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Semântica do golpe
Jair Bolsonaro, de cima do trio elétrico na avenida Paulista, em ato promovido por Silas Malafaia, no dia 25 de fevereiro, afirmou que não houve golpe. Golpe, afirmou, é tanque na rua.
A afirmação é correta; golpe, no Brasil, só poderia acontecer com a intervenção das Formas Armadas, seja ativamente (“dando” o golpe), seja passivamente (se omitindo diante de um golpe iniciado por terceiros).
De outro lado, a palavra também se refere a toda a trama que se vêm desvelando, a exemplo de expressões como “minuta do golpe”. O uso aqui também está correto e não há nenhuma contradição em aceitar ambos. É que, nesse segundo sentido, cuida-se de referência leiga ao “crime de golpe de Estado”.
Haveria diversas formas de criminalizar “golpes de Estado”. A mais inservível seria criminalizar apenas os golpes bem-acabados, ainda que não durassem muito tempo. O motivo é simples: depois do putsch os vencedores tornam-se os donos (ilegítimos) do poder. Quem os punirá? Talvez, anos depois, quando retomada a democracia, isso se não tiver havido anistia, recurso comum empregado para facilitar o abandono das armas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, optou-se pela figura do conspiracy. Segundo o Legal Information Institute, da Universidade Cornell, cuida-se de “um acordo entre duas ou mais pessoas para cometer um ato ilegal, junto com a intenção/dolo [intent] de alcançar o objetivo acordado”; em boa parte das jurisdições adiciona-se mais um elemento: um ato às claras rumo à execução do acordo.[1]
A Alemanha, por sua vez, criminaliza a preparação de “uma alta traição específica dirigida contra a Federação”, com pena de prisão entre 1 e 10 anos; a pena passa a ser perpétua, ou de pelo menos 10 anos, àquele que age para (unternimmt) comprometer a existência continuada da República Federal Alemã ou para mudar a ordem constitucional baseada na Lei Fundamental Alemã para a República Federal Alemã.[2]
Ambos os modelos criminalizam atos anteriores ao golpe (pelos óbvios motivos apontados) e posteriores, majoritariamente, à mera cogitação, ou ao mero ajuste. Nenhum dos desenhos legislativos, porém, emprega o verbo “tentar” ou o substantivo “tentativa”.
Não foi o caso brasileiro. Pune-se tanto tentar abolir o Estado democrático de Direito ou de impedir o exercício da Presidência pelo legitimamente eleito, valendo-se, em qualquer caso, de violência ou grave ameaça.[3]
Assim, Bolsonaro está correto ao dizer que não houve golpe (assim entendida a abolição do Estado democrático de Direito ou o impedimento da posse ou exercício da Presidência por Lula); também está correta a menção aos fatos recém-revelados como, em sentido leigo, “crime de golpe de Estado”. Nesse último caso marca-se a opinião de que os elementos mostram uma coordenação de agentes rumo a um dos resultados previstos nos tipos “de golpe”.
É preciso, então, indagar, agora com olhar técnico, se (já) se pode falar em um dos tipos contra o Estado democrático de Direito.
Os tipos de golpe
O recurso, na legislação brasileira, ao verbo “tentar” como núcleo do tipo agudiza uma complicação que já estaria presente na interpretação das figuras estadunidense e alemã. Agudiza porque o Código Penal contém uma definição de crime tentado, a se abrir, portanto, o debate se o “tentar”, nesses tipos, significa o mesmo que “crime tentado”, no art. 14 do Código.
No frigir dos ovos, porém, a questão é comum (salvo nas formulações que não demandam nenhuma ação às claras, isto é, para além da confabulação criminosa às escondidas): onde findam os atos preparatórios e onde se inicia a execução?
Vamos abordar o tema limpando o terreno. Se Bolsonaro está correto ao dizer que golpe é tanque na rua, está errado ao querer equiparar à afirmação de que “crime de golpe” é tanque na rua. Há crime antes disso, sob pena de o núcleo “tentar” não fazer nenhum sentido.
Tampouco há crime no vídeo gravado em 5 de julho de 2022, publicizado mais recentemente. Isso decorre do Código Penal que, explicitamente, exclui de punibilidade o mero ajuste ou determinação quando o crime sequer chega a ser tentado.
É preciso, então, analisar os elementos que se coligem e buscar neles um atuar rumo ao resultado típico (ainda que não integrante do tipo é rumo a ele que a conduta proibida necessariamente se orienta).
Destaco dois em apoio à posição de que houve tentativa tanto de abolição do Estado democrático de Direito como de impedir o exercício da Presidência por aquele legitimamente eleito. Um temporal, outro intencional.
Do ponto de vista temporal – a se confirmarem, via devido processo legal, os elementos existentes até aqui – tem-se que havia forte pressão junto ao comandante do Exército, que resistia ao golpe, tudo apontando para que sua adesão era a última e necessária para que, dia seguinte, os tanques estivessem, fática ou simbolicamente, nas ruas.
Do ponto de vista intencional, muito eloquente a minuta do golpe. Mais eloquente após a versão – pretendida como absolutória, mas, sustento, surtindo efeito contrário – oferecida por Bolsonaro no comício do dia 25.
Ali tinha-se um documento sob o nome de “estado de sítio”, uma remoção dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes e do presidente do Senado, e uma intervenção no Tribunal Superior Eleitoral.
O conteúdo do documento, apenas disfarçado de “estado de sítio”, é claramente golpista. Desde logo, ausentes os requisitos do estado de sítio. Pouco crível, ademais, que a ideia seria fazê-lo tramitar conforme a Constituição. Precisamente a quem incumbiria presidir o Congresso Nacional – o senador Rodrigo Pacheco – seria removido por tal documento. Por fim, e mais importante, o estado de sítio jamais poderia autorizar a intervenção no Poder Judiciário, tampouco remover um ministro.
Conclusão
Sim, habemus golpe, em tese. Digo em tese porque é preciso denúncia, recebimento, julgamento e decisão, observadas todas as garantias constitucionais. No sentido jurídico da palavra, insisto. E não, não habemus golpe. E é por isso que podemos e devemos responsabilizar a todos que se envolveram na empreitada criminosa, que esteve triste e perigosamente próxima de acontecer.
[1] https://www.law.cornell.edu/wex/conspiracy, consultado em 27 de fevereiro de 2024.
[2] Artigos 83 e 81, respectivamente, do Código Penal Alemão.
[3] Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência. Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.