Pensamento constitucional brasileiro nas origens

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O ano de 2024 encerra um ciclo importante de bicentenários na história constitucional brasileira, que, considerado nosso processo de Independência, tem por marco inicial o ano de 2008 (chegada da Família Real à então Colônia do Brasil em 1808), passa por 2017 (Revolução Pernambucana de 1817), por 2022 (Independência do Brasil) e por 2024, em que se registram os Bicentenários da Constituição do Império, de 25 de março de 1824, e da Confederação do Equador, de 2 de julho de1824.

A Confederação do Equador foi um movimento constitucional revolucionário e emancipacionista eclodido em reação à outorga da Constituição do Império de 1824 pelo imperador dom Pedro I, bem como à sua ingerência quanto à definição do presidente da Província de Pernambuco.

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Com a renúncia do então presidente Francisco Paes Barreto, os pernambucanos prontamente elegeram Manoel de Carvalho Paes de Andrade o novo presidente. Contudo, como o imperador já havia, por meio da Carta de Lei, de 20 de outubro de 1823, revogado os poderes das Províncias para elegerem os próprios presidentes, ele indicou para a referida função o Morgado do Cabo, Francisco Paes Barreto, que não gozava de boa reputação na região.

Frei Caneca, que a essa época já havia iniciado sua “carreira” de escritor e pensador político, tendo já publicado escritos de peso como Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria, escrita nos primeiros dias de janeiro de 1822 conforme registro em Evaldo Cabral de Mello[1], e Cartas de Pítia a Damão, alertava para o risco de se aceitar a indicação imperial para presidente da Província de Pernambuco: a imposição da Carta do Império de 1824, via câmaras municipais em Pernambuco[2].

E, obviamente, temos de perguntar: qual era o problema com a “Constituição” do Império?

Quem nos responde é o próprio Frei Caneca que, apesar de não ser jurista de formação, foi um preeminente intelectual e pensador político de seu tempo[3] e desenvolveu aquele que talvez tenha sido o mais contundente estudo crítico de teoria constitucional imperial[4].

Trata-se de seu voto apresentado perante a Câmara Municipal do Recife em 6 de junho de 1824, quando convidado pelo presidente daquela Casa para oferecer sua opinião sobre a aprovação ou rejeição da “Constituição” do Império, então já jurada pelo imperador dom Pedro I, em 25 de março de 1824. Seu discurso intitula-se Crítica da Constituição outorgada[5].

O frade carmelita pernambucano articulou uma teoria da legitimidade constitucional sob a perspectiva formal e material, antecipando em muitos anos o que a doutrina constitucional ainda viria a desenvolver. Para ele, somente se poderia falar em “Constituição”, ou Constituição legítima, se se observassem duas condições elementares, uma de forma (ou procedimento) e outra de conteúdo.

Quanto à forma, Frei Caneca, forte em pensadores clássicos e contemporâneos (principalmente, os franceses), como Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Joseph Sieyès, entendia que a soberania não residia no rei, monarca ou, caso do Brasil, no imperador dom Pedro. A soberania residia na nação, e era a nação – ela e somente ela – quem poderia convocar a Assembleia Constituinte e celebrar o pacto social, cuja ata se formalizaria na Constituição.

O imperador, como se sabe, convocara a Constituinte do Brasil, que em 3 de maio de 1823 iniciou seus trabalhos, porém foi dissolvida por ele mesmo em 12 de novembro de 1823. Sobre essa longa temporalidade constituinte, o que é importante destacar, para os fins do presente texto, são três diretrizes do discurso inaugural de dom Pedro I[6], proferido na data de abertura da Constituinte, que deveriam nortear os trabalhos dos deputados representantes da nação.

Primeiro, ele recomendou aos constituintes não se deixarem conduzir por teorias abstratas e racionalistas “fazendo uma Constituição sábia, justa, adequada, e executável”, apoiada em bases sólidas, consolidadas pela “sabedoria dos séculos” e aptas “para darem uma justa liberdade aos Povos”.

Segundo, ele destacou que a Constituição deveria criar as condições materiais necessárias para realizar a felicidade geral da nação, portanto seria imprescindível conferir-se “toda a força necessária ao Poder Executivo”.

Terceiro, a parte mais polêmica de sua fala, ele condicionou a “Minha Imperial Acceitação” (da Constituição) a que ela (a Constituição) fosse “digna do Brasil, e de Mim”.

Como o Projeto de Constituição da Constituinte de 1823 não cumpriu sua cartilha, o que não o agradou[7], o imperador ao argumento de “perjúrio” dissolveu a Constituinte com a promessa de convocar outra para elaborar uma Constituição “duplicadamente mais liberal”, conforme expressamente previsto no Decreto de 12 de novembro de 1823[8].

Não se chamou, contudo, uma nova Constituinte. Ao contrário, o imperador instituiu o Conselho de Estado, nos termos do Decreto de 13 de novembro de 1823, que ficou responsável pela elaboração do novo Projeto de Constituição, o qual não foi discutido nem aprovado por qualquer Assembleia Constituinte.

Elaborado pelo citado Conselho, foi remetido ao imperador e, pela Decisão nº 179, de 17 de dezembro de 1823, do ministro do Império João Severiano Maciel da Costa[9], determinou-se o encaminhamento desse novo Projeto do Conselho de Estado para a apreciação pela Câmara do Rio e pelas demais Câmaras Municipais do Império.

Após, receber representações de aprovação unânime da vasta maioria dessas Câmaras, de acordo com o expresso teor do Decreto de 11 de março de 1824, o imperador determinou que o Projeto de Constituição do Conselho de Estado fosse jurado como Constituição do Império, em 25 de março de 1824[10], e, por meio do Decreto de 26 de março de 1824, o imperador determinou ainda o cancelamento das eleições gerais para Constituinte.

Por não haver sido submetido ao crivo de uma Constituinte, Frei Caneca[11] sustentou que a “Constituição” de 1824 não era uma Constituição legítima:

“(…) como S. M. I. não é nação, não tem soberania, nem comissão da nação brasileira para arranjar esboços de constituição e apresentá-los, não vem este projeto de fonte legítima, e por isso se deve rejeitar por exceção de incompetência”.

A análise do carmelita prosseguiu e aprofundou a partir do texto da Carta de 1824. Do ponto de vista legitimidade material da Constituição, Frei Caneca tinha sobretudo em mente o conceito de Constituição expressamente positivado na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Art. 16. Qualquer sociedade, na qual uma norma não tenha estabelecido a garantia dos direitos nem a separação dos poderes, não tem Constituição”.

Era da essência da Constituição que ela fosse idônea a limitar o exercício do poder político do governante. E a “Constituição” do Império de 1824 seria incapaz de fazê-lo.

Frei Caneca afirmou que ela não definiu com precisão, no art. 1º, o território do Império, o que punha em xeque e sem garantias a principal e primeira questão do Brasil: “a emancipação e independência de Portugal”[12]. Além disso, permitia-se ao imperador fragmentar as Províncias do Império (art. 2º) e celebrar, sem a interveniência da Assembleia Geral, tratados que envolvessem cessão ou troca de território do Império (art. 102, VIII). No limite, a restauração do Brasil ao Reino de Portugal era uma possibilidade.

Dava-lhe também o controle privativo do emprego das forças de segurança e de defesa do Império (as forças armadas marítima e terrestre), o que configuraria “a coroa do despotismo e a fonte caudal da opressão da nação”[13].

Criticou, ainda, a grande influência do imperador sobre o Poder Legislativo, seja em relação à Câmara dos Deputados, seja ao Senado Federal. Quanto ao Senado, cabia-lhe nomear vitaliciamente os senadores a partir de uma lista tríplice, razão por que a Casa Alta se tornaria “a classe da nobreza opressora dos povos”[14]. Quanto à Câmara, casa por excelência de representação da nação, ele poderia dissolvê-la, convocar de imediato outra substituta, prorrogá-la ou adiá-la. Desse modo, a soberania da nação ficaria ofuscada pela autoridade do imperador, subvertendo-se a lógica da monarquia constitucional.

Nada, porém, na “Constituição” do Império, seria mais inconcebível do que a previsão do Poder Moderador – o quarto Poder (art. 10), que, nas palavras de Frei Caneca[15], configurava “a chave mestra da opressão da nação brasileira”, a “nova invenção maquiavélica” e o “garrote mais forte da liberdade dos povos”.

Com efeito, o Poder Moderador, tal qual examinado por Benjamin Constant[16], destinava-se a assegurar o equilíbrio e a harmonia dos outros poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo). No entanto, consoante ressaltava Constant, era essencial que o Moderador não fosse ocupado pela mesma pessoa que viesse a titularizar qualquer um dos outros três poderes, pois, em tal hipótese, o governo monárquico constitucional se desvirtuaria para uma monarquia absolutista. Foi justamente o que não aconteceu com a “Constituição” do Império, à luz da qual o imperador era o titular do Moderador (art. 98) e o chefe do Executivo (art. 102).

Sob tais circunstâncias, autorizava-se ao imperador governar com uma Constituição, mas sem ser por ela limitado, já que poderia interferir no funcionamento de todos os demais poderes (Legislativo e Judicial). Daí, no preciso comentário de Nelson Saldanha[17] sobre os propósitos de dom Pedro em relação à Constituição para o Brasil: “aquele Guilherme de Orange às avessas pretendia adequar a ele o nosso Bill”.

Esses argumentos todos conduziram Frei Caneca a afirmar que tínhamos uma “Carta”, mas não uma “Constituição”. A “Constituição” de 1824 não passava de uma Carta Constitucional, por haver sido outorgada (sem passar pelo crivo da Assembleia Constituinte) e por haver concentrado a tal ponto poderes nas mãos do imperador que não seria idônea a conter suas arbitrariedades.

Seu pensamento constitucional, como referido acima, estava na base ideológica e filosófica da Confederação do Equador. A revolução constitucional, que defendia novo projeto político de Brasil, republicano e federalista, não prosperou. Foi sufocada pelas forças imperiais.

Frei Caneca foi preso. Sumariamente julgado e condenado à forca. Ainda, no ato final de vida, contrariou a ordem posta, pois sua sentença não foi cumprida no rigor. Não foi enforcado, por recusa dos carrascos. Terminou arcabuzado.

Seu desfecho, assim como a história do Brasil Império até a renúncia de dom Pedro I em 1831, mostram que o frade carmelita estava certo em sua crítica constitucional ao imperador, que à frente do Império adotou uma postura errática em relação à defesa da independência brasileira e à Carta de 1824 por ele outorgada[18].

Tivéssemos nós não desperdiçado essa rica experiência constitucional[19], soubéssemos nós que o constitucionalismo imperial configura o terreno fértil de onde brotaram e se moldaram as nossas instituições políticas atuais, certamente não precisaríamos – em 2024 – assistir ao Supremo Tribunal Federal julgar a ADI 6457 (Rel. Min. Luiz Fux), para afirmar que a missão institucional das Forças Armadas “é incompatível com o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”.

Por isso, mais do que a celebração de uma importante efeméride, refletir sobre a Carta Constitucional de 1824, a Confederação do Equador e o pensamento constitucional de Frei Caneca significa um gesto de afirmação da própria liberdade e democracia, pois como ele próprio po(f)etizou:

“Tem fim a vida daquele
Que a pátria não soube amar;
A vida do patriota
Não pode o tempo acabar.

O servil acaba inglório
Da existência a curta idade;
Mas não morre o liberal,
Vive toda a eternidade”.


[1] Cf. CANECA, Frei. Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria. In: Frei Joaquim do Amor Divino Caneca (Org. Evaldo Cabral de Mello). São Paulo: Editora 34, 2001, p. 53.

[2] Cf. CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. A Confederação do Equador: uma breve história de um movimento revolucionário. Recife: Secretaria de Educação e Esportes, 2024, p. 18-20.

[3] Cf. PEREA, Romeu (Coord). Ensaios Universitários sobre Frei Joaquim do Amor Divino (Caneca). Recife: UFPE, 1975, passim.

[4] Cf. VEIGA, Gláucio. História das ideias da Faculdade de Direito do Recife. Vol. I. Recife: Universitária, 1980, p. 290-297.

[5] Cf. CANECA, Frei. Crítica da Constituição outorgada (1824). In: Ensaios Políticos. Rio de Janeiro: Documentário, 1976, p. 67-75.

[6] Cf. BRASIL. Diário da Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil (1823). Tomo I. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 15-19.

[7] Cf. MORAES, Alexandre José de Mello. A independência e o império do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 103.

[8] Cf. BRASIL. Collecção das leis do império do Brazil de 1823 (decretos, cartas e alvarás). Parte II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, s/d, p. 86.

[9] Cf. BRASIL. Collecção das decisões do governo do império do Brazil de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887, p. 124.

[10] Cf. BRASIL. Collecção das leis do império do Brazil de 1824 (decretos, cartas imperiaes e alvarás). Parte II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 14-15.

[11] Cf. CANECA, Frei. Crítica da Constituição outorgada…, p. 72-73.

[12] Cf. CANECA, Frei. Crítica da constituição outorgada…, p. 69.

[13] Cf. CANECA, Frei. Crítica da constituição outorgada…, p. 72.

[14] CANECA, Frei. Crítica da constituição outorgada…, p. 71.

[15] CANECA, Frei. Crítica da constituição outorgada…, p. 70.

[16] Cf. CONSTANT, Benjamin. Escritos de política (Org. Célia Quirino). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[17] Cf. SALDANHA, Nelson Nogueira. História das idéias políticas do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 105.

[18] Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. O Império em construção: Primeiro Reinado e Regências.2. ed. São Paulo: Atual, 2012, p. 55-85.

[19] Cf. AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

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