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Neste último artigo da série sobre conflitos societários, selecionei três temas polêmicos para reflexão. Espero que já tenha sido provado nos últimos dois artigos, que a discussão sobre a saída de um sócio da sociedade, a metodologia de apuração de haveres e os reflexos tributários são temas de grande impacto na vida das organizações, com bastante discussão doutrinaria e jurisprudencial.[1]
Nos próximos parágrafos tentarei contrapor, de forma sucinta[2], posições que deveriam ser repensadas[3], mas longe de cada um dos pontos abordados não merecer maiores aprofundamentos.
O primeiro é a possibilidade da quebra da affectio societatis[4] já ser condição para a exclusão de um sócio. Antes que as pedras venham, é lógico que somente a casuística poderá responder com profundidade se o laço societário deve ser desfeito. Mas, com base nos princípios da preservação da empresa e de sua função social[5], não me parece razoável que dois ou mais sócios “brigando” deveriam continuar juntos na sociedade.
A saída de um dos sócios será condição sine qua non para manter a atividade econômica, empiricamente constatável o desastre em que findam sociedades em que os sócios brigam.
Ora, abusos devem ser combatidos e freados pelo Judiciário, mas manter os sócios juntos, mesmo que não haja uma real falta grave (concorrência desleal, fraude, tráfego de informação confidencial,etc.), pode levar a empresa à falência.
Vale lembrar que existem remédios processuais para, por exemplo, uma ação de exclusão de sócio sem fundamento: afora a contestação, a reconvenção, quiçá, com o mesmo pedido de exclusão pelo abuso do direito. Ficará a cargo do julgador (juiz ou árbitro) a decisão de qual sócio ficará com a sociedade com base nos princípios supra citados.
Talvez, se pensado racionalmente, o sócio descontente poderia exercer o seu direito de retirada, mas nem sempre é o que acontece. É difícil “largar o osso”!
O segundo tema seria a possibilidade da metodologia do cálculo dos haveres e seu pagamento serem realizados de forma diferente a depender do motivo da saída do sócio (exclusão, recesso, retirada, morte, etc.) desde que disciplinada nos documentos societários[6].
Explico: contratualmente – e somente contratualmente[7] – haveria incentivos e desincentivos ao sócio para sair da sociedade. O direito de retirada puro e simples, imotivado, poderia ter um deságio no valuation da sociedade. Já no falecimento, por exemplo, poderia ser disciplinado um “ágio” em prol dos herdeiros com um pagamento mais curto dos haveres societários[8]. A ideia é sempre não descapitalizar a sociedade pela saída dos sócios e valorizar a união deles. Ou seja, valorizar a affectio societatis.
Por último e não menos importante, o sócio remanescente deveria ser responsável subsidiário à sociedade no pagamento dos haveres ao sócio retirante. Observa-se que já há muita discussão sobre qual é o valor justo da sociedade, sobre o enriquecimento indevido do sócio remanescente ou retirante, a data do evento, mas um fato ninguém pode negar: será o sócio remanescente que ficará na sociedade e naquele determinado momento, em que há a dissolução parcial dela, é constituída, na maioria dos casos, uma dívida (a apuração de haveres pode ser negativa) que a sociedade deverá se preparar para pagar contando com a diligência de seus sócios, que na maioria dos casos são também os seus administradores.
Se o conflito societário demorar anos para ser resolvido, é diligente que o sócio remanescente provisione o pagamento. O sócio retirante não pode ser punido pela má gestão futura, como também não será agraciado se houver um incremento nos negócios.
Na fase do pagamento dos haveres, se a sociedade não tiver condições de pagar – imagine-se que o contencioso tenha demorado muitos anos – recairá no sócio remanescente o dever de adimplir o débito.
A jurisprudência somente vem permitindo a responsabilização dos sócios remanescentes em caso de desconsideração da personalidade jurídica[9]. Como se sabe, o instituto somente deve ser utilizado em casos extremos e de forma cirúrgica. Mas, não parece correto que o sócio que se desligou da sociedade, independentemente do motivo, seja punido pela má gestão futura. Os seus haveres deveriam ser pagos subsidiariamente pelos remanescentes até para se incentivar o adimplemento.
Temas complexos. Somente o enfrentamento de um caso concreto somado a um novo ângulo de análise poderão ajudar a equalizar a justiça nos conflitos societários e na apuração de haveres, ajustando o deslinde à compreensão atual.
Agora, é aguardar o aprofundamento da matéria, mas a discussão está posta para o futuro!
[1] Artigos anteriores disponível em: https://www.jota.info/autor/daniel-bushatsky
[2] Cada um dos temas escolhidos poderia ser objeto de longas dissertações, com pontos de vista e desdobramentos variados.
[3] Observa-se a incidência maior de conflitos societários relacionados às dissoluções parciais de sociedades limitadas. A sociedade anônima possui como regra a livre circulação de suas ações (Art. 36. O estatuto da companhia fechada pode impor limitações à circulação das ações nominativas, contanto que regule minuciosamente tais limitações e não impeça a negociação, nem sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia ou da maioria dos acionistas.), mas é possível a dissolução parcial de sociedade anônima familiar. Vide a jurisprudência: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. QUEBRA DA AFFECTIO SOCIETATIS. PREPONDERÂNCIA DO LIAME SUBJETIVO ENTRE OS SÓCIOS. POSSIBILIDADE DE DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE ANÔNIMA. ENTENDIMENTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. CERCEAMENTO DE DEFESA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. PREJUDICADO. 1. Ação de dissolução parcial de sociedade. (…) 4. A jurisprudência do STJ reconhece a possibilidade jurídica da dissolução parcial de sociedade anônima fechada, em que prepondere o liame subjetivo entre os sócios, ao fundamento de quebra da affectio societatis. 5. A incidência da Súmula 7 do STJ prejudica a análise do dissídio jurisprudencial pretendido. Precedentes desta Corte. 6. Agravo interno no agravo em recurso especial não provido” (AgInt no AREsp n. 1.861.293/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 22/9/2021). (realce nosso)
[4] A doutrina assim define: “affectio societatis – é a intenção, a vontade forte de se associar, de formar a sociedade; é a vontade de união e aceitação de regras comuns; é o elo de colaboração ativa entre os sócios; é a intenção de unir esforços e recursos para obter resultados comuns que, isoladamente, talvez não pudessem ser plenamente obtidos” (RIBEIRO, Gustavo. Curso de Direito Comercial – teoria geral da empresa, direito societário, títulos de crédito, falência e recuperação de empresas. 6 ed., Belo Horizonte: D´Plácido, p. 356, 2019).
Entendimento dos Tribunais: Enunciado 67 – I Jornada de Direito Civil – A quebra do affectio societatis não é causa para a exclusão do sócio minoritário, mas apenas para dissolução (parcial) da sociedade.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE COM EXCLUSÃO DE SÓCIO, APURAÇÃO DE HAVERES COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. PEDIDO DE EXCLUSÃO DE QUADRO SOCIETÁRIO DE GRUPO EMPRESARIAL. AUSÊNCIA DE AFFECTIO SOCIETATIS. DEMONSTRAÇÃO DE JUSTA CAUSA. HONORÁRIOS RECURSAIS. A affectio societatis é o elemento essencial para constituição de qualquer sociedade, seja ela de direito ou de fato, de modo que comprovado pelas manifestações nos autos que houve sua quebra, somada a justa causa (inadimplemento contratual), impõe-se a manutenção da sentença que determinou a dissolução da sociedade, providência judicial, inclusive, mais justa e consentânea com a vontade externada pelas partes litigantes. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA, PORÉM DESPROVIDA. SENTENÇA MANTIDA.
(TJ-GO 00684891120128090142, Relator: DESEMBARGADOR JEOVA SARDINHA DE MORAES – (DESEMBARGADOR), 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: 11/02/2022) (grifo nosso)
[5] EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE – QUEBRA DA AFFECTIO SOCIETATIS – NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA – PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1 – Na hipótese em questão, em que se almeja a dissolução total da sociedade e, sucessivamente, a dissolução parcial, deve-se ter como norte o princípio da preservação da empresa, segundo o qual se deve buscar preservar as atividades da pessoa jurídica, em vista de sua função social, sobrepondo-se tal mister aos interesses particulares dos sócios. 2 – A quebra da affectio societatis, ensejadora da dissolução societária, só restará cabalmente demonstrada após o trâmite processual regular, obedecidos os princípios da ampla defesa e do contraditório, não sendo o caso, de conseguinte, de concessão da tutela de urgência almejada no atual momento. 3 – A pretendida administração compartilhada da sociedade, por meio de provimento judicial e à revelia do previsto no estatuto social da segunda agravada, também não parece indicado, sobretudo pela possibilidade de acirramento da animosidade já existente. 4 – Recurso conhecido e desprovido.
(TJ-ES – AGRAVO DE INSTRUMENTO: 5010904-92.2023.8.08.0000, Relator: FABIO BRASIL NERY, 4ª Câmara Cível) (realce nosso)
[6] “A apuração de haveres destina-se a calcular a parcela do patrimônio da sociedade que corresponde às cotas do ex-sócio. É comum convencionarem-se no contrato social a forma e as condições em que se processará esse cálculo. Deve-se levantar um balanço especial, a fim de bem aferir o valor efetivo do patrimônio líquido da sociedade, na respectiva data de referência (ver a seção 29.1, in fine). Esse levantamento se procederá de forma amigável, salvo no caso de divergência insuperável, quando então se recorrerá às vias judiciais.” (BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 19ª edição. Grupo GEN, 2022) (realce nosso)
[7] Sempre lembrando da Declaração de Liberdade Econômica e do pacta sunt servanda.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. SOCIEDADE LIMITADA. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. POLO ATIVO. SOCIEDADE. LEGITIMIDADE ATIVA. AFFECTIO SOCIETATIS. QUEBRA. INSUFICIÊNCIA. EXCLUSÃO. SÓCIO. DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS. PREVISÃO. CONTRATO SOCIAL. LEI. VIOLAÇÃO. FALTA GRAVE. CONFIGURAÇÃO. EXCLUSÃO DE SÓCIO. CABIMENTO. INTERVENÇÃO MÍNIMA. PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA SUPLETIVIDADE. FUNDAMENTAÇÃO. DEFICIÊNCIA. RAZÕES DISSOCIADAS. SÚMULA Nº 284/STF. INCIDÊNCIA.
(…) 3. A noção de falta grave, embora consista em conceito jurídico indeterminado, está configurada na conduta de sócio que viola a integridade patrimonial da sociedade, concretizando descumprimento dos deveres de sócio, em evidente violação do contrato social e da lei.
(…) 5. A intervenção mínima do Poder Judiciário em disputas societárias significa o reconhecimento de que a regulação da matéria societária se dá a partir do princípio da supletividade, tal como disposto no art. 3º, VIII, da Lei nº 13.874/2019 – Lei da Liberdade Econômica. Da análise da natureza cogente ou dispositiva das regras societárias de regência e dos interesses tutelados deverá o julgador extrair a possibilidade de as partes estabelecerem em comum acordo como se dará a administração e a execução do objeto social, o que não autorizava, em qualquer hipótese, a conduta dos recorrentes. (STJ – REsp: 2142834 SP 2023/0040724-0, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 11/06/2024, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/06/2024) (grifo nosso)
[8] O que não é admissível seria a diferença de cálculo pela qualidade de sócio e não pela hipótese de saída da sociedade: “Era comum a cláusula contratual tomar o último balanço aprovado como ponto de partida, e, assim, obter o montante o valor patrimonial contábil, em regra alheio à realidade; se as regras contratuais devem ser respeitadas, a cláusula continua válida. Porém, mostra-se inadmissível o contrato social estabelecer critérios diferenciados de liquidação da quota consoante a pessoa do sócio. Uma questão interessante reside na previsão contratual que estabeleça um bônus para os herdeiros no caso de morte. Improvável que seja, por seus reflexos no capital da sociedade, a disposição contratual mostra-se lícita. Impedem-se somente os artifícios para diminuir o valor da quota”. (ASSIS, Araken. 10. Espécies de Dissolução In: ASSIS, Araken. Dissolução Parcial e Total das Sociedades – Ed. 2024. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2024).
[9] Art. 50, CC. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Já tivemos a oportunidade de escrever sobre o tema: A desconsideração da autonomia patrimonial da pessoa jurídica (“desconsideração da personalidade jurídica”) é medida extrema e cirúrgica, coibindo a fraude ou o abuso de direito e, de uma forma mais simples e objetiva, pois incluídos nos dois institutos citados, a confusão patrimonial, permitindo que no caso em concreto, respeitado o devido processo legal, o credor alcance os bens particulares dos sócios e administradores. Ela reforça a autonomia patrimonial da pessoa jurídica e a preservação da empresa, não devendo ser utilizada tão somente porque a pessoa jurídica não tenha mais bens para satisfazer aos seus credores. (BUSHATSKY, Daniel. Desconsideração da personalidade jurídica. Enciclopédia de Direito da PUCSP. Tomo Direito Comercial, Edição 1, Julho de 2018. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/229/edicao-1/desconsideracao-da-personalidade-juridica. Acesso aos 01/07/2024.