Desenhos industriais e nulidade incidental

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Desenhos industriais são um tipo de criação de forma[1] que gera um bem imaterial de índole decorativa. Ao exteriorizar algo ornamental, visualmente perceptível, que seja novo (distinto do que existe – maniqueísmo entre igual/desigual) e original (qualitativamente divergente do estado da arte) – o criador/titular pode buscar junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) o reconhecimento de seus direitos.

Diferentemente de seus “primos” criativos, o desenho industrial não resolve um problema-técnico (criações utilitárias, como as patentes); não tem como fito a comunicação (criações distintivas, como as marcas); nem serve à contemplação por si só[2] (criações estéticas, como o direito de autor). Ainda assim, ao amainar as aparências, diminuir o que é visualmente áspero, clichê ou chocho – os desenhos industriais pode incitar o consumo. Que o leitor reflita como novos modelos de um veículo automotor podem ser mais pautados em diminutas variações decorativas, do que em revoluções de mecânica?!

Um ponto peculiar do processo administrativo junto ao INPI (quando se cuida dos desenhos industriais) é a bifurcação possível entre os depositantes que buscam (a) um exame meritório (conteúdo decorativo – art. 111 da Lei 9.279/96) do pleito, daqueles (b) que demandam apenas uma análise formal do pedido (art. 106 da Lei 9.279/96). Em outras palavras, quem deseja segurança jurídica (a) quer mesmo que o examinador contemple a novidade e o grau de originalidade daquele requerimento. Por sua vez, quem apenas deseja um título rápido (b) não estará particularmente preocupado com a carência meritória da decisão da autarquia.

Afora os extremismos entre confiabilidade e velocidade, há consequências práticas em tais decisões empresariais já que, de um lado, basicamente houve um “carimbo”; e, de outro, a mora analítica pode afastar investidores ou até gerar apreensão em lançar aquela formatação ornamental no mercado. Não obstante, as presunções dos atos administrativos são igualmente diferentes, já que não se deve extrair qualquer presunção forte sobre um bem imaterial que não foi escrutinado.

Sem grandes surpresas, é comum a predileção pela velocidade registral sem o exame de mérito. Titulares de desenhos industriais dessa sorte, então, podem inaugurar um litígio contra quem entendam usar ornamento que esteja protegido pela sua propriedade. Do lado do acusado de contrafação, se já exaurida a instância administrativa, restariam duas providências: (1) ou ajuizar demanda de nulidade do ato administrativo perante a Justiça Federal (art. 109, I da CRFB), tendo o INPI no polo passivo junto com o proprietário, ou (2) se defender do suposto ato de contrafação perante o Juízo de Direito, inclusive trazendo argumentos sobre a desconformidade do ato do INPI perante a legalidade constitucional.

Foi sobre a hipótese (2) que o Superior Tribunal de Justiça (STJ)[3] se debruçou em recente julgado do colegiado de ambas as Turmas que dirimem conflitos comutativos de Direito Privado. A disputa jurídica era mesmo curiosa: apesar de a moldura legal ser literal no sentido de que é possível ao acusado de contrafação ventilar a nulidade incidental como matéria de defesa (art. 118 c/c art. 56, parágrafo 1º, da Lei 9.279/1996); uma das Turmas do STJ acabou por emanar decisão contrária ao texto legal, sem sequer realizar controle de constitucionalidade. Ou seja, a própria súmula vinculante do STF de número 10 fora violada pela decisão do órgão fracionário.

Por sua vez, no seio da 2ª Seção do STJ, a decisão foi unânime no sentido de que o texto legal deve ser observado pelo próprio Poder Judiciário, tal como se espera em um Estado democrático de Direito. É bem possível, de outra sorte, que a opção política (deveras contraintuitiva[4]) do Poder Legislativo de separar as competências (i) Justiça Federal em razão da Pessoa, e (ii) Juízo comum em razão da matéria; e de discrepar nos critérios, (iii) não prever a nulidade incidental como matéria de defesa para registros de marca, mas o fazê-lo para desenhos industriais, tenha gerado a resistência de aplicação subsuntiva em certos julgados de ambas as Turmas de Direito Privado do STJ.

Fato é que ao longo dos anos, longe de realizar a função de harmonização hermenêutica nacional, tanto a 3ª quanto a 4ª Turmas prolataram decisões contraditórias aos critérios jurídicos para situações símiles. Decisões antiisonômicas para fatos parecidos geravam insegurança e discricionariedade nada benquista.

Assim, bem andou o Tribunal da Cidadania ao uniformizar o entendimento da seção de Direito Privado para facultar ao acusado de contrafação da exclusividade de um desenho industrial a opção pela defesa que lhe permita a ineficácia, ainda que sem resultados de invalidade de um ato administrativo. De outro lado, o interessante precedente não dirimiu uma hipótese em que o não proprietário tivesse optado (1) pela ação de nulidade perante o Juízo Federal, e (2) reiterasse os argumentos, incidentalmente, perante a defesa em um Juízo de Direito.

Será que seria razoável, prudente e efetivo que dois juízos de competência distinta, avaliassem a mesma tese jurídica? Sem uma previsão legal a tal respeito, noções sobre coisa julgada, economia processual e devido processo legal substantivo indicam a impossibilidade cumulativa de tais faculdades. No entanto, esta minúcia ainda será dirimida pelos tribunais brasileiros sem que, até lá, a moldura do enunciado normativo da Lei de Propriedade Industrial seja uniformemente respeitada.

[1] SILVEIRA, Newton. Direito de autor no design. 2ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70.

[2] BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. Volume 4. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 103 – e-book.

[3] STJ, 2ª Seção, Min. Nancy Andrighi, Embargos de Divergência no REsp 1.332.417/RS, J. 12.06.2024.

[4] SCHAUER, Frederick. Thinking Like a Lawer: a new Introducion to Legal Reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2012, p. 8.

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