712 mil mortos: crimes da pandemia não podem nem devem ficar impunes

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Em 11 de março de 2020, o diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom, declarou oficialmente que o mundo estava diante de uma pandemia de Covid-19, doença causada pelo vírus sars-cov-2. Em 5 de maio de 2023, o órgão declarou encerrado o quadro de emergência de saúde pública de interesse internacional.

Nas duas colunas anteriores foram elencados os esforços da OMS para aperfeiçoar seu quadro regulatório para o enfrentamento de futuras pandemias, com destaque para as reformas realizadas no Regulamento Sanitário Internacional e o fracasso para a aprovação de um novo acordo sobre pandemias no âmbito da Organização.

Hoje o tema será retomado, abordando-se a necessidade de também o Brasil agir para que nas futuras pandemias possamos nos sair melhor do que fomos na pandemia da Covid-19.

Muitas ações são necessárias, sobretudo a necessidade de aprovar uma nova legislação federal de vigilância em saúde que atualize a legislação vigente e trate especificamente de organizar a estrutura e as ações do Estado brasileiro em futuras pandemias.

No entanto, dentre as diversas lições de casa que temos que fazer como país, destaca-se a necessidade imperiosa de se responsabilizar de forma exemplar as autoridades federais que cometeram crimes durante a pandemia.

Apurar e processar as condutas dos agentes públicos para que crimes contra a saúde pública não se repitam

Sempre importante lembrar: do início da pandemia até o dia 1º de agosto de 2024 o Brasil acumulou 712.769 mortes pela doença. Até o fim do cenário pandêmico, foi o segundo país com mais mortos pelo vírus, em termos proporcionais, e somou 10% das mortes oficiais causadas pela doença no mundo todo. Isso significa que a cada 10 óbitos registrados no mundo por Covid-19, 1 ocorria no Brasil.

Esse número de mortes não condiz com o potencial que o Brasil tinha para enfrentar a pandemia à época. Quando da declaração da pandemia, o Brasil talvez fosse um dos países melhor preparados para enfrentar o que viria, uma vez que contava com altos índices de confiança da população nas autoridades sanitárias, possuía uma estrutura de saúde pública cuja capilaridade e universalidade são únicas no mundo – o Sistema Único de Saúde (SUS) –, e uma tradição de respeito a evidências científicas na elaboração de políticas públicas, notadamente aquelas sanitárias.

Mas todo esse conjunto de vantagens estratégicas foi propositalmente sabotado pelos então governantes federais. A quantidade inadmissível de mortes por Covid-19 no Brasil é resultado da política sanitária adotada pelo governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, que se posicionou na contramão do que orientava a comunidade científica, a OMS, e a razoabilidade. Por atos e omissões, potencialmente contribuiu para a propagação do vírus e para a morte de centenas de milhares de brasileiros e brasileiras. Há provas indiciárias fartas e robustas que necessitam, no mínimo, serem tratadas adequadamente pelo sistema de justiça brasileiro.

Enquanto líderes do mundo inteiro se esforçavam para incentivar a população a observar medidas preventivas e controlar o contágio, o ex-presidente e membros de seu governo falavam, insistentemente, contra o uso de máscaras e o distanciamento social – inclusive insultando publicamente os cidadãos que cumpriam essas medidas; faziam passeios de moto (“motociatas”) pelo Brasil, desrespeitando frontalmente normas estaduais e municipais; promoviam um sem-número de aglomerações; desincentivavam a adesão da população à vacinação (nunca é demais lembrar que o ex-presidente chegou a associar a vacina ao desenvolvimento da Aids).

Integrantes do governo também recomendavam o uso de medicações ineficazes ao tratamento da doença e propagandeavam a existência do que chamavam de “tratamento precoce”, de modo a iludir a população com relação ao risco de contaminação e a estimulando a se arriscar no retorno a atividades normais; e, por fim, adotavam uma política sanitária inspirada em tese que ficou conhecida como “imunidade de rebanho”, ou “coletiva”, que consistia em não evitar, ou simplesmente promover o contágio da população pelo vírus, para que as pessoas que não viessem a óbito, adquirissem “imunidade natural” – estratégia de natureza evidentemente genocida.

Apesar do número inacreditável e da farta documentação desses e outros atos e omissões perpetrados pelo ex-presidente e por membros de seu governo, até o momento estas pessoas não sofreram nenhuma responsabilização criminal pelos crimes cometidos contra a população brasileira, a saúde pública e a Administração Pública.

Como concluiu estudo realizado por pesquisadores do Cepedisa/USP, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, as únicas iniciativas de responsabilização criminal provenientes da gestão anterior da Procuradoria-Geral da República (PGR) foram dez Petições Criminais protocoladas em decorrência do relatório final da CPI da Pandemia. No entanto, em 9 das 9 Petições que puderam ser consultadas – pois uma está sob sigilo – a mesma PGR requereu o arquivamento, ou seja, encerrou 100% de todas as suas iniciativas de investigação que puderam ser consultadas.

Além das Petições Criminais, os pesquisadores também identificaram três inquéritos criminais em trâmite no STF, concernentes a crimes cometidos por autoridades públicas relacionados à saúde pública no contexto da pandemia – dois deles abertos a pedidos da PGR, e um pela Polícia Federal. A PGR, à época, requereu o arquivamento dos dois inquéritos que havia solicitado a instauração e que tinham como investigado o ex-presidente Bolsonaro, manifestando-se favoravelmente apenas ao prosseguimento do inquérito promovido pela Polícia Federal, que investiga os senadores Chico Rodrigues (PSB-RR) e Telmário Mota (Solidariedade-RR) por desvio de recursos.

Em resumo, não há, atualmente, em tramitação, qualquer iniciativa de responsabilização criminal pelos crimes cometidos durante a pandemia pela PGR.

A impunidade pelos crimes cometidos por membros da administração federal anterior é especialmente preocupante, porque pode produzir uma “naturalização” de atos e omissões criminosos em contextos de emergência sanitária e comprometer sobremaneira o futuro da saúde pública no Brasil.

Considerando que a comunidade científica considera que fenômenos pandêmicos devem se tornar cada vez mais frequentes, é fundamental que responsabilidades criminais no contexto da pandemia de Covid-19 sejam apuradas e que as punições devidas sejam aplicadas, para que os princípios constitucionais relativos à saúde pública tenham a sua força normativa preservada, os direitos fundamentais à vida e à saúde sejam protegidos, e se restaure a autoridade das instituições sanitárias, bem como  o respeito às melhores práticas em saúde no Brasil.

Condutas e crimes a serem apurados e punidos

Durante a pandemia da Covid-19, o desrespeito de agentes públicos de alta graduação contra as normas jurídicas que protegem a saúde pública foi explícito e causador de muitas mortes que poderiam ser evitadas. Daí a necessidade de que tais autoridades públicas sejam devidamente responsabilizadas pelos crimes que cometeram contra a saúde pública, para que a proteção do direito à saúde no Brasil seja levada a sério por todos.

As condutas adotadas por estas autoridades federais à época são várias e fartamente documentadas, inclusive com atos normativos, documentos oficiais, vídeos e áudios. Com base nas Petições Criminais e Inquéritos que tramitaram pela PGR (quase todos arquivados), é possível identificar uma série de condutas que podem ser consideradas criminosas à luz do direito nacional e que necessitam, portanto, de apuração adequada, de ampla instrução probatória e de uma condenação criminal que seja digna de um país que se quer entender como um Estado democrático de Direito.

Dentre as condutas explícitas a serem investigadas para responsabilização criminal judicial destacam-se as seguintes: organizar, provocar e participar de aglomerações durante a pandemia; adoção e defesa da estratégia da “imunidade de rebanho” (ou “coletiva”) como política de governo para o enfrentamento do vírus; desincentivo ao uso de máscaras, ao isolamento social e a outras medidas preventivas; recomendação de medicamentos ineficazes.

À luz do direito pátrio, tais condutas podem ser potencialmente caracterizadas como crimes, cometidos pelo ex-Presidente e seus assessores, destacando-se os seguintes tipos penais: crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do Código Penal (CP)); crime de epidemia, qualificado pelo resultado morte (art. 267, §1 º, CP); crime de charlatanismo (art. 283, CP); crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132, CP);  crime de incitação ao crime (art. 286, CP); crime de prevaricação (art. 319, CP).

Que se faça o devido processo legal

O Brasil, como Estado democrático de Direito que é, deve seguir os trâmites judiciais necessários para apurar a existência ou não das referidas condutas e crimes para ao final decidir pela aplicação de sanções penais ou não. Esse é o dever da PGR nesse momento. Dar andamento aos processos judiciais necessários para essa apuração aprofundada, com contraditório e ampla defesa às partes.

Não se pode arquivar sem o devido respeito à lógica jurídica e à razão tantas denúncias tão evidentes das condutas e dos supostos crimes praticados durante a pandemia. Os argumentos apresentados nos arquivamentos são frágeis e alguns deles apresentam equívocos científicos visíveis e facilmente identificáveis. A Procuradoria-Geral da República, com nova gestão, deve rever esses processos e dar seguimento às investigações ou denúncias cabíveis.

Deixar tais ações e omissões passarem em branco, sem sequer um bom contraditório judicial, será uma vergonha nacional (mais uma) e, principalmente, um desrespeito aos mortos e aos seus familiares. Sem anistia para os crimes da pandemia!

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