Desoneração da folha, controle de renúncias fiscais e disputa entre Poderes

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A medida cautelar concedida pelo ministro Cristiano Zanin do Supremo Tribunal Federal (STF), na ADI 7.633, pode ter inaugurado um novo e importante capítulo no controle judicial das renúncias ficais no Brasil. A decisão suspendeu inicialmente os efeitos da Lei 14.784, de 27 de dezembro de 2023, que prorrogou a chamada desoneração da folha, e se insere em um contexto de disputa institucional entre Congresso Nacional e Poder Executivo Federal.

A ação foi ajuizada pelo presidente da República contra os arts. 1º, 2º, 4º e 5º da Lei Federal 14.784, de 2023, e também pretende que se declare a inconstitucionalidade da decisão do presidente do Senado que determinou a “prorrogação seletiva” da MP 1202/2023, além de pedir a declaração de constitucionalidade do art. 4º da mesma medida provisória.

O relator, ministro Cristiano Zanin, inicialmente suspendeu em decisão monocrática a eficácia de disposições da Lei 14.784, de 2023, que prorrogavam a desoneração da folha, acrescentando ao dispositivo da decisão a seguinte cláusula: “enquanto não sobrevier demonstração do cumprimento do que estabelecido no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (com a oportunidade do necessário diálogo institucional) ou até o ulterior e definitivo julgamento do mérito da presente ação pelo STF, conforme o caso”.

Na prática, do ponto de vista estritamente jurídico-tributário, a decisão asseguraria a cobrança integral do tributo, sem o tratamento diferenciado previsto na lei. Do ponto de vista político-institucional, instou os segmentos econômicos e as entidades públicas a rediscutirem a matéria com o Congresso Nacional e o Poder Executivo.

Em seguida, para que pudessem avançar as tratativas entre o Executivo e o Congresso Nacional para construção de uma solução consensual, o próprio relator suspendeu por sessenta dias os efeitos de sua decisão, que foi, na sequência, referendada em plenário. Em julho, o prazo de suspensão dos efeitos da cautelar foi prorrogado, até 11/9/2024, pelo ministro Edson Fachin, no exercício da presidência, para que se aguardasse o resultado das tratativas políticas entre Executivo e Congresso Nacional.

Não faltam razões para se discutir um caso importante como esse em uma coluna dedicada ao debate da jurisdição constitucional. Mas o foco deste artigo é especificamente a fundamentação adotada pelo relator para conceder a cautelar, e as possíveis consequências institucionais que pode desencadear para o controle judicial de benefícios fiscais no Brasil.

O fundamento constitucional para a suspensão cautelar dos efeitos da lei foi a afronta ao art. 113 do ADCT, pela falta de estimativa de impacto financeiro-orçamentário da desoneração. Introduzida no texto constitucional pela Emenda Constitucional 95, de 2016 (novo regime fiscal), a regra obriga que proposições legislativas que criem ou alterem despesa obrigatória ou renúncia de receita estejam acompanhadas da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro. Ou seja, antes de aprová-las, é preciso saber o quanto custam. O texto constitucional não menciona expressamente “prorrogação”, nem exige medidas de compensação como faz a Lei de Responsabilidade Fiscal, é bom lembrar.

No que se refere às renúncias de receita tributária, o art. 113 do ADCT veicula um requisito que, em parte, já estava contido no art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas existe uma diferença fundamental de hierarquia: o art. 14 está no plano da lei complementar e o art.113, na Constituição. A diferença não é desprezível e tem efeitos práticos importantes no caso concreto.

Se antes da EC 95, de 2016, a falta de estimativa de impacto de proposições legislativas de desonerações tributárias poderia ser superada pelo voto de maioria legislativa circunstancial, sem prejuízo para a validade da lei aprovada; após a inserção da regra do art. 113 no ADCT, tal ausência passou a configurar vício de inconstitucionalidade formal, capaz de macular a validade da lei de incentivo.

Isso também significou ampliar o espaço para o controle de constitucionalidade das renúncias fiscais pelo STF. Afinal, o descumprimento do art. 14 da Lei Responsabilidade Fiscal, está limitado ao plano das ofensas reflexas e não deve galgar o STF, muito menos pela via da ação direta (e.g. ADI 3796, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 8.3.2017).

Até aqui, nenhuma novidade. A alteração constitucional é da década passada, já vigora desde 2016, e não é a primeira oportunidade em que o STF decide sobre leis de desoneração tributária com base nesse fundamento.

Podemos citar diversas decisões em matéria de renúncia fiscal nesse sentido. São exemplos: ADI 5.882, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 16/5/2022; ADI 5.816, rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 5/11/2019; ADI 6074, rel. Min. Rosa Weber, julgado em 21/12/2020; RE 1.343.429 SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 9/4/2024; ADI 6. 152, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 3/10/2022, entre outros casos.

Contudo, um olhar atento para o objeto das ações julgadas revela uma ausência importante: em nenhum deles o STF declarou a invalidade de benefício fiscal federal. Com base no art. 113 do ADCT, o tribunal declarou a inconstitucionalidade de lei de Santa Catarina que autorizava pagamento do tributo com títulos estaduais, desoneração de ICMS de Rondônia e isenção de IPVA de Roraima.

Já afastou também, em sede de recurso extraordinário, a validade de isenção de IPTU do município de Itirapina (SP). No entanto, não discutiu a validade de uma desoneração tributária federal ou, ao menos, não de uma tão importante quanto a previsto na Lei 14.784, de 2023.

Após quase dez anos de vigência da regra do art. 113 do ADCT, é difícil recordar algum julgamento importante do tribunal em que benefício fiscal federal tenha tido sua eficácia suspensa ou sua inconstitucionalidade declarada, embora não faltem exemplos de descumprimento dessa disposição constitucional.

As razões institucionais para a inobservância eventual dessa regra são muitas, antigas e complexas. Não cabem neste artigo. Mas não podem ser atribuídas apenas ao Congresso Nacional. Aliás, na prática legislativa, as estimativas de impacto de renúncias fiscais às vezes faltam porque as informações necessárias para elaborá-las estão cobertas por sigilo, são inconsistentes ou não são disponibilizadas pelo órgão arrecadador.

O debate travado na ADI 7.633 faz ver que o controle das renúncias fiscais ainda encontra entraves institucionais importantes no Brasil, e, embora a regra do art. 113 vigore há quase dez anos, sua interpretação não está livre de questionamentos. Afinal, quando e como deve ser apresentada a estimativa de impacto na tramitação das leis de incentivo? Somente é de se aceitar se acompanhar a apresentação da proposição? Pode ser formulada a qualquer tempo durante a tramitação legislativa, antes da promulgação da lei?

No relatório apresentado por ocasião da votação no Senado do PL 334/2023, de autoria do senador Efraim Filho, proposição de que resultou a lei impugnada, o relator da matéria na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), senador Ângelo Coronel, destacou em seu parecer que “os estímulos previstos no projeto já existem há anos e não configuram inovação relevante no ordenamento jurídico”. Fez constar também que “embora o gasto tributário da desoneração seja estimado pela Receita Federal em R$ 9,4 bilhões, o efeito positivo à economia supera os R$ 10 bilhões em arrecadação”.

No agravo regimental interposto pelo Senado Federal, alega-se que o art. 113 do ADCT foi sim cumprido durante a tramitação da proposição, tanto no que se refere à prorrogação do benefício para os 17 setores econômicos alcançados pela medida quanto no que se refere à redução de alíquotas para municípios.

Na decisão da segunda medida cautelar, o ministro Cristiano Zanin justifica a adoção de efeitos meramente prospectivos da suspensão “com o objetivo de assegurar a possibilidade de obtenção de solução por meio de diálogo interinstitucional voltado a superar os afirmados vícios presentes na Lei 14.784/2023”.

Na mesma decisão, afirma que “o eventual encaminhamento de proposição legislativa para dar cumprimento ao art. 113 do ADCT, a partir de um diálogo institucional entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, pode ser uma medida eficiente para superar ou atenuar o conflito reproduzido nestes autos”.

Por mais que sejamos – todos nós! – entusiastas de soluções consensuais, inclusive no âmbito da jurisdição constitucional, à primeira vista, não parece que a quantificação do impacto fiscal, como manda o art. 113 do ADCT, possa, em si, ser objeto de acordo de natureza judicial ou extrajudicial. Estimativas de impacto elaboradas a posteriori não vêm ao encontro do escopo e do espírito da regra em questão.

Ou já se sabia o custo da renúncia fiscal ao tempo da deliberação legislativa e a ação não pode ser julgada procedente com esse fundamento; ou a estimativa de impacto, elaborada depois de editada a lei, não se presta a fundamentar convalidação de lei já promulgada. Nem teria, portanto, qualquer utilidade.

Mas é claro que desacordos políticos entre Poderes não se resumem a calcular renúncias. Vão além de contas e estimativas orçamentárias. Os termos do acordo que venha ser celebrado em decorrência da ADI 7.633 devem não apenas indicar o futuro da tributação da folha salarial no país. Podem definir também o papel que ainda pode ser desempenhado pelo art. 113 do ADCT em relação ao controle das renúncias de receita no Brasil, inclusive por parte do Poder Judiciário.

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