Provocações ao operador do Direito: mito da impunidade e negação do racismo

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O Brasil, frequentemente retratado como o país da impunidade e da harmonia racial, é alvo de dois mitos persistentes: a ideia de que a impunidade reina soberana em suas instituições e a ilusão de que a miscigenação atenua os vestígios do racismo. Porém, é possível desconstruir esses mitos arraigados, afinal nosso país se destaca por ter uma das maiores populações carcerárias do mundo, com a presença significativa de pessoas negras e de baixa renda.

Torna-se claro que o problema não reside na ausência de políticas de encarceramento, mas sim em questões estruturais que alimentam um sistema desproporcional de punição. Essa realidade não apenas levanta questionamentos sobre a adequação das leis penais, mas também destaca as falhas legislativas que muitas vezes resultam em penas desproporcionais para crimes considerados menores, ainda mais se comparadas com condenações de crimes de colarinho branco.

Apesar do mito da “democracia racial”, a discriminação e o preconceito racial são realidades vividas por milhões de brasileiros todos os dias, refletindo-se em desigualdades socioeconômicas, acesso desigual à Justiça e violência estrutural. Ao desafiar aqueles dois mitos, podemos abrir espaço para discussões mais honestas e construtivas sobre Justiça, igualdade e inclusão no Brasil contemporâneo.

País da impunidade?

Em meio aos maiores contingentes populacionais mundiais, o Brasil consta na 5ª colocação, com mais de 200 milhões de habitantes, com menos somente que a China (aproximadamente 1,4 bilhão), Índia, (cerca de 1,282), Estados Unidos (pouco mais de 325 milhões) e Indonésia (quase 256 milhões), nos termos das derradeiras amostras do Institut National d’Études Démographiques de 2018.

No que diz respeito à escala das maiores populações encarceradas, as bases disponibilizadas pelo último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) sinalizam o Brasil na 3ª colocação, com 711.463 mil presos (se considerado também o regime domiciliar de prisão). Quando correlatadas estas referências com as últimas aferições do INED, o Brasil exibe índice de encarceramento de 349 indivíduos a cada 100 mil habitantes.

Vários acadêmicos apontam a contradição entre o seguimento da democratização e a segurança pública, considerando os desequilíbrios entre os progressos havidos no seio político e os aparelhos policiais e penitenciários que foram resistindo à adoção dos novos modelos da existência democrática. Esta feição está nítida na conservação de ações autoritárias e violentas semeadas no curso do regime militar. 

Bases amostrais dos países com os maiores contingentes penitenciários devem ser verificadas. No caso da China, segundo o World Prision Brief, uma base de dados com averiguações sobre as prisões em torno de todo o mundo, existem 2.300.000 encarcerados, sob uma ordem de 164 indivíduos para cada 100 mil habitantes.

Já em relação ao Brasil, aos 711.463 detentos segundo o Infopen, se subtraídas as 147.937 pessoas em prisão domiciliar, bem como os 15.036 indivíduos em regime aberto (conforme aduzido pelo CNJ), teríamos 548.490 pessoas, com uma taxa de encarceramento resultante em 269 pessoas para 100 mil habitantes. O Infopen conclui que, comparada ao índice de aprisionamento dos países com os maiores contingentes carcerários, a população penitenciária brasileira é a quarta maior em termos relativos, com menos apenas que os Estados Unidos, Rússia e Tailândia.

Negação da prática do racismo?

Recentes pesquisas e análises sobre genética, inclusive conduzidas no Brasil, mostram que do prisma da biologia somos todos mestiços, alguns mais claros e outros mais escuros. Isto serve como fundamento para reiterar que raça é uma construção social e, deste modo, os diálogos sobre discriminação racial não devem ser alicerçados na área da natureza, mas no da cultura. Em outras palavras, as discussões sobre racismo têm de ser estabelecidas no terreno das interações sociais e das distinções histórica e socialmente erigidas, em que é relevante o fenótipo e não o genótipo. 

A pirâmide social brasileira denota muito bem a conservação das hierarquias raciais presentes desde o período escravista, apresentada com alicerce na concepção da colonialidade do poder. Esta pirâmide está estratificada entre as atividades exercidas pelos mestiços mais claros (que se encontram sobrerepresentados nas universidades em programas de status e prestígio, nas ocupações de direção e chefia e nas incumbências de comando, no Poder Judiciário e na política) e as atividades desempenhadas pelos mestiços mais escuros (subrepresentados em todas as referidas atividades e sobrerrepresentados nas funções subalternizadas). Ademais, os mestiços mais escuros são constantemente estigmatizados, quando não invisibilizados.

Há controvérsias não apenas sobre as razões da desigualdade racial e os modos de combatê-la, mas também sobre a dificuldade de distinguir ações racistas no dia a dia. Desde os estudos sociológicos desempenhados por Florestan Fernandes, tem-se o discernimento de que os brasileiros possuem preconceito de ter o próprio preconceito. Nesta toada, embora os brasileiros estejam convictos da existência do preconceito e da discriminação raciais, muitas vezes não creem que isto abale intensamente a vida daqueles que são discriminados. 

Com frequência também não se acredita que a discriminação racial possa afetar e comprometer o desempenho escolar de crianças e jovens afrodescendentes, suas expectativas de vida e, com efeito, as alternativas profissionais e as oportunidades de obterem bons trabalhos. Não só o Brasil é um Estado-nação em que se pratica o racismo sem que existam racistas, como o racismo é encarado como algo relativo. Quase todos assentem a prevalência de desigualdades raciais, mas é praticamente impossível constatar o racismo consentido em vigor.

Socializados em um senso de superioridade integralizado do qual não nos damos conta ou que jamais assumimos, nos tornamos suscetíveis quando dialogamos sobre raça. Nossas cosmovisões raciais são um obstáculo às nossas próprias identificações de indivíduos bons e dotados de moral. Por conseguinte, notamos todo intento de nos associar ao sistema racista, mesmo que inconsciente, como uma injúria ética e inaceitável. 

Assim, até mesmo uma circunstância de diminuto estresse racial, como por exemplo, a sugestão de que ser branco é ser privilegiado, pode se tornar inaceitável, suscitando certos sentimentos como ódio, temor e ressentimento. Também podem ser tecidos fundamentos com o intento de desqualificar as pessoas que ponderaram sobre o tema.

Em que pese seja engatilhada pelo incômodo e pelo desassossego, a fragilidade branca nasce do seu senso enviesado de superioridade. Então, esta fraqueza não se demonstra espontânea ou intrínseca, mas em verdade é poderoso instrumento de controle racial e de salvaguarda de privilégios.

A habilidade de raciocinar foi inserida como uma matéria de educação e “de berço”, pela qual se começa em especificações de tempo, espaço e regras sociais, com o homem branco e proprietário, concedendo o estandarte. Marginalizações pautadas em classe social, gênero e etnia foram a consequência lógica. Ao definir diretrizes culturais determinadas, o universalismo permitiu marginalizações, por meio das quais se constatou que a liberdade não tinha aplicabilidade nas sociedades tidas como atrasadas e retrógradas.

Não é por menos que pensadores como Karl Marx expuseram que o Direito é um instrumento para a subjugação, sempre a favor de uma classe prestigiada. Entretanto, a partir da ocasião em que se inicia o entendimento de suas alternativas emancipatórias, denota-se um tipo de alvorecer dos sujeitos subordinados para o Direito. Isso compõe a percepção de centralidade do Direito que regeu e comanda a globalização neoliberal do desfecho do século 20 e começo do 21. Tal circunstância já foi denominada de “etnia.gov”, tratando-se da judicialização das demandas sobre autodeterminação, identidades culturais, reparações históricas e outros.

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