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Inteligência artificial, concorrência e ecossistemas digitais

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Os debates sobre os impactos da inteligência artificial (IA) na concorrência estão longe de serem inéditos, mas talvez esse seja o momento mais importante para tratá-los com seriedade no Brasil. Embora os principais polos de desenvolvimento de inteligência artificial estejam concentrados em países como China e Estados Unidos, a fala do presidente Lula na 2ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT) sobre a necessidade de criação de uma política para IA que torne o Brasil um país competitivo na área demanda uma reflexão mais profunda sobre a concorrência, que ultrapassa as abordagens tradicionais do direito antitruste.[1]

Durante anos tem-se discutido a relação entre aprendizado em máquina e o potencial danoso da colusão algorítmica para a concorrência[2]. Como resultado, o debate sobre concorrência e IA muitas vezes é moldado por uma abordagem punitiva, que busca enquadrar o funcionamento de sistemas dentro dos parâmetros das condutas anticompetitivas já estabelecidas. Por vezes, parece até mesmo que essa discussão é distante do debate sobre plataformas e mercados digitais. Fato é que essa relação ente direito antitruste e IA ultrapassa a perspectiva colusiva, permeando os novos desafios dos ecossistemas digitais como um todo, o que torna necessária uma atualização das premissas que vêm sendo consideradas há tempos[3].

Assim, não apenas é necessário reunir as discussões sobre plataformas digitais e IA, mas também garantir que o debate esteja alinhado com outras iniciativas que envolvem a adoção de marcos regulatórios relativos aos ecossistemas digitais, mesmo que não estejam diretamente sob a competência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Ou seja, é necessário que pressupostos e delimitações do direito antitruste sejam expandidos e traduzidos para outras esferas, considerando-se a concorrência à luz da forma como sistemas de IA são estruturados e sua capacidade de processamento de informações. Embora essa preocupação esteja predominantemente concentrada no desenvolvimento dos novos modelos de IA Generativa, ela também se aplica a outros tipos de IA[4], podendo ser considerada nos debates sobre princípios éticos que devem nortear a sua utilização.

Esse aspecto foi ressaltado no documento “Recomendação sobre Ética da Inteligência Artificial” elaborado pela Unesco em 2021. Nessa ocasião o órgão destacou a importância da adoção de medidas para garantir mercados competitivos e prevenir abusos de posição relacionados a sistemas de IA, ressaltando também que países menos desenvolvidos estão mais expostos e vulneráveis a possíveis abusos de domínio de mercado devido à falta de infraestrutura, capacidade humana e regulamentação, entre outros fatores.

Assim, além de considerar os mercados afetados pela utilização da tecnologia, talvez seja necessário um olhar mais atento para a estruturação e funcionamento da tecnologia em si, em especial, dos fatores necessários para o desenvolvimento desses sistemas. Sob a perspectiva da estruturação de sistemas de IA complexos, por exemplo, a big data é um “insumo” já bem conhecido. No entanto, é fundamental entender que os “inputs” (entradas) devem ser compostos por um grande volume de informações, que os dados devem ser de qualidade e que deve existir capacidade de processamento para que ocorra o processo de “descoberta de conhecimento em bases de dados”[5]. Caso contrário, a qualidade dos “outputs” (resultados) será pouco satisfatória.

Nesse sentido, a extração de conhecimento deve considerar elementos como o grau de autonomia do algoritmo, o tipo de aprendizado de máquina, a capacidade de extração e tratamento dos dados, a capacidade para gerar novos dados, o tamanho da base de dados disponível, o poder computacional necessário, a base de usuários existente e os efeitos de rede associados, o acesso a modelos de IA avançados, além da experiência acumulada pela empresa no campo da tecnologia e inovação. Como bem ressaltado pela Autoridade da Concorrência Portuguesa[6], fatores como esses fazem com que exista uma tendência a altos níveis de concentração de mercado.

Por esse motivo, assegurar a livre concorrência em mercados digitais vem desafiando paradigmas pré-estabelecidos do direito da concorrência tradicional, sendo necessário considerar outros “valores” ou parâmetros de competitividade. Exemplo disso é a proposta do Digital Markets Act (“DMA”)[7] que tem como norte garantir a contestabilidade e a equidade (fairness and contestability) dos ecossistemas digitais, assim como repensar os modelos das autoridades da concorrência, por meio do estabelecimento de um sistema de regulação ex ante¸ responsiva[8] e assimétrica (voltado especificamente para “gatekeepers”). Além disso, outras iniciativas europeias voltadas para os ecossistemas digitais também buscam promover a concorrência, tanto diretamente quanto indiretamente, indo além das estruturas tradicionais das autoridades da concorrência.

O Data Act[9], por exemplo, traduz de forma expressa a preocupação concorrencial com o “lock-in” dos usuários e a necessidade de promover a interoperabilidade de dados entre plataformas como forma de aumentar a competitividade e inovação em mercados. O regulamento também relaciona o direito à portabilidade, conforme previsto no GDPR, com as obrigações e proibições estabelecidas pelo DMA para os chamados “gatekeepers”  [10]. Da mesma forma, o Digital Services Act (“DSA”) usa o tamanho da plataforma como critério para atribuir responsabilidades e obrigações para mitigação de risco, inclusive levando em consideração o impacto à concorrência na análise de riscos sistêmicos.[11]

O recém-aprovado[12] Artificial Intelligence Act (“AI Act”)[13], por sua vez, trata diretamente da relação entre sistemas de IA e a concorrência em diversas passagens, estabelecendo inclusive que o desenvolvimento de Sandboxes regulatórios deve fomentá-la. Além disso, o AI Act estipula que os concorrentes não devem ter vínculos com os órgãos notificados e a autoridade de supervisão do mercado responsáveis por garantir a conformidade dos sistemas de IA de alto risco, sob o risco de comprometimento dos processos.[14]

Dessa forma, ao refletirmos sobre as iniciativas atualmente sob discussão no Brasil é necessário ir além do debate sobre ter o não um DMA brasileiro, como proposto no PL 2768/2022. É necessário considerar a competitividade em diversas iniciativas regulatórias, como por exemplo o PL 2338/2023, que trata da regulação da inteligência artificial, incentivando-se um debate sério sobre o incentivo à inovação, enquanto se garante um mercado competitivo.

A concorrência nos ecossistemas digitais é fundamental e deve ser um considerada um valor transversal em diversos contextos regulatórios, indo além da atuação do Cade e da prática antitruste tradicional.

[1] Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202403/lula-vamos-aceitar-este-desafio-e-nos-tornar-grandes-no-campo-da-inteligencia-artificial  Acesso em 16 de março de 2024.

[2] OECD. Algorithms and Collusion: Competition Policy in the Digital Age. 2017. Disponível em: https://web-archive.oecd.org/2019-02-17/449397-Algorithms-and-colllusion-competition-policy-in-the-digital-age.pdf Acesso em 16 de março de 2024.

[3] BOSTOEN, Friso. Artificial Intelligence and Competition Law. In: Nathalie Smuha (ed.). The Cambridge Handbook on the Law, Ethics and Policy of Artificial Intelligence. Cambridge: Cambridge University Press, 2024. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4655894 Acesso em 16 de março de 2024.

[4] Nesse sentido ver o relatório produzido pela Autoridade da Concorrência portuguesa intitulado: Competition and Generative Artificial Intelligence. Disponível em: https://www.concorrencia.pt/sites/default/files/documentos/Issues%20Paper%20-%20Competition%20and%20Generative%20Artificial%20Intelligence.pdf Acesso em 18 de março de 2024

[5] Segundo Hildebrandt, esse processo seria composto por 5 fazer principais: 1) captura e limpeza; (2) agregação; (3) mineração de dados; e (4) interpretação. HILDEBRANDT, Mireille. Smart technologies and the end(s) of law: novel entanglements of law and technology. Belgium: Edward Elgar Publishing, 2015. p. 31.

[6] AUTORIDADE DE CONCORRÊNCIA. Competition and Generative Artificial Intelligence. Nov/2023. Disponível em: https://www.concorrencia.pt/sites/default/files/documentos/Issues%20Paper%20-%20Competition%20and%20Generative%20Artificial%20Intelligence.pdf Acesso em 18 de março de 2024

[7] Regulation (EU) 2022/1925. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?toc=OJ%3AL%3A2022%3A265%3ATOC&uri=uriserv%3AOJ.L_.2022.265.01.0001.01.ENG  Acesso em 18 de março de 2024

[8] CERRE. Implementing the DMA: Substantive and procedural principles. Disponível em: https://cerre.eu/publications/implementing-the-dma-substantive-and-procedural-principles/ Acesso em 18 de março de 2024

[9] Regulation (EU) 2023/2854. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2023/2854 Acesso em 18 de março de 2024.

[10] Considerandos 1 e 40, e Artigos 40, 61(2). Regulation (EU) 2023/2854. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2023/2854 Acesso em 18 de março de 2024.

[11] Considerando 81. Regulation (EU) 2022/2065. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A32022R2065 Acesso em 18 de março de 2024.

[12] Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20240308IPR19015/artificial-intelligence-act-meps-adopt-landmark-law Acesso em 18 de março de 2024.

[13] Considerando 3, 61, 61(a), e Artigo 53.1g(c). Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-5662-2024-INIT/en/pdf   Acesso em 18 de março de 2024.

[14] Artigo 33(4). Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-5662-2024-INIT/en/pdf  Acesso em 18 de março de 2024

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