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Depois de mais de oito anos de o mar de lama da mineradora Samarco engolir o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), as vítimas ainda aguardam por decisões judiciais e indenizações. Também não houve punições criminais. Sem reparação, hoje a disputa se dá tanto na Justiça brasileira quanto na inglesa.
Há um ano e meio, o advogado e ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo atua na defesa das vítimas da tragédia do Rio Doce, no processo movido na Justiça da Inglaterra. Por lá, há um julgamento marcado para outubro. Ele defende que a reparação justa deve ser buscada em todas as instâncias.
O rompimento da barragem, em 5 de novembro de 2015, liberou 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração da Samarco. A lama correu e chegou até o mar do Espírito Santo. A empresa pertence às gigantes Vale e BHP Billiton, anglo-australiana, o que justifica a tramitação no país. Ainda assim, há questionamentos sobre a legitimidade da discussão ser feita fora do Brasil.
Em entrevista ao Estúdio JOTA, Cardozo afirma as vítimas atravessaram o Atlântico em busca de solução em razão da “má condução de negociações do Brasil”. E, mais que isso, pela “omissão evidente e pela enrolação” em um acordo pelas mineradoras envolvidas.
O advogado acredita que uma decisão favorável às vítimas na Inglaterra impactará a discussão no Brasil e no mundo. No país, é capaz de elevar o patamar financeiro das indenizações, ao considerar que os valores em jogo na Inglaterra superam em muito o que está posto na mesa de negociação no Brasil.
“Essa indenização não vai recompor tudo, sabemos disso. Mas ela tem uma dimensão de recomposição patrimonial, para aqueles que perderam tudo; e uma dimensão pedagógica, para que não façam mais isso. A opinião pública de todos os países tem que saber disso. Não há outra reparação possível, infelizmente”
José Eduardo Cardozo, advogado, ex-ministro da Justiça
Além disso, ele entende que a decisão é paradigmática para o mundo, e para a defesa do meio ambiente e direitos fundamentais. “Ela tem um paradigma que ultrapassa em muito as fronteiras do Brasil. Daí a sua relevância não só para o Direito, mas para a própria dimensão humana relacionada à atuação empresarial”, afirma.
Enquanto isso, no Brasil, a proposta mais recente no plano de repactuação entre as empresas envolvidas e os governos de Minas Gerais, Espírito Santo e União prevê o pagamento de R$ 82 bilhões aos estados e à União ao longo de 20 anos. A mesa de discussão foi criada em 2021 era prevista para durar 120 dias, mas completou três anos neste mês ainda sem conclusão.
Leia os principais pontos da entrevista.
JOTA: De início, poderia contar um pouco de como foi a sua aproximação com o caso?
Cardozo: Eu acompanhava esse caso pela imprensa, com a indignação normal do cidadão brasileiro. Mas tinha um distanciamento total dos fatos. Foi então que eu fui procurado pelo escritório Pogust Goodhead para essa ação que tramita na Inglaterra, com mais de 600 mil proponentes representados por eles. Na Inglaterra, esta ação tramita sobre o Direito processual inglês, mas é aplicável o Direito Brasileiro.
Em Londres, acabei tendo contato com algumas das vítimas, sejam pessoas físicas sejam os municípios. Eles não estavam sendo ouvidos na mesa de negociação comandada naquele momento pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Também pediram ajuda, então comecei também a manter essa relação aqui, mas não permitiriam que eu tivesse assento na mesa de discussão.
Essa falta de representação das vítimas é uma situação triste, então eu comecei a atuar nessa linha, inclusive como defensor da democracia.
Por que esse caso tramita no Brasil e na Inglaterra? Qual é a sua avaliação sobre essa tramitação dupla?
Em primeiro lugar, elas não são ações excludentes. O objeto da ação brasileira é um, e o da ação inglesa é outro. Ou seja, o fato de a Inglaterra, nos tribunais ingleses, ter aceitado julgar esse caso não significa nenhum desprezo, nenhum descaso à Justiça brasileira. A grande questão é que uma das empresas, a BHP, tem origem inglesa. Então a Justiça inglesa reconheceu a jurisdição. E foi a BHP que trouxe para o processo a Vale, como corresponsável.
“O fato de a Inglaterra, nos tribunais ingleses, ter aceitado julgar esse caso não significa nenhum desprezo, nenhum descaso à Justiça brasileira”
Para fazer uma retrospectiva temporal dessa negociação, a ação na Justiça britânica nasceu quando? Pode detalhar um pouco mais esse processo?
Ela nasceu em inércia das empresas não pagarem. É bem simples. Na medida em que uma indenização prometida não ocorreu, com situações bastante questionáveis da Fundação Renova — criada pelas empresas após a tragédia para lidar com a reparação. Ora, as pessoas diante disso se insurgiram e disseram: “se não estamos sendo ouvidos na tramitação da Justiça brasileira, vou procurar meus direitos”. E foram procurar na Inglaterra.
A ação inglesa só foi proposta pela má condução de negociações do Brasil. E, mais do que isso, pela omissão evidente e pela enrolação que essas mineradoras fazem.
Há questionamentos a respeito de uma eventual violação da soberania nacional pela tramitação do caso na Justiça da Inglaterra. Como o senhor entende essa questão?
As empresas brasileiras podem ser processadas no exterior, já as inglesas não podem ser processadas na sua terra. Por que não? Não é o mundo globalizado? Não é um mundo em que todos têm que responder por tudo? Elas podem vir aqui no Brasil fazer o que quiserem, destruir os nossos rios, aniquilar vidas, aniquilar culturas, como fizeram com os [indígenas] Krenak, Tupiniquim, Guarani e Pataxó. E não podem ser processadas lá? Eles têm que ser processados aqui e lá.
E se tiver algum outro país em que possa ser processado tem que ser, para que isso não mais se repita. A empresa tem que responder no país para onde remetia seus lucros. Não é caso de soberania nacional.
Além disso, tentam demonizar os advogados. Quando se tenta demonizar advogado é porque não há razão no Direito. Essa lição eu aprendi na faculdade. Quem não tem razão usa subterfúgios.
“As empresas brasileiras podem ser processadas no exterior, já as inglesas não podem ser processadas na sua terra. Por que não? Não é o mundo globalizado? Não é um mundo em que todos têm que responder por tudo?”
Ainda neste mês, o Instituto Brasileiro de Mineração pediu uma medida cautelar ao STF para reconhecer a inconstitucionalidade da atuação de municípios brasileiros em litígios no exterior. E o senhor chegou a assinar uma petição para que o Consórcio Público para Defesa e Revitalização do Rio Doce seja ouvido como amicus curiae, ainda sem resposta. Quais efeitos essa ação pode ter para esse caso?
Em primeiro lugar, a associação das mineradoras não tem legitimidade para propor esta ação. Segundo, pedem uma liminar para parar essa situação de contratação. Anos depois da ação proposta eles acham que é um perigo? Qual é o perigo? O perigo da derrota da Inglaterra.
Em terceiro lugar, a associação de mineradoras alega soberania nacional, porém está provado por meio de uma ata de reunião do Conselho Diretor do IBRAM, que é a BHP, uma mineradora estrangeira, quem está por trás dessa ação. Por isso, o IBRAM está agindo ilegal e indevidamente como representante processual da BHP. Tudo para que essa empresa se furte de pagar uma indenização devida e justa às vítimas, particularmente aos municípios. Então é uma ação, no meu ver, totalmente infundada.
Quais são as semelhanças e diferenças entre as ações no Brasil e na Inglaterra?
As semelhanças são em relação aos fatos, mas não em relação àquilo que se pede. Na Inglaterra, está se pedindo indenização àqueles que sofreram danos individualmente. Não está se cuidando de reparação objetiva, de obras que devem ser feitas ou de verba para a União ou para os estados.
Na ação no Brasil, corretamente, está se falando reparação do meio ambiente, em reparação daquilo que efetivamente ocasionou no rio, aos danos coletivos. Mas, até onde sabemos, já que o texto é confidencial e sem nenhum tipo de transparência ou participação popular, não há reparação pelos danos morais e materiais sofridos pelos indivíduos.
Outra diferença é que a tramitação na Inglaterra tem andado muito mais rápido do que no Brasil. A jurisdição foi aceita pela corte inglesa em 2022 e agora em 2024 já temos o julgamento marcado para outubro.
Resultado do rompimento da barragem em Mariana (MG) no Rio Doce | Foto: Agência Brasil
O que estará em jogo nessa30 data?
Essa será a primeira etapa do julgamento, quando se definirá se há responsabilidade ou não. A partir daí, se passa à apuração de quanto cada atingido deve receber. Eu tenho a convicção que nós vamos ganhar, e isso que está deixando as mineradoras em pânico.
Houve uma primeira fase de discussão, em que se discutiu seriamente, se seria competente à Justiça inglesa julgar esse caso. E afirmou-se que sim, são competentes, e que não seria uma duplicação de processos. Essa foi a primeira grande vitória por parte dos atingidos. Isto fez com que a BHP chamasse a Vale para o processo, temerosa de que tivesse que pagar sozinha pelo valor da indenização.
Então há uma perspectiva de que a Justiça inglesa seja favorável às vítimas?
Sinceramente, daquilo que eu tenho visto e acompanhado, a resposta é sim. Eu acho que as vítimas vão ganhar esse processo da Inglaterra, com valores indenizatórios muito superiores àqueles que estão sendo falados no Brasil. E só para eles, em um patamar superior ao geral que pretende se pagar no Brasil também para estados, municípios e União.
Se, na Justiça inglesa, as vítimas ganharem a ação ou pelo menos essa etapa, que impacto pode ter na tramitação da discussão aqui no Brasil?
É brutal. Qualquer negociação vai ser colocada em um patamar muito superior. Todos sabem que os padrões indenizatórios da Inglaterra são muito mais elevados. Enquanto eles falam aqui em R$ 110 e R$ 120 bilhões, lá se fala em R$ 220, R$ 230, R$ 240 bilhões. E, particularmente, no Brasil se não está dando uma atenção devida e orientada para os direitos dos atingidos, mas para o Estado. Por isso tentam matar a ação da Inglaterra, desacreditá-la aos olhos do Judiciário e da opinião pública brasileira.
“Qualquer negociação vai ser colocada em um patamar muito superior. Todos sabem que os padrões indenizatórios da Inglaterra são muito mais elevados”
Tendo em vista as dimensões culturais, ambientais, sociais da tragédia, as indenizações não têm o poder de reparar tudo. Qual é a importância delas?
Eles acabaram com a vida dos Krenak, os indígenas. Esta foi uma das coisas que mais me comoveram, que foi quando falei com os indígenas. Eles viviam do rio, que é considerado um deus deles na cultura local. A cultura deles era pesca. Ao acabarem com um rio, acabaram com a cultura de um povo.
Essa indenização não vai recompor tudo, sabemos disso. Mas ela tem uma dimensão de recomposição patrimonial, para aqueles que perderam tudo; e uma dimensão pedagógica, para que não façam mais isso. A opinião pública de todos os países tem que saber disso. Não há outra reparação possível, infelizmente.
Sobre esse tempo de tramitação dessas ações. Quais são os efeitos disso para as vítimas desse desastre tanto de forma atingidos mais diretamente quanto para aquela comunidade a demora para que isso tenha uma conclusão?
É uma dupla situação. A primeira é a perda mesmo, dos bens, da vida que tinham. A indenização vai trazer o filho de volta? Vai trazer o rio de volta? Não, não vai. Mas tem uma dimensão de pelo menos permitir que as pessoas recebam um valor para voltar a viver normalmente.
Maior do que isso é a sensação de injustiça. A sensação de injustiça que se perpetua no tempo é uma das piores que o ser humano carrega dentro do seu coração. Lutar contra essa injustiça é lutar por uma reparação interior das pessoas que sofreram a perda das suas vidas em todos os tipos.
Existe uma discrepância de poder econômico entre as mineradoras em relação às vítimas. Há também uma correlação de forças políticas para além da questão da tramitação lenta da justiça brasileira ou eventuais questões da Justiça britânica?
Eu nunca separei o Direito da política. O Direito envolve relações de poder e, como tal, é influenciado por elas. Sempre foi, é e será. A grande questão é que nós tínhamos uma situação durante o governo anterior em que não havia um desejo de ouvir as vítimas, de ver os reais danos. Com o atual governo Lula, há uma pegada mais firme na parte do meio ambiente, na busca de reparação de danos, mas ainda não senti intenção de ouvir as vítimas, com a sua própria voz.
“A indenização vai trazer o filho de volta? Vai trazer o rio de volta? Não, não vai. Mas tem uma dimensão de pelo menos permitir que as pessoas recebam um valor para voltar a viver normalmente”
Essa é uma reivindicação antiga das vítimas. Essa dificuldade se dá desde o início desse processo e há perspectiva de mudança?
Quando nós estamos num Estado Democrático de Direito, embora se tenha Ministério Público e Defensoria Pública fazendo uma representação dos interesses difusos e coletivos, quando há a oportunidade de ouvir a pessoa atingida, aquela que tem carne e osso que perdeu tudo, ela tem que ser ouvida. Ela deve poder opinar sobre o valor da indenização, sobre as consequências.
Se a reivindicação dela não for contemplada, eu entendo, é uma negociação. O que eu não entendo é o autoritarismo, a negação da possibilidade de a vítima poder falar com a sua própria voz. É inaceitável. Nesse caso, eu me sinto muito feliz de estar lutando pelo direito do indivíduo em ser ouvido e a receber uma indenização justa sem manipulações, como tem acontecido no Brasil.
A ausência de escuta dessas pessoas se dá por qual motivo?
Pois se entende que eles já estão representados [pelo Ministério Público, por exemplo]. Não há nenhuma declaração oficial sobre isso, mas é como eu ouço. Por que os indígenas não foram ouvidos diretamente na mesa de negociações ainda? Por que os quilombolas não são ouvidos? Por que os atingidos não são ouvidos? A associação dos atingidos? É incompreensível.
Quando compareci em uma reunião no CNJ não permitiram que eu tivesse assento. Por quê? Porque trabalho com o escritório inglês. Eu tenho uma procuração como advogado brasileiro para representar prefeitos brasileiros. Qual é o problema? Eu não posso representá-los na Inglaterra e aqui? Para mim, é algo inconcebível.
“Por que os indígenas não foram ouvidos diretamente na mesa de negociações ainda? Por que os quilombolas não são ouvidos? Por que os atingidos não são ouvidos? A associação dos atingidos? É incompreensível”
Essa discussão, de forma ampla, tem relação com o debate que hoje se faz de justiça climática e ambiental, tendo em vista os danos causados em ecossistemas, meios de subsistência e ganho de vida e organização cultural e mesmo urbana?
Esse tipo de discussão revela um novo momento da atuação do Direito e da Justiça. Se há empresas que atuam em vários países e trazem danos climáticos, consequências, é preciso discutir isso do ponto de vista global. Nós vamos caminhar cada vez mais para a construção de estruturas supranacionais de preservação de direitos humanos, de direitos fundamentais. Mas isso ainda é incipiente.
Seria possível e interessante para o governo brasileiro levar a solução desse caso para a COP 30 (a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas), que será realizada no Brasil, em novembro de 2025, quando a tragédia faz dez anos?
Se o governo Lula tiver vontade política que isso aconteça, seria fantástico. Mas não é esse acordo que as mineradoras estão tentando fazer. Quando os atingidos são excluídos de uma mesa de negociação, a pretexto de que estão representados por outros, é uma piada democrática. Dentro desse contexto, eu espero que o governo Lula, coerente com os seus princípios, busque conduzir um amplo acordo em que sejam ouvidos indivíduos.
Não há nenhuma resistência dessas 600 mil pessoas, nem do escritório Pogust Goodhead, de sentar e fazer um acordo. Mas um acordo digno, justo, que tenha um valor indenizatório devido, no qual as pessoas possam discutir os termos.
Há um dado de que essa se trata da maior ação coletiva ambiental do mundo. Essa informação pode impactar de que forma a análise do caso? E o que essa decisão representa?
Sem dúvida essa é a maior ação em curso no mundo hoje, e ela terá repercussões importantíssimas no mundo todo. Empresas das grandes potências mundiais que atuam em países em desenvolvimento terão que tomar muito mais cuidado. Essa decisão é paradigmática para o mundo, para a defesa do meio ambiente, para a defesa de direitos fundamentais. Ela tem um paradigma que ultrapassa em muito as fronteiras do Brasil. Daí a sua relevância não só para o Direito, mas para a própria dimensão humana relacionada à atuação empresarial.