O negócio jurídico processual no processo administrativo tributário

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Em um ambiente historicamente beligerante, a instauração do negócio jurídico processual (NJP) inova ao fomentar um cenário mais cooperativo e com potencial de contribuir para o desafogamento do Poder Judiciário, ao permitir que as partes customizem determinados procedimentos às particularidades de seu caso. O Código de Processo Civil (CPC) de 2015, em seu espírito de fomento à celeridade processual e à cooperação, inovou ao permitir a aplicação do NJP mesmo aos casos não previstos em lei, desde que passíveis de autocomposição.

No âmbito do contencioso fiscal, em 2018 a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) foi vanguardista ao regulamentar a celebração de NJP, por meio de duas portarias, tanto em execução fiscal quanto em relação aos demais procedimentos judiciais.

Já em 2019, como fruto da conversão da Medida Provisória 881, o NJP foi expressamente introduzido às demandas fiscais pela edição da Lei 13.874/2019, na forma de mutirões promovidos pelo Poder Judiciário em conjunto com a PGFN, bem como por meio de regulamentação promovida também pela PGFN, em seu âmbito de atuação. Interessante notar que o dispositivo menciona a aplicabilidade do NJP inclusive na cobrança administrativa ou judicial da dívida ativa da União, o que demonstra a possibilidade de ser avençado também nos procedimentos que antecedem à própria cobrança, isto é, no contencioso administrativo fiscal.

Na contramão dos cases de sucesso do NJP já registrados no âmbito da PGFN, o movimento ainda é tímido na esfera do contencioso administrativo, embora a redação da Lei 13.874/2019[1] pareça estabelecer a regulamentação apenas como uma possibilidade[2], já que não condiciona a celebração do NJP à regulamentação prévia.

Além disso, o artigo 15 do CPC dispõe sobre a aplicação do código processual civil aos processos administrativos, de forma supletiva e subsidiária[3], o que reforça a possibilidade da aplicação imediata do NJP ao contencioso administrativo a despeito de prévia regulamentação.

Outro ponto trazido pelo CPC, e que não nos parece ser uma barreira à sua aplicação ao contencioso administrativo, diz respeito à necessidade de validação do NJP pela autoridade competente pelo julgamento da demanda. Em uma interpretação sistemática, nos parece que a autoridade competente seria determinada em razão da demanda (veículo processual) em que os efeitos do NJP serão observados, por exemplo: caso se refiram a um futuro processo judicial (como a antecipação de garantia), a autoridade seria o juízo respectivo. Mas, caso se refira ao processo administrativo, a validação caberia à autoridade competente ao julgamento do caso.

Embora nessas condições o objeto do NJP possa ser mais limitado em razão da sumariedade do rito administrativo, podemos estabelecer que as possibilidades de seu uso são diversas na medida em que o objeto avençado seja passível de autocomposição. Isso permitiria, por exemplo, que o NJP fosse utilizado desde a instrução probatória em prazos paritários[4], até para formalizar garantia a partir do término do contencioso administrativo. Essa última medida, por exemplo, reduziria drasticamente as ações judiciais que os contribuintes propõem apenas para a constituição de garantia antecipada à execução fiscal.

Há um mundo vasto de opções que dificilmente podem ser estabelecidas de forma taxativa, o que se conclui quando se pensa em possibilidades como a calendarização de atos a um caso complexo e/ou que conte com diversos sujeitos passivos, o estabelecimento de regras especiais para produção de provas como garantia ao próprio princípio da verdade material, entre outras medidas aos casos em que haja multiplicidade de partes ou responsáveis solidários que dependam de prova de terceiros para sua defesa.

A edição mais recente do relatório Justiça em Números revela a alta litigiosidade dos temas relacionados ao Poder Público, com destaque às execuções fiscais como maior causa de morosidade no Poder Judiciário. Para endereçar esse e outros temas relacionados, uma Comissão de Juristas foi instituída com o objetivo de propor anteprojetos legislativos direcionados à dinamização, unificação e modernização do processo administrativo e tributário nacional.

A positivação do NJP para o contencioso administrativo fiscal certamente traria maior segurança e efetividade na respectiva utilização e seu efeito redutor de litígio. Porém, dos dez anteprojetos apresentados pela Comissão de Juristas, esse ponto não foi tratado pela redação original do PL 2692/2022[5], que regulamenta o processo administrativo tributário.

Já o PL 2481/2022, que trata do contencioso administrativo em geral, prevendo alterações[6] à Lei 9.784/99, estabelece a possibilidade de formalização do denominado NJP administrativo, que estipule mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da situação concreta, dentre elas, a própria calendarização.

Embora o processo administrativo tributário seja espécie do gênero do procedimento administrativo, tanto que a Lei 9.784/99 muitas vezes lhe é aplicada de forma supletiva, não há como ignorar que uma previsão expressa pelo PL 2692 em muito contribuiria para dirimir as discussões no âmbito da dogmática da indisponibilidade da coisa pública.

Assim, a conclusão que se chega até o momento é de que o tema pode contribuir para a construção de um cenário cada vez mais colaborativo entre fisco e contribuintes e que, nesse sentido, merece uma atenção especial pelo Congresso Nacional ao PL 2692.

[1] “Art. 19 (…)

13. Sem prejuízo do disposto no § 12 deste artigo, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional regulamentará a celebração de negócios jurídicos processuais em seu âmbito de atuação, inclusive na cobrança administrativa ou judicial da dívida ativa da União.”

[2] Dispositivo classificado como de eficácia relativa restringível, conforme DINIZ, Maria H. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica, à norma jurídica e aplicação do direito. Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627369, Pág. 144. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553627369/>. Acesso em: 09 mai. 2023.

[3] CARNEIRO, Júlia Silva Araújo. Possibilidade de Negócio Jurídico Processual em Matéria Tributária: uma leitura da Portaria PGFN 360/18. In:  Juliana Furtado Costa Araujo, Paulo Cesar Conrado (Coord.). Inovações na cobrança do crédito tributário, 2ª ed. São Paulo: RT Thomson Reuters. 2021, p. 207-208.

[4] CARNEIRO, Júlia Silva Araújo, op. cit, p. 207.

[5] Tal numeração se refere a sua tramitação na Câmara dos Deputados.

[6] “Art. 25-A. Os órgãos e entidades podem, em consenso com o administrado, celebrar negócio jurídico processual administrativo que estipule mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da situação concreta, antes ou durante o processo.

1° O negócio jurídico processual administrativo deverá ser celebrado após a manifestação do órgão jurídico, observados os princípios previstos no artigo 2° desta Lei.
2° As partes podem, consensualmente, fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.
3º O calendário vincula as partes, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados.
4° Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual cujas datas tiverem sido designadas no calendário.”

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