A ANA está certa

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Recente proposta da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), colocada em consulta pública, suscitou debate no setor de saneamento básico: como devem ser anualmente reajustados os valores das tarifas para remunerar a prestação dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário? Ou seja: qual o critério deve ser o preferencial para corrigir anualmente o valor das tarifas tendo em vista o fenômeno da inflação?

Na prática dos contratos administrativos, a regra é que o índice de reajuste deve capturar, ao máximo, a variação de preços específica do objeto do contrato. O contratado tem responsabilidade pelos custos de suas escolhas, a Administração Pública contratante pela variação natural dos custos específicos do objeto do contrato. Por isso, fala-se na utilização de índices setoriais ou de fórmulas paramétricas.

Contudo, quando o serviço é remunerado pelos usuários, o critério deve ser diferente. Se as finanças públicas variam por diversos fatores, em especial pelo desempenho das atividades que são fatos geradores de tributos, o orçamento dos usuários varia, no geral, como varia a renda do consumidor. Por isso, no quadro atual, parece que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) é o índice que melhor reflete a variação da renda dos usuários dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. 

Logo a questão é: a tarifa deve tentar se manter neutra em relação à renda dos usuários, e ser reajustada pelo IPCA, ou se os valores tarifários devem ser reajustados tendo em vista índices setoriais, específicos da variação de custos do  serviço.

A opção da ANA é a de proteger o usuário, no sentido de fazer prevalecer o princípio da modicidade tarifária. Isso leva a que, se houver diferença entre a variação específica dos custos dos serviços e variação da renda dos usuárias, seja essa diferença suportada pelo prestador dos serviços, como risco natural de seu negócio, até que haja a revisão periódica das tarifas, se ela estiver prevista.

Observe que, em havendo a revisão periódica, não significa que o risco de variação de valor, a partir dela, seja imputado apenas aos usuários. Isso porque, na revisão, o reequilíbrio econômico-financeiro pode ocorrer por outros meios, como o aporte de recursos fiscais; o adiamento de investimentos ou a extensão do prazo contratual. A oneração dos usuários, portanto, pode ficar como ultima ratio. Haverá, inclusive nessa hipótese, a deferência ao princípio da modicidade tarifária.

Há quem critique, porque como o contrato é um equilíbrio entre encargos e remuneração, e esse equilíbrio deve ser preservado, independente de ser considerada a variação da renda dos usuários. Esse caminho é perigoso, porque pode induzir à insatisfação social com as tarifas, aumentando o risco político dos contratos de concessão, e, ainda, faz opção pelo reequilíbrio apenas mediante a tarifa, ignorando outras formas  que, como dissemos, são mais aderentes ao princípio da modicidade tarifária.

Compreendo essas críticas, até porque eu também fui um dos críticos. Em estudo anterior, que se encontra publicado, eu defendi um índice específico para o setor: o índice de Reajuste do Saneamento (IRS). Mas o mundo real é o de que todo e qualquer reajuste que ultrapasse o IPCA é sempre visto como algo extraordinário – porque há risco político, porque se trata de aumento real, quando visto do ponto de vista do usuário. Não raro, nessas hipóteses de índices que ultrapassam o IPCA, o reajuste é concedido de forma parcelada, atraindo questionamentos no Judiciário.

Além disso, o uso do IPCA traz variadas vantagens, um deles é a simplicidade, tornando os reajustes automáticos – e a minha longa prática contratual ensinou que, havendo brecha, sempre há o oportunismo de se adiar reajustes de tarifas, especialmente em anos eleitorais. Logo, uso do IPCA teria o nada desprezível efeito de assegurar o reajuste nos prazos previstos nos contratos.  

Ou seja, a experiência e as razões expostas no debate decorrentes da consulta pública levaram a que minha posição fosse reorientada. Resta reconhecer: a ANA está certa, o reajuste das tarifas deve se subordinar ao princípio da modicidade tarifária.

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