introduz a presunção de existência de relação de emprego entre os trabalhadores de aplicativos e as plataformas. Essa nova diretiva estabelece que é da plataforma o ônus de provar que o trabalho realizado não tem contornos de trabalho subordinado e, mais do que isso, estabelece regras sobre a gestão de algoritmos, assegurando a supervisão humana para todas as decisões que afetem os trabalhadores, como, por exemplo, saúde ou segurança.  

Estima-se que na Europa funcionam mais de 500 plataformas de trabalho digital e há mais de 28 milhões de trabalhadores no setor. Essa nova legislação, prestes a ser publicada, certamente não impedirá que as plataformas ali permaneçam e muito menos impedirá a contínua criação de vagas de trabalho. 

Longe de ser retrógrada, a lei a ser implementada por todos os Estados-membros da UE em até dois anos olha para o futuro do trabalho. Isso porque quase tudo poderá ser intermediado por plataformas.

Enquanto a União Europeia olha para frente, o Brasil caminha com os olhos no retrovisor. Enquanto a UE assume a existência da subordinação algorítmica ou a necessidade de corrigir o desequilíbrio de poder entre a plataforma digital e o trabalhador, o PLP 12/2024, apresentado em 5 de março, a pretexto de modernizar as relações de trabalho, na verdade descarta todo o artigo 7º da Constituição Federal de 1988, flertando com a precarização que poderá moldar o futuro do trabalho no Brasil.

Daí por que a questão é de seriedade indiscutível.

Prevê o caput do referido artigo 7º da CF/88 que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:…”.

Assim, previu o legislador constituinte que todo e qualquer trabalhador brasileiro tem garantidos, ao menos, os direitos que são listados nos 34 incisos que se seguem ao caput.  

Essa determinação não é facultativa, mas imperiosa.

O esforço da UE demonstra não só que é possível regular as novas formas de trabalho, como também que é necessário arbitrar os interesses econômicos das plataformas com a necessidade de estabelecer padrões dignos para os trabalhadores.

O PLP 12/24 trata especificamente da relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado de passageiros em veículos automotores de quatro rodas. Diferentemente da legislação europeia, que visa regular amplamente o trabalho para plataformas digitais, o projeto brasileiro, por enquanto, está limitado às plataformas de transportes de passageiros de quatro rodas, o que não abarca os motofretistas nem outras categorias de trabalhadores de plataformas. Por enquanto. 

Esse texto visa a criação de uma nova espécie de trabalhador, o chamado trabalhador autônomo por plataforma. Em síntese, prevê as seguintes condições de trabalho: 12 horas de período máximo de conexão a uma mesma plataforma; R$ 8,03 como valor da hora, sobre o qual haverá a contribuição previdenciária; acréscimo do valor de R$ 24,07 a título de ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador; garantia de salário mínimo proporcional às horas trabalhadas e representação sindical.

As empresas, por sua vez, poderão adotar normas e medidas que garantam a segurança das plataformas, dos trabalhadores e usuários com o objetivo de coibir fraudes, abusos ou mal uso das mesmas, conforme contratos de adesão; poderão adotar normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados, também conforme regras contidas nos mesmos contratos de adesão; poderão utilizar sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados ou utilizar sistemas de avaliação dos trabalhadores e não poderão limitar a distribuição das viagens quando o trabalhador atingir a remuneração horária mínima.

A exclusão do trabalhador poderá ocorrer de forma unilateral pela empresa quando houver abuso, mau uso ou fraude, garantindo direito de defesa, mais uma vez conforme regras constantes do contrato de adesão.

Vê-se, portanto, que o PLP 12/24 é um avanço em relação à jurisprudência que vem sendo construída pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na qual o trabalhador de aplicativos tem sido conceituado como microempresário, sem qualquer proteção. Mas o PLP é, ao mesmo tempo, um retrocesso em relação aos direitos já conquistados pelo trabalhador brasileiro desde, ao menos, a promulgação da Constituição Federal de 1988, que prevê em seu artigo 7º as garantias mínimas para a obtenção da sua dignidade.

Nesse sentido, o projeto de lei, embora necessário, é extremamente tímido. 

Não é possível negar que o mundo contemporâneo impõe uma profunda reflexão sobre a necessidade de adaptação da legislação às novas formas de trabalho e, nesse contexto, nasce a imposição da regulamentação da profissão de motoristas de aplicativo. Mas, da mesma forma, a necessidade de eventual adaptação da legislação não pode significar retrocesso e precarização. 

Um novo conceito de trabalhador, no qual não estão contidos os direitos e garantias básicas que formam o artigo 7º da Constituição Federal, não poderia nem mesmo ser discutido. 

Qualquer inovação ou adaptação legal deveria partir, sempre, das garantias mínimas de proteção. Caso contrário, andaremos em sentido contrário ao que previu o legislador constituinte de 1988 e pousaremos no momento histórico do início do século 20, antes da criação do Estado de bem-estar social, tempos em que vigia uma ideia ficta de igualdade de partes e autonomia de vontade não condizentes com a realidade e especificidade das relações de trabalho. 

A flexibilidade de horário que muitos motoristas de aplicativo tanto almejam não é incompatível com a ideia de trabalho minimamente protegido. Porém, uma legislação que possibilita a jornada de até 12 horas, para um único aplicativo, isso sim, é incompatível com o artigo 7º da CF/88, que prevê jornada de 8 horas diárias e pagamento maior para as outras duas horas que podem ser acrescidas por dia, para todos os trabalhadores. 

A possibilidade de o trabalhador decidir em quais dias da semana vai laborar ou quais as corridas que deseja fazer igualmente não é incompatível com a ideia de trabalho minimamente protegido. Mas um contrato sem previsão de férias remuneradas de 30 dias, sem previsão de remuneração do trabalho noturno superior ao diurno, sem previsão de licença-maternidade, sem previsão de repouso semanal remunerado ou sem a garantia de redução de riscos inerentes ao trabalho, isso sim, é incompatível com os direitos que estão garantidos a todas as trabalhadoras e a todos os trabalhadores brasileiros. 

Esse é o princípio do não retrocesso, que permeia toda a Constituição Federal em vigor e que decorre do Estado democrático e social de Direito e do princípio da dignidade da pessoa humana. É justamente o princípio do não retrocesso que garante a tão aspirada segurança jurídica. Os direitos que já estão garantidos não podem mais ser descartados, nem sequer flexibilizados.  

O PLP 12/24, festejado por muitos como um grande avanço, cria, na verdade, uma categoria de trabalhadores que está à margem das garantias mínimas, tornando facultativa a aplicação da regra constitucional pétrea contida no artigo 7º. A tentativa de atribuir um adjetivo a esta categoria de trabalhadores não autoriza transformar a essência da atividade laboral. A pessoa que trabalha, qualquer que seja a sua categoria, não pode ser destituída daquelas condições essenciais para que tenha uma vida digna.

Os direitos do trabalhador, expressos na Constituição, nada mais são do que os direitos humanos que incidem na vida de todos aqueles que trabalham. Categorias específicas podem exigir tratamentos diversos. O que não se pode aceitar é que haja uma categoria de trabalhadores que não goze dos direitos essenciais previstos na Constituição. Autorizar isso seria admitir que uma lei ordinária alterasse não apenas a Carta Magna, mas um conjunto de normas pétreas da Lei Maior.  

São inúmeras as pesquisas que já apontam o trabalho extremamente precarizado de trabalhadores de plataformas digitais: 40% dos entregadores de aplicativos trabalham mais de 60 horas por semana, conforme pesquisa da Unicamp. Ou, como aponta pesquisa do IBGE-Pnad, os entregadores e motoristas que atuam por meio de plataformas digitais recebem, respectivamente, R$ 3,40 e R$ 1,90 a menos, por hora, do que seus correspondentes que não utilizam aplicativos de corridas, ainda que trabalhem mais tempo para obter essa renda.

A mesma pesquisa apontou que essas pessoas enfrentam jornadas de trabalho extensas, com comprometimento da saúde mental e física; que 61% possuem ensino médio ou superior incompleto e que 77,1% têm esse trabalho como principal fonte de renda. 

As plataformas não podem ser vistas como entes abstratos que favorecem o empreendedorismo individual. São empresas altamente organizadas, que utilizam o trabalho humano para a obtenção de lucro. O fato de empregarem a tecnologia de maneira ubíqua e sistemática para organizar, distribuir, gerenciar e disciplinar o trabalho não elimina, necessariamente, a condição de subordinação daqueles que contribuem com sua força de trabalho para a realização das finalidades da empresa.

Com isso, não se está a afirmar que todos aqueles que mantêm relação de trabalho com as plataformas são necessariamente empregados. Mas na ocorrência de subordinação, não é possível falar de autonomia.

Ao contrário do caminho trilhado pela regra europeia, que optou pela presunção de existência de vínculo empregatício entre a parte que trabalha e a plataforma que contrata, o projeto de lei brasileiro fez diferente: motoristas de plataformas são, a priori, trabalhadores autônomos. Exatamente por isso, o projeto abre as portas para a precarização. Melhor seria se tivesse assumido a presunção oposta.

Mas o PLP 12/24 deixou uma porta semiaberta. Muito embora tenha pecado ao não transferir para as empresas contratantes o ônus de provar que a relação mantida não é de emprego, o artigo 3º do PLP dispõe que o trabalhador será autônomo, desde que os serviços sejam executados sem exclusividade e que exista plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos laborados. Assim, permanece da Justiça do Trabalho a competência para verificar se o trabalhador possui, de fato, plena liberdade de trabalho ou se, ao contrário, está submetido a algum tipo de controle, ainda que algorítmico ou telemático. 

Autonomia, no mundo das relações de trabalho, pressupõe liberdade. Portanto, pressupõe ausência de subordinação. Na existência de subordinação, não há trabalho autônomo.

Nesse ponto, a legislação brasileira se antecipou à europeia, já que desde 2011 expandiu o conceito de subordinação ao dispor, no parágrafo único do artigo 6º da CLT, que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

Não é possível a criação de uma sociedade mais justa e igual sem a defesa dos direitos e garantias de todas as cidadãs e cidadãos desse país, na busca da melhoria constante das suas condições de vida e de trabalho. 

Mais fácil do que suprimir direitos constitucionais, com alto custo político e jurídico, é subverter o conceito de empregado. Assim, esses direitos permanecerão no ordenamento jurídico como espectros, sem ter a quem proteger. Com a criação de uma categoria de trabalhador sem os direitos e garantias mínimas para a existência de uma vida digna, suprimindo um dos capítulos mais importantes da Constituição Brasileira, podemos, silenciosamente, estar testemunhando o esgarçamento paulatino de nosso tecido social.

Em um universo cada vez mais povoado por plataformas digitais, podemos estar abrindo espaço para um mundo distópico, no qual um exército de trabalhadores sem qualquer autonomia para decidir os seus destinos se vejam obrigados a retirar seu sustento ou a sobreviver em subordinações algorítmicas, destituídos de qualquer proteção jurídica. 

A criação de uma categoria de trabalhadores autônomos, como a que propõe o PL 12/24, abrirá espaço para um futuro com trabalhadores que não serão mais sujeitos de direitos e um futuro com contratantes que não mais terão qualquer obrigação. 

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