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No mês em que se completam 60 anos do golpe militar que nos assombrou, resquícios deste passado se mostraram ainda presentes e deram a dimensão do desafio que a sociedade brasileira precisa enfrentar no processo ainda em curso de consolidar a sua democracia.
Duas situações exemplificam o problema: a primeira se refere à forma como a Polícia Militar tem atuado em anos recentes no combate ao crime e em particular as ações ocorridas recentemente no estado de São Paulo. A segunda se associa ao debate iniciado a respeito da decisão do STF sobre o papel das Forças Armadas na interpretação do já famoso artigo 142 da Constituição Federal. Estes dois temas ganharam centralidade nos noticiários dos últimos dias e remontam este passado do qual não nos livramos ainda.
Não é de hoje que as Polícias Militares são criticadas por ações que resultam em mortes. Os inúmeros relatos de sua truculência no trato com a população, no combate ao crime e as denúncias de formação de milícias em alguns estados são recorrentes e já nem causam mais estranheza. Porém, a gestão da PM paulista pelo governador Tarcísio de Freitas e seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, aumentam o tom das críticas e da preocupação.
No último mês, foram trocados 34 coronéis de cargos da polícia, de um total de 63. As afirmações são de que desalinhados ou críticos à politização da polícia foram afastados. Os desligados seriam pessoas que defendiam uma posição apolítica da PM, ou eram favoráveis ao uso das câmeras por polícias, motivos alegados para que o secretário os desligasse. Por outro lado, dentre os coronéis que foram promovidos estão pessoas como Aleksander Toaldo Lacerda, que em 2021 foi afastado por insuflar o golpe de estado no país. Se as denúncias estiverem corretas, o processo em curso é de aumento do interesse político no alto comando da Polícia Militar paulista.
É preciso considerar o que os trabalhos na área já afirmam há tempos: uma polícia militarizada cria uma outra hierarquia e mecanismos de promoção e punição distintos daqueles a que os civis estão sujeitos. Os processos e interesses são diferentes, aproximando este ambiente ao das Forças Armadas. Ao destacar que um dos principais problemas enfrentados atualmente é a violência, a população brasileira será satisfeita com uma polícia bem treinada, segura em suas ações e que tenha seus fins alinhados com este objetivo.
Se a polícia atua em uma lógica diferente, com outros interesses interferindo, cria-se naturalmente uma dinâmica que pode afastar seus objetivos deste fim. Além disto, aumenta a capacidade de influência e, consequentemente, de barganha das próprias Forças Armadas, à medida que as Polícias Militares estejam alinhadas. Afinal, seu contingente não é desprezível e podemos imaginar a partir do episódio de 8 de janeiro de 2023 o que uma polícia mal-intencionada pode proporcionar.
Claro, a Polícia Civil brasileira não é isenta de críticas similares em termos da sua qualificação e capacidade de ação. Está aquém daquilo esperado para que cumpra suas funções adequadamente. Também se espera que estejam a altura do desafio do trabalho de alto risco que cumprem. Seja militar, seja civil, um policial atua sob elevadíssimo nível de estresse e precisa estar bem preparado física e psicologicamente para lidar com isso. Mas a carreira civil não precisa lidar com o interesse de uma corporação militar e as suas decorrências.
A segunda situação tem a ver com o dimensionamento das Forças Armadas na Carta Constitucional. Na última segunda feira (1º), o STF formou maioria para a decisão que retira das Forças Armadas a possibilidade de que atue como Poder Moderador, ressaltando seu papel como órgão de Estado e não de governo. Ou seja, por esta interpretação, não há possibilidade de que uma intervenção militar seja considerada constitucional.
Esta possibilidade aventada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro com o intuito de estabelecer-se como ditador de ocasião “jogando nas quatro linhas da Constituição” já produziu efeito entre parlamentares e o governo. Começa-se a discutir a possibilidade de que a Constituição seja modificada para que um novo texto impeça que o STF reinterprete-o no futuro e, assim, ponha novamente esta possibilidade em jogo. O debate deve caminhar nas próximas semanas e deve ser observado com atenção.
Ambas as situações são exemplares de esforços ainda a serem cumpridos pela democracia brasileira para estabelecer os limites da relação entre civis e militares em que vigore um Estado democrático de Direito e todas as suas garantias. O papel dos militares não pode estar associado a uma esfera de responsabilidade que é dos civis, a partir das leis e instituições criadas para tomar decisões democraticamente. Mas isto tudo não é claro em nenhuma dessas situações.
Aliás, quando os assuntos envolvem os militares, presidentes pisam em ovos – Lula inclusive. Como um outro exemplo simples, basta lembrar a manutenção das prerrogativas previdenciárias mantidas nas últimas reformas realizadas por alguns presidentes.
O papel que os militares têm na democracia brasileira ainda é algo a ser transformado. Não foi até agora, mesmo 60 anos após darem o golpe e 39 após saírem do poder. Se quisermos pensar em um regime democrático em que as garantias dos direitos dos cidadãos estejam de fato em suas mãos, é preciso enfrentar esta situação. Quanto mais cedo, melhor. Ainda mais, quando o contexto político é de utilizá-los para interesses que colocam a democracia em risco.